segunda-feira, 28 de abril de 2025

FRIDA KAHLO E O PROTAGONISMO FEMININO: REFLEXÕES NO SETTING ARTETERAPÊUTICO EM GRUPO DE MULHERES

 

Por Débora Castro

@deborarteterapia

Frida Kahlo é mais do que uma artista renomada; ela é um ícone de resiliência, autenticidade e protagonismo feminino. Sua vida e obra trazem inspirações profundas, principalmente em contextos terapêuticos, como a arteterapia, onde a expressão criativa é catalisadora para a transformação pessoal e coletiva. Ao trabalhar em grupos de mulheres, sua figura emerge como uma referência capaz de fomentar reflexões importantes sobre identidade, força interior e enfrentamento de desafios.

 


No setting arteterapêutico, a obra de Frida funciona como um espelho das vivências humanas, especialmente as femininas. Frida expressava suas emoções de maneira crua e real, abordando temas como dor, amor, identidade e corpo. Suas pinturas, frequentemente autorretratos, traduzem a experiência de ser mulher em um mundo que, muitas vezes, silencia ou marginaliza essa vivência. No contexto de grupos arteterapêuticos de mulheres, a introdução de sua obra possibilita que as participantes reflitam sobre suas próprias histórias e encontrem maneiras de expressá-las, promovendo o fortalecimento da autoestima e do protagonismo pessoal.

A jornada de Frida é uma narrativa de superação. Ela enfrentou limitações físicas, relacionamentos desafiadores e os padrões opressores de sua época, mas transformou sua dor em arte e resistência. No espaço arteterapêutico, sua história inspira as mulheres a reavaliarem suas próprias dificuldades. As participantes são encorajadas a refletir: "Como posso transformar minha dor em força? Que aspectos da minha identidade posso celebrar e ressignificar?". Essas questões criam um ambiente propício para a descoberta de potenciais internos, alinhados ao protagonismo feminino.

Durante as atividades em grupo, elementos das obras de Frida, como o uso de cores vibrantes, símbolos naturais e culturais, podem ser integrados ao processo criativo. Por exemplo, ao criar autorretratos, as mulheres podem explorar sua própria história e identificar elementos que desejam transformar ou destacar. Essa prática permite não apenas a externalização das emoções, mas também a construção de narrativas mais fortalecedoras e conscientes.

Alguns relatos e produções plástica das participantes:



Participante – H

Meu protagonismo é a vida

V - vigore -se

I - ilumine-se

D - desperta-se

                                                                     A -  ame -se

 


Participante - D

Nossa vida é formada de laços e ligações que nos equilibram e desequilibram e nós temos que ter o protagonismo de nossa vida e nos reequilibrarmos. Nesse desenho vocês veem a roda da vida em amarelo com 4 extremidades. O quadrado está meio disforme, mas à medida que nossas emoções se equilibram (azul) devido a nossa energia interna ( laranja) os nossos laços são mantidos.

O trabalho em grupo potencializa a troca de experiências e o senso de pertencimento. As mulheres compartilham suas reflexões sobre a figura de Frida e encontram paralelos com suas próprias trajetórias, reconhecendo que a força feminina é coletiva e que o protagonismo pode ser nutrido através do apoio mútuo. Assim, o setting terapêutico se torna um espaço não apenas de expressão individual, mas de união e fortalecimento grupal.

Concluindo, Frida Kahlo oferece uma lente poderosa para explorar o protagonismo feminino em contextos terapêuticos. Sua história e arte mostram que, mesmo diante de adversidades, é possível encontrar beleza, força e significado. No setting arteterapêutico, ela atua como um símbolo de transformação, despertando nas mulheres a coragem de se expressarem e de assumirem o controle de suas narrativas. Assim, o processo criativo não só promove o autoconhecimento, mas também reafirma o poder da mulher de ser protagonista de sua própria vida.

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Sobre a autora: Débora Castro



Sou Débora de Castro, educadora apaixonada pelo poder da arte e do conhecimento. Graduada em Pedagogia e Educação Artística, com pós-graduação em Psicopedagogia e Educação Especial e Inclusiva, sigo aprofundando minha jornada acadêmica como graduanda em Psicologia.

Com formação em Arteterapia (AARJ/1411), atuo há mais de 28 anos na área da Educação, compartilhando saberes como professora de Artes Visuais e História da Arte. Atualmente, dedico-me à coordenação de um grupo de Arteterapia para Mulheres e à condução de oficinas arte terapêuticas, tanto no formato online quanto presencial.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

EXPOSIÇÃO DE TARSILA DO AMARAL EM PARIS



Por Isabel Pires - RJ, Paris

bel.antigin@gmail.com


       Hoje, em sequência ao meu texto sobre a biografia de Tarsila do Amaral CLIQUE AQUI, vou falar sobre a exposição dedicada à pintora em Paris, no Museu de Luxemburgo, entre 09 de outubro de 2024 e 02 de fevereiro de 2025, intitulada “Tarsila do Amaral – pintar o Brasil moderno “, sob a curadoria de Cecilia Braschi, doutora em história da arte. De 28 de fevereiro a 08 de junho deste ano, a exposição ainda pode ser vista no Museu Guggenheim de Bilbao. A partir da exposição, ampliarei a biografia que apresentei no meu texto anterior.

O Museu de Luxemburgo mostrou 43 quadros de Tarsila, de acordo com o jornal Les Echos, além de fotos, documentos, catálogos de exposição, ilustrações, desenhos e manuscritos. Também havia vídeos, um painel biográfico e um terminal digital que projetava um álbum de viagens de Tarsila numa tela grande sobre uma das paredes. Esse terminal digital ficava ao lado da linha de tempo biográfica e de um espaço de projeção de vídeo. Um sentido único, pré-determinado, privilegiava a ordem cronológica da vida e da obra de Tarsila, tanto por se tratar de uma retrospectiva, como para mostrar a evolução do seu trabalho. Ao longo da exposição, vários textos falavam sobre Tarsila e o contexto histórico brasileiro e havia, também, algumas citações da artista.



As salas da exposição foram organizadas em função da biografia e do desenvolvimento do trabalho artístico de Tarsila do Amaral. Assim, cada uma tratava de um período da vida da pintora e do tema do trabalho dela naquele período específico, que correspondia ao nome da sala. Por isso, à entrada de cada sala, numa parede, estava o nome do espaço e um texto bem grande que contextualizava o momento histórico-social brasileiro e o momento de vida da pintora, acompanhado de uma foto do Brasil.

No site do museu, havia diversos suportes pedagógicos: podia-se baixar um guia de visita – em francês, inglês ou português -, um dossier pedagógico para as escolas, um aplicativo para o celular com audioguias gratuitos e um “passeio sonoro” com sons da floresta tropical brasileira. Além disso, no site do Grand Palais, que organizou o evento, também era possível encontrar artigos e vídeos sobre Tarsila e sobre a exposição.

O visitante tinha acesso gratuito a um flyer que listava as diversas atividades extras promovidas no museu na época da exposição, tais como palestras, encontros de estudos, visitas guiadas, ateliês, entre outras. Na loja do museu, era possível comprar o catálogo e um jornal da exposição, além de um livro da Éditions Beaux Arts. E uma curiosidade interessante: ao lado do museu, o restaurante Mademoiselle Angelina criou um cardápio de pâtisserie especialmente para a exposição.

Na sala 1, intitulada “Paris/São Paulo: passaportes para a modernidade”, mostrava-se a articulação da obra de Tarsila entre Europa e Brasil, mais especificamente entre Paris e São Paulo. Esse é o momento de busca de identidade pessoal, em que a pintora faz muitos autorretratos. Nesta fase, Tarsila se representa como uma mulher elegante, já que se vestia com as roupas dos melhores costureiros de Paris da época, e, simultaneamente, como alguém que veio do campo e que está ligada às suas origens brasileiras. É o caso dos quadros Autorretrato (Manteau Rouge) e A Caipirinha. Este último - autorretrato cubista pintado em 1923 um ano após a Semana de Arte Moderna - faz referência à sua origem no interior paulista. 

A segunda sala da exposição, consagrada às paisagens, chamava-se “A invenção da paisagem brasileira”. Nesse momento de sua vida, após sua estadia em Paris, Tarsila procura redescobrir seu país e sua identidade brasileira. Sua pintura inventa cenários que não existem na realidade, mas que coexistem em suas pinturas de traços cubistas.

Na sala “Primitivismo e identidade“, os quadros de Tarsila mostravam o verdadeiro rosto do brasileiro, formado pelas culturas ditas primitivas na época, como os indígenas e os negros escravos. Além disso, os quadros de Tarsila desta época retratam ícones da cultura popular brasileira, tais como a Cuca, proveniente das lendas indígenas, e Macunaíma, de Mario de Andrade, que representa a diversidade e o contraste do povo brasileiro. A Cuca é o único quadro de Tarsila existente dentro das coleções francesas. A pintura A Negra pertence ao período pré-antropofágico, um momento de recuperação das origens da cultura brasileira, marcada pela presença do branco, do índio e do negro, este último retratado na personagem do quadro.

         “O Brasil canibal” era o coração da exposição, situado na quarta sala do evento. Trata do momento mais célebre da artista, no qual Tarsila participa do movimento antropofágico no Brasil, o qual nasce justamente a partir de uma obra dela chamada de Abaporu, que, segundo Cecila Braschi, aborda a capacidade de o brasileiro de se apropriar de tudo o que recebe e de transformar isso em algo novo, “graças à sua digestão e reelaboração”. O quadro Abaporu encontra-se atualmente no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o Malba, e se tornou o quadro mais caro da história da arte brasileira, com valor estimado em torno de 50 milhões de dólares. Embora este quadro não estivesse presente na exposição do Museu de Luxemburgo, havia os estudos que Tarsila fez antes de pintá-lo, o que foi muito interessante de ver. Nesta quarta sala da exposição, também estavam expostas as obras O Touro e Urutu, que exploram o tema dos animais do universo de Tarsila. São obras inquietantes, que confrontam imagens inconscientes da artista com as imagens da cultura popular.

Em seguida, a sala “Trabalhadores e trabalhadoras” tratava de uma época de mudança radical na vida de Tarsila. Em 1929, a artista se separa de Oswald de Andrade. Nessa fase, o trabalho de Tarsila do Amaral retrata o povo brasileiro em quadros grandes de estilo mural, que revelam a mudança no seu estilo de pintura, marcado, agora, pelo grafismo soviético. Os rostos pintados nos seus quadros deste período são bem individualizados, mas pertencentes a um grupo ou comunidade e refletem a influência de sua viagem recente à URSS com o seu marido, o psiquiatra brasileiro Dr. Osório Cesar, com quem viveu por dois anos. É o caso da obra Operários, de 1933. E, na pintura Trabalhadores, de 1938, Tarsila incorpora uma paleta mais terrosa e explora o tema do mundo do trabalho no campo.

Por fim, a última sala, intitulada “Novas paisagens”, mostrava a última etapa do trabalho de Tarsila do Amaral. Artista que soube se reinventar e acompanhar as mudanças do seu país. Nessa fase, Tarsila pinta as mudanças da cidade de São Paulo, a maior metrópole do Brasil, que começa então a construir seus arranha céus.  É o caso do quadro Metrópole. Já na pintura Terra, quadro jamais exposto nas retrospectivas após a sua morte, Tarsila inaugura um novo estilo, com toques mais leves. Aqui, a pintora parece voltar ao ambiente metafísico e onírico que caracterizou suas obras no período antropofágico. Esse momento do trabalho de Tarsila é pouco divulgado, mas não é menos importante.



         A exposição “Tarsila do Amaral – pintar o Brasil moderno” se propôs a apresentar a pintora brasileira ao público geral francês e mostrava, com eficiência e esmero, a relevância do trabalho de Tarsila do Amaral para o modernismo brasileiro.  Por isso, a retrospectiva apresentava de forma suscinta o contexto sócio-histórico no qual a artista viveu e um pouco de sua biografia. A escolha de um percurso cronológico e biográfico, a meu ver, funcionou muito bem para demonstrar o desenvolvimento do trabalho de Tarsila ao longo dos anos, sempre conectado com os eventos e mudanças do Brasil e do mundo. Como relembrou a curadora da exposição Cecilia Braschi, a partir de uma citação da escritora Patrícia Galvão (mais conhecida como Pagu), Tarsila do Amaral foi “o primeiro exemplo de emancipação mental para todas as mulheres de São Paulo” e provavelmente para todas as mulheres do Brasil.

Morando em Paris há um ano e meio, senti-me reconectada com meu país e minha cultura e muito orgulhosa de Tarsila, com quem me identifiquei por ser alguém que, como eu, sempre viveu no Brasil em meio a uma educação europeia, mas que se sentiu mais brasileira do que nunca ao morar no exterior. Tarsila escolheu voltar ao Brasil e lutar pela valorização de nossa arte, sintetizando em sua obra suas raízes brasileiras e seu aprendizado europeu. Destacou-se no exterior e no nosso país numa época em que as mulheres ainda não tinham espaço para divulgar seu trabalho. Sua trajetória de vida e de arte são um exemplo de coragem, talento, luta e determinação. Viva Tarsila!


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Sobre a autora: Isabel Pires



ü  Arteterapeuta e psicóloga

ü  Mestranda em História da Arte na Université Paris Nanterre

ü  Autora do texto: “Vygotsky e a arte”, no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra

ü  Autora do artigo: “Havia uma menopausa no meio do caminho: a arteterapia na metanoia da mulher de meia idade”, publicado na Revista da AATESP, v. 13, n.02, 2022, que foi tema de palestra homônima ministrada no 24º Congresso Português de Arte-Terapia “Arte, Saúde e Educação”, em outubro de 2023, em Lisboa, Portugal.

ü  Nascida no Rio de Janeiro, atualmente vive em Paris e realiza atendimentos clínicos online em Arteterapia e psicoterapia.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

DESCOLONIZANDO E ROMPENDO PARADIGMAS DE EXCLUSÃO EM ARTETERAPIA



Por Rosangela Rozante - RJ

@caminhosdoself_ 

Em Arteterapia encontramos relações terapêuticas que vão se estabelecendo de forma verbal e não verbal, construídas através de conteúdos metafóricos e simbólicos, numa subjetividade que vai encontrar sua via de melhor expressão, no acesso a história pessoal e coletiva de cada cliente. Apresenta-se como uma abordagem diferenciada para conduzir o tempo interno de cada cliente, em busca de sua transformação, ainda que hoje, as pessoas tenham muitas dificuldades em lidarem com suas frustrações, com o tempo e ansiedades de resultados rápidos. Assim, as técnicas e os materiais expressivos vão participar desta relação terapêutica, trabalhando este tempo interno. 

Cabe ao Arteterapeuta personalizar cada atendimento como um aprendizado de vivência clínica. Por exemplo: o jeito como uma pintura ou desenho é proposto ao cliente, faz toda diferença e por isto, cada caso é um caso em sua singularidade. Técnicas e materiais, precisam estar acompanhando a necessidade de cada cliente, para o que está se apresentando como um obstáculo em sua vida naquele momento, e aqui, me reporto ao seu passado, presente e também ao seu futuro, pois a psique não estabelece uma relação com o tempo cronológico, tendo em vista que nosso inconsciente é atemporal. O que nos mobiliza hoje, pode ter repercussões psíquicas que atravessam os tempos, trazendo emoções e sentimentos na medida em que são acessados. 

Não há o material ou técnica, mais fácil ou mais difícil, já que cada caso é um caso. Não há uma comprovação por exemplo de que o desenho ou a colagem enquanto técnicas, possam facilitar o início de um processo. Isto é fruto de anamnese. O acesso às técnicas e materiais, surgem de acordo com as experiências de vida e experiências expressivas, tanto de clientes como do próprio profissional, que antes de oferecer ao seu cliente, vai precisar experimentar. O arteterapeuta através de técnicas como desenho, pintura, colagens variadas, decupagem, mandalas, música, dança, teatro, contação de histórias, folclore e mitologia, entre outras, pode oferecer materiais expressivos de modelagem, sucata, fios, linhas, grãos, barro, materiais orgânicos e inorgânicos. Pode ser que algumas delas, seja o início de um processo. 

No vinculo e manejo clínico, a dupla cliente/Arteterapeuta passa pelos mecanismos de transferência e contratransferência, como acolhimento, amor, rejeição e abandono, enquanto mecanismo de defesa do ego e acesso à consciência. Manter-se ou abandonar o processo, tem a ver com estes mecanismos, tanto no cliente como no profissional, valendo assim a necessidade de autoconhecimento à ambos, e de supervisão ao profissional, durante o seu trabalho. Ter o olhar de sua análise própria e de um supervisor experiente, o ajudam a perceber o que é seu e o que é de seu cliente. De acordo com Jung, através da psicologia analítica, as funções psíquicas vão direcionar como cada um (cliente e profissional) se posicionam na sua visão de mundo. Apontam suas percepções e julgamentos diante da vida e assim, se construindo mundo interno e externo. Para este teórico, o homem não suporta uma vida sem significados, ou seja, uma vida que não faça sentido. Na vida humana, o homem caminha para encontrar o sentido das coisas por que passa. Sendo assim, a crise existencial, pode ser um facilitador de crescimento e desenvolvimento pessoal, levando a novas reflexões e um novo momento de vida. Neste contexto, trago a criatividade como um fator inerente a todo ser humano, como objeto de proposta e escolha tanto do profissional como do cliente, pela vivência clínica através da Arteterapia. 

Baseada nesta premissa, onde materiais e técnicas vão se unir para através da criatividade, emergir o mundo interno e externo de cada indivíduo, proponho tratarmos das possibilidades que a Arteterapia tem para trabalhar com as questões étnicas/raciais, utilizando ferramentas que olhem para a saúde mental de pessoas que se sintam excluídas em uma sociedade que nem sempre valoriza as singularidades e suas raízes, por vezes classificadas como diferentes, inferiores ou que trazem algum tipo de incômodo ou ameaça ao coletivo. A Arteterapia necessita estar integrada a outros saberes epistemológicos que, em nossa sociedade, ainda estão a margem, por ignorância ou falta de comprometimento do profissional. Por exemplo, os momentos de crise existencial na mitologia e xamanismo indígena, são tratados através dos 4 elementos da natureza como terra, água, fogo e ar, em rituais de cura como os da medicina dos povos originários, de iniciação e de passagem. Oferecem o acesso as mensagens do mundo onírico e as crenças na sabedoria dos guardiões da floresta (os “encantados”), que se apresentam como seres míticos e espirituais, da natureza humana e do planeta em que vivemos. São eles, forças psíquicas que se configuram arquetipicamente, no folclore, na música, na dança, nas crenças religiosas, nas histórias, buscando a transcendência, transformação, equilíbrio pessoal e coletivo dentro de cada etnia e cultura. 

A criatividade promove a saúde integral e desta forma, a Arteterapia nos convoca a buscar estes saberes ancestrais, principalmente quando o cliente tenha uma descendência de povos originários. Na cultura brasileira, estes aspectos muitas vezes ainda são sentidos como exóticos, inferiores. Porém, os saberes dos povos originários não são inferiores, arcaicos nem regredidos. São saberes que possuem uma epistemologia própria, que mantêm suas raízes no inconsciente coletivo e que buscam sua manifestação expressiva também na arte, configurando uma realidade de energia psíquica, que pode ser trabalhada através da Arteterapia no acolhimento à estas manifestações através da arte, para um trabalho diferenciado. Cada cliente precisa se sentir representado em sua natureza étnica/racial, religiosa e territorial que expressam padrões arquetípicos de comportamentos da humanidade. O teatro, por exemplo, tem a contribuição do povo cigano, que trouxe ao Brasil, sua dança, acrobacias, ilusionismo, a arte de manejar bonecos e a comédia teatral, no reforço a experiência corporal. As religiões de matriz africana, tem os arquétipos com padrões de comportamento e personalidade, a medicina e a arte, mas sofrem intolerância, discriminação e a tentativa de apagamento que por vezes, não são trabalhadas no contexto terapêutico. 

E aqui chegamos as manifestações do racismo estrutural, manifesto ou sutil a pessoas negras e afrodescendentes, levando a sentimentos de menos valia, por quem o sofre o trauma. Assim, possibilidades de trazer as raízes da ancestralidade africana, são muito eficazes para o trabalho de um Arteterapeuta. O letramento étnico racial, produz uma descolonização necessária e atitudes antirracista, que favorecem a evolução psíquica em pessoas brancas ou não brancas. Cor de pele, traços fenotípicos e escolha religiosa, ainda provocam tratamento diferenciado, condicionando estigmas a pretos, mestiços, indígenas e seus descendentes, ciganos e nordestinos; conduzidos por preconceitos que envolvem classe, raça, gênero. Assim também o olhar para possíveis “deficiências”, que levam à exclusão. 

Em Arteterapia, a confecção de personagens ou uma caixa de imagens, necessita ter a representação de pessoas e situações que envolvam raças e etnias diversas; religiões e crenças, natureza e culturas diferenciadas, que tragam imagens de PCD (pessoas com uma ou mais deficiências de natureza física, mental, intelectual ou sensorial) como uma proposta. Valores como acessibilidade, empatia, acolhimento, educação inclusiva, eventos culturais e esportes inclusivos, tecnologia assistida, podem conduzir a reflexão sobre a participação social, o lugar de fala, as oportunidades e necessidades de ocupação em um lugar de direito. 

Referência Bibliográfica 

ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Letramento. BH. 2018 

BERNARDO, P. P. A Prática da Arteterapia. Editado pela autora. SP. 2008 

CARRANO, C; REQUIÃO M.H. Materiais de arte – sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. WAK. RJ. 2022 

JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Vozes. RJ. 1985 

MENINI, N. C. R. Indesejáveis necessários: os ciganos degredados no Rio de Janeiro Setecentista. Tese de doutorado. Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFFRJ. RJ. 2021 

Rozante, R. O Arteterapeuta e a Arteterapia decolonial. blog da AARJ. RJ. 2023 SOVIK, L. Aqui Ninguém é Branco. Aeroplano. RJ. 2009

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Sobre a autora:  Rosangela Rozante



Psicóloga especializada em psicologia clínica (CRP-5/5024), Especialista em Arteterapia pela POMAR/RJ e UNIRIO/RJ (AARJ 302), Mestra em Psicologia Clínica (PUC/RJ). 

Há 25 anos é diretora do Espaço Terapêutico Caminhos do Self Artes e Terapias Integradas Ltda. Supervisora e Coordenadora Geral do Curso de Formação Clínica de Arteterapeutas. Pesquisadora de temas étnico/raciais. Coordenadora do Projeto Afrobetizar entre raízes para pessoas negras e familiares. Autora do livro: “A relação entre o psicólogo negro e o cliente branco em um país racista” (editora Dialética). Ex-membro da Diretoria da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro (AARJ). Ex-coordenadora do Curso de Pós graduação em Arteterapia da UNIFLU – faculdade de Filosofia de Campos dos Goytacazes/RJ. 

Contato: 

Instagran: @caminhosdoself_ 

Facebook: arteterapiaself@gmail.com 

email: caminhosdoselfartes e terapias@gmail.com

segunda-feira, 7 de abril de 2025

ARTETERAPIA E O ENFRENTAMENTO DO LUTO

 



Por Dani Lyrio – SP

@acordar.arteterapia

 

"A morte também é uma terrível brutalidade – nenhum engodo é possível! – não apenas enquanto acontecimento físico, mas ainda mais como um acontecimento psíquico: um ser humano é arrancado da vida e o que permanece é um silêncio mortal e gelado. Não há mais esperança de estabelecer qualquer relação: todas as pontes estão cortadas." – JUNG, 1988, pp. 272-273).

Todos nós viveremos algum tipo de luto um dia, isso é fato. Mas, estamos preparados para esse momento? A ideia de quebra da ponte, de não esperança de relação com a pessoa e/ou coisa perdida, como cita Jung, e um fato desolador.

Quando falamos a palavra "luto", todo mundo entende o que isso significa, mas cada um de nós, em nossa singularidade, enfrenta o luto à sua maneira. Isso pode ser observado no seio familiar: quando ocorre a morte de um ente querido, todos sofrem e vivem o luto, mas cada um sente e vive essa dor de maneira diferente. Esse raciocínio vale para o enfrentamento de todo e qualquer tipo de luto. Afinal, a dor é pessoal e intransferível.

Em 1995, Margaret Stroebe e Henk Schut introduziram o Modelo de Duplo Processamento do Luto. Este modelo propõe que os indivíduos enlutados alternam entre dois tipos principais de estressores: os estressores de perda e os estressores de restauração.

Estressores de Perda:

·         Foco na Perda: Envolve enfrentar diretamente os sentimentos e pensamentos relacionados à perda. Isso inclui sentir a dor da perda, reviver memórias do falecido e experimentar emoções intensas como tristeza, saudade e desespero.

·         Expressão de Emoções: Processar as emoções dolorosas é uma parte essencial do enfrentamento dos estressores de perda, permitindo que a pessoa reconheça e valide sua dor.

Estressores de Restauração:

·         Foco na Restauração: Envolve lidar com as mudanças práticas e cotidianas que ocorrem após a perda. Isso inclui assumir novas responsabilidades, adaptar-se a um novo estilo de vida e redefinir papéis e identidades.

·         Distração e Recuperação: Engajar-se em atividades que proporcionam uma pausa da dor do luto e que ajudam a restabelecer uma sensação de normalidade e bem-estar.

O modelo enfatiza que os indivíduos não enfrentam o luto de uma maneira linear ou fixa. Em vez disso, eles oscilam entre enfrentar estressores de perda e estressores de restauração. Este movimento dinâmico permite que as pessoas processem a dor da perda ao mesmo tempo em que se adaptam às novas circunstâncias de vida. A oscilação entre esses estressores é vista como uma forma saudável de lidar com o luto, permitindo que os indivíduos alternem entre momentos de enfrentamento direto da perda e momentos de recuperação e adaptação.

Embora cada vínculo seja único e insubstituível, a capacidade de uma pessoa de se “recuperar” do luto não advém da sua habilidade de esquecer a pessoa perdida, mas de construir e remodelar seu mundo presumido de modo que inclua e redesenhe o tesouro do passado. (PARKES, 2009, p. 239)

 

Meu Processo de Luto

Falarei do meu processo de luto, vivido com a morte do meu pai. A morte de meu pai foi repentina. Apesar da idade, a ligação no final de uma sexta-feira trazia a mensagem que ainda ouço na minha cabeça: "O papai morreu." Era minha mãe, que chamava meu pai carinhosamente de "pai/papai". O momento tão temido chegou, e agora? Passados o velório e o enterro, e após aquele período em que a atenção se volta para nós em uma situação dessas, chega a hora de lidar com a nova realidade que a vida nos apresenta. Como será viver a falta de alguém que amamos tão profunda e verdadeiramente?

 

Arteterapia e Gratidão

Esse meu processo de luto aconteceu durante a formação em Arteterapia. Apesar de toda a dor que o luto nos faz sentir, consegui sentir uma gratidão muito grande por ter tido meu pai ao meu lado por 43 anos. Durante esse meu processo, eu senti uma vontade/necessidade de fazer uma representação da cadeira onde meu pai se sentava. Era o momento que estávamos sentados em volta da mesa, contando histórias, contando causos, tomando nossa cervejinha. Essa imagem sempre vem acompanhada da música "Naquela Mesa":

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim

  (Sérgio Bittencourt, 1972,

em homenagem a seu pai, Jacob do Bandolim)

 

Passado um tempo após a produção do desenho da cadeira, me veio a necessidade/vontade de fazer uma transposição dessa imagem. Foi então que surgiu uma poesia:

A Cadeira do Siqueira

Se essa cadeira falasse
Ela contaria
Sobre uma família
Sobre uma filha
Que não superou a
Partida de seu grande amor
Uma cadeira que agora vazia
Antes sentia
O peso do amor
É, não tem jeito
A dor no peito
Que sua ausência deixou.

A transposição de imagem na arteterapia pode ser definida como um processo de transformação visual e simbólica, no qual uma imagem original é reinterpretada, deslocada ou reconstruída em um novo suporte, técnica ou material, promovendo diferentes leituras e significados.

Esse conceito se fundamenta na ideia de que a imagem não é fixa, mas dinâmica, permitindo múltiplas possibilidades expressivas e projetivas. A transposição pode ocorrer por meio da mudança de material (exemplo: de desenho para colagem), do redimensionamento (ampliação ou redução), da alteração do contexto (inserção da imagem em um novo ambiente) ou da ressignificação subjetiva do conteúdo original.

O texto que escrevo agora também é uma transposição da imagem, auxiliando-me nesse enfrentamento. Ao expressar minha dor, a repito, mas faço uso de diferentes linguagens que favorecem sua elaboração.

Na perspectiva arteterapêutica, a transposição de imagem favorece o aprofundamento do processo criativo e terapêutico, permitindo ao sujeito revisitar, ressignificar e integrar aspectos de sua produção simbólica de maneira fluida e transformadora.

Lendo, estudando sobre enfrentamento do luto, hoje, consigo fazer uma relação direta ao recurso que eu tinha disponível para aliviar a minha dor, a arteterapia, ao Modelo de Duplo Processamento do Luto. Fiz uso dos estressores de perda, focando na expressão de emoções, e dos estressores de restauração, através da distração e recuperação.

Enfrentar o luto é todo dia, ele não passa, ele não acaba, por vezes, ele se torna suportável, algo que aprendemos a lidar, tendo em mente que existirão dias melhores e dias piores de enfrentamento.

Hoje, sinto que a saudade vem em ondas mais suaves, e, em sua maioria, sem o desespero da ausência. O peito ainda aperta, a voz ainda embarga, as lágrimas ainda caem, mas de uma maneira mais tranquila, sinto que ele agora vive em mim.

 

 

 

Referências Bibliográficas:

JUNG, C. G. Memórias, Sonhos, Reflexões. 11ª Edição. Vozes, 1989.      

https://repositorio.pucsp.br/jspui/bitstream/handle/24522/1/Fab%c3%adola%20Mancilha%20Junqueira.pdf

https://psycnet.apa.org/doiLanding?doi=10.1037%2F10397-003

https://blog.ijep.com.br/o-luto-e-o-silencio-da-morte/

https://www.enlutados.com.br/2024/11/modelo-de-processo-dual-de.html

https://novabrasilfm.com.br/notas-musicais/multiversos-naquela-mesa-de-sergio-bittencourt

PARKES, C. M. Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações. São Paulo: Summus, 2009.


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Sobre a autora: Dani Lyrio 



Graduação em Administração de Empresas com Ênfase em Comércio Exterior. Especialização em Arteterapia pelo Nape, São Paulo. 

Atendimentos on-line e presencial (Zona sul)  na cidade de São Paulo.