Por Rosangela Rozante - RJ
@caminhosdoself_
Em Arteterapia encontramos relações terapêuticas que vão se estabelecendo de forma verbal e não verbal, construídas através de conteúdos metafóricos e simbólicos, numa subjetividade que vai encontrar sua via de melhor expressão, no acesso a história pessoal e coletiva de cada cliente. Apresenta-se como uma abordagem diferenciada para conduzir o tempo interno de cada cliente, em busca de sua transformação, ainda que hoje, as pessoas tenham muitas dificuldades em lidarem com suas frustrações, com o tempo e ansiedades de resultados rápidos. Assim, as técnicas e os materiais expressivos vão participar desta relação terapêutica, trabalhando este tempo interno.
Cabe ao Arteterapeuta personalizar cada atendimento como um aprendizado de vivência clínica. Por exemplo: o jeito como uma pintura ou desenho é proposto ao cliente, faz toda diferença e por isto, cada caso é um caso em sua singularidade. Técnicas e materiais, precisam estar acompanhando a necessidade de cada cliente, para o que está se apresentando como um obstáculo em sua vida naquele momento, e aqui, me reporto ao seu passado, presente e também ao seu futuro, pois a psique não estabelece uma relação com o tempo cronológico, tendo em vista que nosso inconsciente é atemporal. O que nos mobiliza hoje, pode ter repercussões psíquicas que atravessam os tempos, trazendo emoções e sentimentos na medida em que são acessados.
Não há o material ou técnica, mais fácil ou mais difícil, já que cada caso é um caso. Não há uma comprovação por exemplo de que o desenho ou a colagem enquanto técnicas, possam facilitar o início de um processo. Isto é fruto de anamnese. O acesso às técnicas e materiais, surgem de acordo com as experiências de vida e experiências expressivas, tanto de clientes como do próprio profissional, que antes de oferecer ao seu cliente, vai precisar experimentar. O arteterapeuta através de técnicas como desenho, pintura, colagens variadas, decupagem, mandalas, música, dança, teatro, contação de histórias, folclore e mitologia, entre outras, pode oferecer materiais expressivos de modelagem, sucata, fios, linhas, grãos, barro, materiais orgânicos e inorgânicos. Pode ser que algumas delas, seja o início de um processo.
No vinculo e manejo clínico, a dupla cliente/Arteterapeuta passa pelos mecanismos de transferência e contratransferência, como acolhimento, amor, rejeição e abandono, enquanto mecanismo de defesa do ego e acesso à consciência. Manter-se ou abandonar o processo, tem a ver com estes mecanismos, tanto no cliente como no profissional, valendo assim a necessidade de autoconhecimento à ambos, e de supervisão ao profissional, durante o seu trabalho. Ter o olhar de sua análise própria e de um supervisor experiente, o ajudam a perceber o que é seu e o que é de seu cliente. De acordo com Jung, através da psicologia analítica, as funções psíquicas vão direcionar como cada um (cliente e profissional) se posicionam na sua visão de mundo. Apontam suas percepções e julgamentos diante da vida e assim, se construindo mundo interno e externo. Para este teórico, o homem não suporta uma vida sem significados, ou seja, uma vida que não faça sentido. Na vida humana, o homem caminha para encontrar o sentido das coisas por que passa. Sendo assim, a crise existencial, pode ser um facilitador de crescimento e desenvolvimento pessoal, levando a novas reflexões e um novo momento de vida. Neste contexto, trago a criatividade como um fator inerente a todo ser humano, como objeto de proposta e escolha tanto do profissional como do cliente, pela vivência clínica através da Arteterapia.
Baseada nesta premissa, onde materiais e técnicas vão se unir para através da criatividade, emergir o mundo interno e externo de cada indivíduo, proponho tratarmos das possibilidades que a Arteterapia tem para trabalhar com as questões étnicas/raciais, utilizando ferramentas que olhem para a saúde mental de pessoas que se sintam excluídas em uma sociedade que nem sempre valoriza as singularidades e suas raízes, por vezes classificadas como diferentes, inferiores ou que trazem algum tipo de incômodo ou ameaça ao coletivo. A Arteterapia necessita estar integrada a outros saberes epistemológicos que, em nossa sociedade, ainda estão a margem, por ignorância ou falta de comprometimento do profissional. Por exemplo, os momentos de crise existencial na mitologia e xamanismo indígena, são tratados através dos 4 elementos da natureza como terra, água, fogo e ar, em rituais de cura como os da medicina dos povos originários, de iniciação e de passagem. Oferecem o acesso as mensagens do mundo onírico e as crenças na sabedoria dos guardiões da floresta (os “encantados”), que se apresentam como seres míticos e espirituais, da natureza humana e do planeta em que vivemos. São eles, forças psíquicas que se configuram arquetipicamente, no folclore, na música, na dança, nas crenças religiosas, nas histórias, buscando a transcendência, transformação, equilíbrio pessoal e coletivo dentro de cada etnia e cultura.
A criatividade promove a saúde integral e desta forma, a Arteterapia nos convoca a buscar estes saberes ancestrais, principalmente quando o cliente tenha uma descendência de povos originários. Na cultura brasileira, estes aspectos muitas vezes ainda são sentidos como exóticos, inferiores. Porém, os saberes dos povos originários não são inferiores, arcaicos nem regredidos. São saberes que possuem uma epistemologia própria, que mantêm suas raízes no inconsciente coletivo e que buscam sua manifestação expressiva também na arte, configurando uma realidade de energia psíquica, que pode ser trabalhada através da Arteterapia no acolhimento à estas manifestações através da arte, para um trabalho diferenciado. Cada cliente precisa se sentir representado em sua natureza étnica/racial, religiosa e territorial que expressam padrões arquetípicos de comportamentos da humanidade. O teatro, por exemplo, tem a contribuição do povo cigano, que trouxe ao Brasil, sua dança, acrobacias, ilusionismo, a arte de manejar bonecos e a comédia teatral, no reforço a experiência corporal. As religiões de matriz africana, tem os arquétipos com padrões de comportamento e personalidade, a medicina e a arte, mas sofrem intolerância, discriminação e a tentativa de apagamento que por vezes, não são trabalhadas no contexto terapêutico.
E aqui chegamos as manifestações do racismo estrutural, manifesto ou sutil a pessoas negras e afrodescendentes, levando a sentimentos de menos valia, por quem o sofre o trauma. Assim, possibilidades de trazer as raízes da ancestralidade africana, são muito eficazes para o trabalho de um Arteterapeuta. O letramento étnico racial, produz uma descolonização necessária e atitudes antirracista, que favorecem a evolução psíquica em pessoas brancas ou não brancas. Cor de pele, traços fenotípicos e escolha religiosa, ainda provocam tratamento diferenciado, condicionando estigmas a pretos, mestiços, indígenas e seus descendentes, ciganos e nordestinos; conduzidos por preconceitos que envolvem classe, raça, gênero. Assim também o olhar para possíveis “deficiências”, que levam à exclusão.
Em Arteterapia, a confecção de personagens ou uma caixa de imagens, necessita ter a representação de pessoas e situações que envolvam raças e etnias diversas; religiões e crenças, natureza e culturas diferenciadas, que tragam imagens de PCD (pessoas com uma ou mais deficiências de natureza física, mental, intelectual ou sensorial) como uma proposta. Valores como acessibilidade, empatia, acolhimento, educação inclusiva, eventos culturais e esportes inclusivos, tecnologia assistida, podem conduzir a reflexão sobre a participação social, o lugar de fala, as oportunidades e necessidades de ocupação em um lugar de direito.
Referência Bibliográfica
ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Letramento. BH. 2018
BERNARDO, P. P. A Prática da Arteterapia. Editado pela autora. SP. 2008
CARRANO, C; REQUIÃO M.H. Materiais de arte – sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. WAK. RJ. 2022
JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Vozes. RJ. 1985
MENINI, N. C. R. Indesejáveis necessários: os ciganos degredados no Rio de Janeiro Setecentista. Tese de doutorado. Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ UFFRJ. RJ. 2021
Rozante, R. O Arteterapeuta e a Arteterapia decolonial. blog da AARJ. RJ. 2023 SOVIK, L. Aqui Ninguém é Branco. Aeroplano. RJ. 2009
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Sobre a autora: Rosangela Rozante
Psicóloga especializada em psicologia clínica (CRP-5/5024), Especialista em Arteterapia pela POMAR/RJ e UNIRIO/RJ (AARJ 302), Mestra em Psicologia Clínica (PUC/RJ).
Há 25 anos é diretora do Espaço Terapêutico Caminhos do Self Artes e Terapias Integradas Ltda. Supervisora e Coordenadora Geral do Curso de Formação Clínica de Arteterapeutas. Pesquisadora de temas étnico/raciais. Coordenadora do Projeto Afrobetizar entre raízes para pessoas negras e familiares. Autora do livro: “A relação entre o psicólogo negro e o cliente branco em um país racista” (editora Dialética). Ex-membro da Diretoria da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro (AARJ). Ex-coordenadora do Curso de Pós graduação em Arteterapia da UNIFLU – faculdade de Filosofia de Campos dos Goytacazes/RJ.
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