segunda-feira, 31 de maio de 2021

DIÁLOGOS ENTRE ARTE E TARÔ: UMA INTRODUÇÃO

Por Mercedes Duarte - RJ 

duarte.mercedes@gmail.com

Este texto é parte de meu trabalho de conclusão de curso de Arteterapia, realizado no Espaço Terapêutico Psi. O intuito, que pretende ultrapassar esse texto, é o de apresentar para o(a) leitor(a), a cada publicação mensal, fragmentos dessa pesquisa. Vamos ao cerne da proposta:

Neste trabalho, busquei demonstrar a possibilidade de estabelecer relações, com intuito terapêutico, entre as cartas de tarô e as artes, seja no que concerne a movimentos artísticos, técnicas, materiais, teorias e/ou a história de vida de artistas. Apresentei possibilidades de diálogo especificamente entre os arcanos maiores do tarô e elementos artísticos que possam viabilizar a aproximação do sujeito ao conteúdo arquetípico das cartas de tarô. Trouxe algumas possibilidades sem a pretensão de esgotá-las, evidentemente, já que é um diálogo realizado a partir do ponto de vista da autora desse trabalho. Devemos levar em conta que os conteúdos arquetípicos nunca se esgotam e que, desse modo, cada indivíduo pode apreendê-los em seus diferentes aspectos.

Essa proposta surgiu no módulo de Leitura Simbólica - ministrado pela professora Naila Brasil, também orientadora deste trabalho -, onde pudemos compreender o tarô, associado à mitologia grega, como instrumento terapêutico. Inspirada pela possibilidade de trazer o tarô para o setting terapêutico, e também pelas aulas de História da Arte da professora e arteterapeuta Eliana Moraes, passei a buscar diálogos possíveis entre tarô e a arte, ao invés do diálogo mais recorrente na Arteterapia do tarô com as mitologias grega e romana. O intuito é o de lançar mão desse diálogo como estímulo projetivo, ou seja, como um recurso artístico de sensibilização, facilitador da projeção de conteúdos psíquicos que precisam ser elaborados, ampliando assim o repertório de atuação arteterapêutica.

Essas reflexões se desdobraram em vivências que passaram a compor a Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, em desenvolvimento desde o início do ano de 2021. Portanto, proponho apresentar a(o) leitor(a), nas próximas publicações, reflexões acerca de cada arcano maior do tarô associadas às propostas terapêuticas e às experiências realizadas nas vivências. Desse modo, exponho, nesse presente texto, somente a concepção geral que embasa essa Jornada. 

O Tarô e a Arteterapia: uma interação profícua 

O tarô é um oráculo que possui 78 cartas, sendo 22 arcanos maiores, significando segredos maiores, que diriam respeito a aspectos psicológicos do sujeito, e 56 arcanos menores, segredos menores, relativos aos cinco elementos da natureza. Além de ser considerado uma arte divinatória, o tarô pode ser concebido como um objeto de investigação psíquica do indivíduo. A partir de uma perspectiva junguiana de sincronicidade, o ato de embaralhar e escolher uma carta, uma imagem, possibilitaria aquilo que frequentemente é considerado uma “coincidência”, uma convergência simbólica entre, por exemplo, a narrativa que a carta escolhida propicia e a configuração ou momento de vida de quem a escolheu.

Os arcanos maiores do tarô, os quais mais comumente são utilizados nas práticas terapêuticas, podem apresentar fases do desenvolvimento humano, etapas da Jornada do Herói (BANZHAF, 2011; NICHOLS, 1997). Cada carta, então, representaria um arquétipo (JUNG, 2000), uma expressão imagética e simbólica de padrões cristalizados da experiência humana, próprios ao inconsciente coletivo (NICHOLS, 1997).

Na Arteterapia, o contato com essas imagens do tarô – utilizadas como estímulos projetivos - possibilita a produção de sentidos e significados, na interação cliente/terapeuta, em diálogo com os conteúdos psíquicos que precisam ser visibilizados e elaborados. O estímulo projetivo facilita, portanto, a realização do trabalho plástico no setting terapêutico, que servirá também, por sua vez, como recurso projetivo para elaboração daquele conteúdo expresso pelo próprio cliente.

            A projeção é um processo inconsciente em que identificamos, características que são nossas, primeiramente em um outro, tais como objetos, acontecimentos ou pessoas, ou seja, projetamos nosso mundo interior no exterior sem percebermos. Portanto, ao nos darmos conta, as projeções se tornam ferramentas ricas no processo de autoconhecimento. Assim, ao entrarmos em contato com determinado estímulos podemos projetar neles nossas questões subjetivas. De acordo com Sallie Nichols (1997), os arcanos do tarô podem ser considerados excelentes detentores da projeção, pois “representam simbolicamente as forças instintuais que operam de modo autônomo nas profundezas da psique humana e que Jung denominou de arquétipos” (1997, p. 26).

Sabemos que, em determinado momento da vida, os indivíduos passarão por uma transformação profunda (Arcano da Morte), que se depararão com escolhas difíceis (Arcano dos Enamorados), que precisarão estruturar e executar um plano com domínio (Arcano do Imperador) ou simplesmente iniciá-lo com entrega e desprendimento (Arcano do Louco). Assim, esses arcanos do tarô, por dialogarem com a experiência humana, resultam em ricos recursos projetivos arteterapêuticos.

Nessa proposta de trabalho, como vimos acima, as obras, biografias, teorias, materiais e técnicas artísticas, além de serem utilizadas como técnicas projetivas, são consideradas elementos de apoio para a compreensão e aproximação dos arquétipos relativos aos arcanos maiores do tarô. 

A aventura da Jornada Arquetípica

 Como mencionado acima, podemos compreender o tarô como a representação de uma Jornada Arquetípica da existência, uma Jornada do Herói (BANZHAF, 2011), uma viagem em que cada arcano apresenta uma de suas etapas, uma de suas fases rumo ao desenvolvimento pessoal, em busca da realização de si. Essa Jornada poderá se repetir inúmeras vezes para o herói, mas sempre em níveis diferentes, como num movimento espiral. Para tal compreensão do tarô, Sallie Nichols (1997), e Jaime E. Cannes (2021) inspirado no trabalho de Sallie Nichols (1997), adaptou as cinco etapas do processo de individuação de Jung a um esquema que organiza as cartas do tarô de modo a expressar momentos diferentes dessa Jornada. Vinte e um dos vinte dois arcanos são divididos em três fileiras de sete cartas cada, excetuando o Louco, que se posiciona fora desses três níveis, como vemos no esquema abaixo:

O Louco é aquele que atravessa a Jornada obedecendo a um impulso primeiro. Ele representa o herói que sai em busca do conhecimento que não possui.

O primeiro setenário - associado à infância, ao Caminho do Indivíduo (CANNES, 2021) e ao Reino dos Deuses (NICHOLS, 1997) – reúne alguns arquétipos celestiais que possuem forte influência sobre o herói. Essa fase inicia com o Mago, Arcano I, e encerra com o Carro, Arcano VII. O herói então se conecta ao poder criador (Mago I) e à sabedoria universal (Papisa II). Ele também encontra, nesse setenário, a arquétipo do Pai e da Mãe, que o apresenta ao mundo dos prazeres e dos sentidos (Imperatriz III), bem como ao universo das estruturações e realizações (Imperador IV). Pelo Papa (V), seu professor, o herói é iniciado nos conhecimentos formais e espirituais. Ainda nesse nível, nosso caminhante é conclamado a amadurecer, a adentrar o mundo social, aprendendo a tomar decisões e a fazer suas próprias escolhas, com um(a) companheiro(a) ou não, ele está ciente que precisa seguir seu próprio caminho (o Enamorado VI). Nesse momento ele se move em direção ao mundo (segunda fileira), de forma confiante, tomando as rédeas de sua direção (o Carro VII).

A segunda fileira, que inicia com a Justiça e finaliza com a Temperança, pode ser concebida como o Reino da Realidade Terrena e da Consciência do Ego (NICHOLS, 1997), ou o Caminho das Leis (CANNES, 2021). É quando o indivíduo ingressa no mundo buscando libertar-se da influência da família arquetípica, da primeira fileira. Nesse lugar o herói desenvolve e toma consciência do ego e estabelece sua identidade e um lugar na ordem social. Também compreende que tudo é regulado por regras, princípios e leis. Ao ingressar no mundo, o indivíduo passa a compreender que será impelido a buscar o equilíbrio (NICHOLS, 1997) e aprenderá que o mundo, e nós mesmos, somos regidos por princípios e leis (CANNES, 2021).

A Justiça (VIII) ensinará todas as leis, das penais, físicas e espirituais e irá ajudá-lo a lidar com problemas de ordem moral. Também aprenderá que ele será o único responsável por suas ações e que a solidão é parte integrante dessa existência (o Eremita IX). A Roda da Fortuna (X) mostrará os ciclos da vida, a lei de que tudo muda e se repete de forma diferente, evocando assim um desenvolvimento pessoal.  Aprenderá que para haver desenvolvimento é preciso determinação e o enfrentamento e equilíbrio entre si e sua natureza instintiva (a Força XI). Mas que também é necessário dosar a vaidade, pois, por mais forte que seja, diante dos imponderáveis, como a morte e o envelhecimento, nos tornamos impotentes, restando apenas a entrega como modo de contemplação transcendente (o Enforcado XII). A Morte (XIII) é mais uma lei, e que ensinará que todo fim é uma transcendência, e que tudo se transforma. É a morte, portanto, por seu caráter limite da experiência humana, que inspira a busca por experiências e questionamentos espirituais e filosóficos (a Temperança XIV).

Por último, a terceira fileira é inaugurada pelo Diabo e encerrada pelo Mundo. É nesse último nível que encontramos o Caminho da Transcendência (CANNES, 2021), ou o Reino da Iluminação e Auto realização (NICHOLS, 1997), onde o indivíduo, após ter se estabelecido no mundo exterior, e tomado consciência das influências externas que o domina, olha também com mais consciência para seu mundo interior. O mundo externo, os arquétipos condicionantes, já não possuem tanto domínio sobre ele. Agora pode voltar-se para o que Jung denominou de self, um centro psíquico mais amplo que abrange toda a psique (consciente e inconsciente) (NICHOLS, 1997), em um caminho direcionado à integração e individuação, de modo a conectar-se com seu verdadeiro eu, com sua singularidade.

Rumando à auto realização, o herói se depara com o anjo caído (o Diabo XV), que traz lampejos de luz através da tentação, o inspirando a buscar por transcendências físicas, carnais, esquecendo de sua espiritualidade. Em meio a uma crise de grandes proporções (a Torre XV), que expõe o caráter ilusório do que se vivia, é possível a libertação das amarras do ego. A partir dessa ruptura, com a nudez ensejada pela ausência dos artifícios mundanos, há o vislumbre de que somos parte de algo muito maior, estabelece-se então a esperança de comunhão e cura da alma (a Estrela XVII). Entretanto, antes de um grande salto na evolução, o medo e as inseguranças tomam conta do herói (a Lua XVIII). Mas caso o herói não recue e resista, atravessando os mares de fantasmas, a consciência adquirida se consolida e uma profunda clareza sobre seu propósito se estabelece (o Sol XIX). É nesse momento que há um renascimento, quando todas as coisas passam a ter conexão, e através da rememoração de toda a caminhada o herói encontra o sentido último da existência (o Julgamento XX). E então todas as forças antagônicas com as quais o herói estava lutando unem-se e fluem juntas numa grande dança harmoniosa (o Mundo XXI). 

Considerações finais 

Com essa explanação, lançamos base para discorrermos e refletirmos, nas próximas publicações, sobre cada arcano maior do tarô (associado a determinado aspecto da arte), bem como acerca das propostas terapêuticas associadas, e a apresentação de algumas experiências vividas nas oficinas que lançam luz sobre a proposta do trabalho. As publicações serão mensais, entretanto, o primeiro texto em que será apresentado um arcano em diálogo com determinado aspecto da arte, será publicado na próxima semana, com o arquétipo do Louco. Até breve! 

Bibliografia 

BANZHAF, Hajo (2011). O Tarô e a Viagem do Herói: A Chave Mitológica para os Arcanos Maiores. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. Editora Pensamento: São Paulo.

 CANNES, J. E. (2021). Arcanos Maiores: o Mapa da Vida. Site: Clube do Tarô.

Disponível em http://www.clubedotaro.com.br/site/m33_Jaime_Cannes_Caminhos.asp

Acesso em 06/05/21.

 JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2000). Trad. Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Editora Vozes: Petrópolis. 

___________ [et al.] (2008). O homem e seus símbolos. [concepção e organização Carl G. Jung]. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. 

MORAES, Eliana. (2017). Algumas reflexões sobre a música na clínica da Arteterapia. Blog Não-palavra. Publicado em Segunda-feira, 9 de outubro, de 2017.

Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/2017/10/algumas-reflexoes-sobre-musica-na.html Acesso em 29/04/21.

 NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte


Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos

segunda-feira, 24 de maio de 2021

O SENTIMENTO DE EMPATIA LIGANDO NEUROCIÊNCIA, PSICOLOGIA ANALÍTICA E ARTETERAPIA


Por Andréa Goulart de Carvalho - MG

goulart17@hotmail.com 

A Neuriociência demonstra que a ínsula está envolvida em muitas atividades que englobam o sentimento de empatia. É pertinente pois, afirmar que envolva-se também, de maneira importante, na expressão desta emoção nas atividades Arteterapeuticas, onde os recursos da arte são utilizados, buscando a ligação empática entre o símbolo e seu significado, permitindo o desenvolvimento do processo de individuação.

Carlos Byington, médico Psiquiatra e Analista Junguiano, afirma que o experimento de associação de palavras de Jung, origem dos conceitos de complexo e arquétipo, demonstrou que a razão da alteração no padrão de resposta de uma palavra-estímulo, inconsciente e inexplicável para o sujeito da experiência, mas que é comprovada objetivamente com o surgimento dos símbolos e funções estruturantes, está na elaboração das polaridades mente-corpo e consciente-inconsciente. Partindo do principio de que tudo é símbolo e que a vivência dele é acompanhada de forte emoção, podendo gerar sentimento de empatia, unindo o subjetivo e o objetivo. 

A palavra empatia deriva do grego EMPATHEIA tendo sido inicialmente empregada para a compreensão estética e emocional de um objeto, de uma obra de arte ou de uma situação significativa. 

Joseph Cambray (2013) registra que o termo original em alemão para empatia significa “sentir-se em”, relacionando a dinâmica dentro da obra de arte com as experiências subjetivas originárias dos estados somáticos e afetivos engendrados ao se ver a arte, envolvendo um ato inconsciente, involuntário de transferência de si aos objetos. Posteriormente, a compreensão psicológica da empatia foi desenvolvida como a imitação de ações de outros gerando experiências empáticas e respostas a gestos, expressões faciais e tom de voz carregados de emoção, suscitando o mesmo no observador. 

Nas relações interpessoais, a empatia é a aptidão de identificação com os outros, colocando-se em seu lugar, compreendendo seus sentimentos e seu modo de ser, sem a perda da própria compreensão e, para isto, conta com os neurônios-espelho.

O cérebro humano, dotado da capacidade verbal de comunicação, tem o sistema de neurônios-espelho mais evoluído, permitindo que faça e compreenda o significado das ações, de pensamentos, das emoções, de atitudes e sentimentos ao seu redor, onde espelhar ou simular as ações pode antecipar respostas, permitindo análise de metáforas e tomadas de decisões. 

Pesquisas mostram que a empatia envolve regiões cerebrais ancestrais e a ativação do sistema empático é frequentemente inconsciente, de modo sincronístico. Desta forma, o cérebro é produto de uma seleção natural onde as pressões do ambiente social determinaram quais características permaneceriam para as gerações futuras, para a sua própria sobrevivência. Para Cambray, o impacto dos neurônios espelho sobre o nosso entendimento de como estamos ligados uns aos outros e com as outras criaturas e até objetos de nosso mundo foi tremendo. 

Talvez a criação retrospectiva de uma lenda urbana aqui reflita a tendência humana de criar narrativas em torno dos eventos sincronísticos ou emergentes, tornando-os míticos - eu sugeriria que o início do século XXI se tornou uma época da mitologia do cérebro com a verificação neurocientífica das verdades arquetípicas“ (CAMBRAY, 2013. p.176). 

A Neuroimagem é uma das técnicas da Neurociência para mapeamento cerebral que fornece imagens computadorizadas para o estudo das estruturas e funcionamento do Sistema Nervoso, a compreensão da atividade mental e do comportamento humano. Ela permite a visualização do cérebro emocional e as memórias emocionais em ação. 

O cérebro emocional é a estrutura mais antiga e profunda do cérebro. Está situada entre o lobo temporal e parietal, dividido em duas regiões distintas, a insula anterior (ou frontal) e a insula posterior. 

A ínsula envolve atividades das bases neurofisiológicas da emoção e das funções reguladoras do corpo - paladar, batimentos cardíacos, temperatura corporal, percepção sensorial a contatos físicos e dos movimentos dos órgãos internos e dos instintos, regulando os comportamentos de luta e fuga, primordial para a preservação das espécies. 

O Inconsciente Coletivo, segundo Jung, guarda a herança da evolução da humanidade e nele, a psique e a matéria estão inter-relacionadas, promovendo a construção de cada indivíduo e das várias culturas nas quais está inserido, com as informações arquetípicas e impessoais que precisam de experiências reais para se manifestarem. 

As imagens arquetípicas, expressas através dos símbolos, surgem em estados de consciência alterados como nos sonhos, nas visualizações criativas, nas meditações, imaginações ativas, nos mitos - analogias dos arquétipos que são imagens inconscientes dos próprios instintos, criados como forma de explicar fenômenos psíquicos.

 Jung afirma que:

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente coletivo é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e, no entanto, desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade (JUNG, 2013. p. 51).

 

A Psicologia Analítica estuda a manifestação dos arquétipos através de questões ligadas à alma, às emoções, analisando o produto genuíno da psique, o símbolo. As emoções são estimuladas por sentimentos que impulsionam a vida, manifestando reações do homem, com ele mesmo e seu entorno. 

A Neuroimagem propiciou uma nova forma para o conhecimento do cérebro e do inconsciente favorecendo a compreensão dos pensamentos, da construção das ideias e da comunicação e suas simbologias manifestadas, principalmente, através da arte e das emoções por ela geradas. 

A palavra emoção é derivada de mover, colocar em movimento, entendendo que a emoção é um movimento do interior para o exterior do indivíduo, executado para comunicar estados de espírito e necessidades internas, acompanhadas de respostas que prepararam o indivíduo para ação. 

As respostas vêm de áreas subcorticais do sistema nervoso que se relacionam, além das emoções, com os instintos e com a memória, estando presentes em todos os mamíferos e responsáveis pelas funções básicas como comer, beber, reproduzir e do equilíbrio fisiológico.

 A base da estrutura arquetípica foi lançada por Jung ao afirmar que o corpo e a psique têm uma estruturação arquetípica, comum a toda a humanidade, que será elaborada, involuntariamente, para que o homem possa alcançar o propósito da sua totalidade - a individuação. 

Jung postulava ainda que o cérebro é um órgão ligado à psique e que para o funcionamento equilibrado de todos os seus componentes, tanto fisicamente quanto socialmente, é preciso que os dados captados pelos canais sensoriais sejam transformados em informações através de redes neurais, resultando no estado mental, emocional e comportamental de determinado momento e consequentemente na forma de expressão destes momentos nas artes e nos processos expressivos, como nos processos arteterapeuticos.

Desta forma, a região da ínsula, quando aparece ativada nas imagens de neuroimagem, mostra ser a estrutura de integração entre a emoção e a razão, que é energizada com a indução de recordações e memórias, provocando sensações de felicidade ou tristeza, prazer e recompensa, raiva, medo, desafios de luta e fuga, diretamente ligadas às associações emocionais para tomada de decisões, dependendo das ações vivenciadas que poderão ser expressas na arte e nos processos arteterapeuticos e,  como Jung analisa, em seu O Livro Vermelho (2015), Apêndice B - “Essas imagens primordiais têm um poder secreto, que atua tanto sobre a razão quanto sobre a emoção da pessoa humana... Este poder secreto é como um feitiço, como magia que causa tanto elevação quanto sedução” (p.498/499), o desenvolvimento e surgimento de inovações teóricas e descobertas da relação cérebro e emoções, sensações primordiais à evolução e compreensão que temos de nós mesmos. 

Assim, podemos afirmar que a Arteterapia, ao utilizar-se da emoção empática na produção/expressão artística, como modo de comunicação dos universos interno e externo de um indivíduo, por meio de sua simbologia e com o objetivo de auxiliar e facilitar alcançar equilíbrio mental, físico e emocional esta diretamente associada à Neurociência e à Psicologia Analítica, diante da verificação de que a região insular atua diretamente na manifestação das emoções e que, de acordo com Jung, a psique é imagem e que as imagens são parte preponderante nas expressões no processo arteterapeutico, no trabalho de conteúdos inconscientes para a ampliação da consciência.

Referências

- BYINGTON, Carlos A. B. Os conceitos de Símbolo e de Função Estruturante como ponte entre a Psicologia Analítica, a Psicologia Cognitivo Comportamental e as Neurociências. Um estudo da psicologia simbólica Junguiana.

Palestra pronunciada na Faculdade de Medicina da Universidade Central da  Venezuela, em 14.06.2007. http://www.carlosbyington.com.br/site/wp

- CAMBRAY, Joseph. Sincronicidade: Natureza e Psique num Universo Interconectado. Petrópolis, RJ. Vozes, 2013.

- SANTOS, Alan Ferreira dos. Psicologia Analítica e Neurociências: uma tentativa de comunicação – 2016. Psicologia.pt - Documento publicado em 8 de janeiro de 2017.

- RAMOS, Denise Gimenez. Entre a Psique e a Matéria - Novas Conexões. Núcleo de estudos Junguianos simpósios e eventos.

https://www.pucsp.br/jung/portugues/simposios_eventos/I_simposios.html

Acesso em 7 de novembro de 2003.

- HARMATH, Carlos A. C.. Psicologia Junguiana à luz da Neurociência Mente – Cérebro: noções básicas de neurociências para psicólogos e psiquiatras.

No prelo.

___________Neurociências, Psicanálise e Psicologia Analítica. Trabalho de

conclusão apresentado à SBPA, 1990. Não publicado.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. O.C., Vol. 9/1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

___________Collected Works. Vol. XVIII. Parágrafo 84.

___________O Livro Vermelho: edição sem ilustrações, Apêndice B – Comentários, Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

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Sobre a autora: Andréa Goulart de Carvalho


Artista Plástica, bacharel em desenho e gravura - EBA/UFMG/1982; Designer Gráfico; Arteterapeuta - AMART107/0112, afiliada a UBAAT/2011; Facilitadora de SoulCollage®️/2016; Especialista em Psicologia Analítica pela USCS. 

Atendimento individual e em grupo, Oficinas e Cursos na AGC Arte & Arteterapia. 

Facebook - Andrea G Carvalho e AGC&Arteterapia

Instagram - @AGC017 e @soulcollage_bh


segunda-feira, 17 de maio de 2021

GRUPO QUIRON: Um relato de caso

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Neste período de pouco mais de um ano de práticas arteterapêtuicas online, sem dúvida, uma das experiências que mais tem me marcado é sustentar o “Grupo Quíron: encontros com o curador ferido”. Este projeto nasceu no início da pandemia, em diálogo com minha grande parceira Regina Célia Rasmussen, do Espaço Crisântemo - SP. Esta parceria que nasceu em tempos de encontros presenciais, ganhou novos territórios quando nos demos as mãos e decidimos nos lançar aos enfrentamentos das práticas online.

Nossa escuta esteve atenta aos arteterapeutas que compartilhavam conosco a intensa demanda diante de um social em caos e sofrimento, mas ao mesmo tempo eles próprios necessitados de acolhimento e reabastecimento para retornarem ao seu ofício. Neste sentido lembrei-me do mito de Quíron, um centauro que em determinado momento de sua história, é ferido por uma flecha envenenada de seu grande amigo Hércules. QuÍron era um ser imortal, mas como o ferimento não poderia ser curado, passou a sentir dores terríveis. E justamente ao reconhecer-se vulnerável, por reconhecer suas próprias feridas e sofrimento, fez-se empático e compreensivo à dor do outro, tornando-se assim o curador ferido.

Uma das aplicabilidades para este mito se dá ao entendermos que Quíron é o mito do terapeuta: um ser que possui uma escuta empática e sensível à dor do outro e que se dedica à sua “cura”, justamente porque reconhece suas próprias feridas e sofrimento. A partir dessa consciência de si, torna-se tão importante que o terapeuta reconheça sua própria necessidade de cuidado:

 

Mas... no contexto de um equilíbrio dinâmico de cuidados, reflete a capacidade do terapeuta de cuidar de si, além de permitir-se também ser cuidado pelos outros. ‘... A mutualidade nos cuidados é um dos mais fundamentais princípios éticos...’ (FIGUEIREDO, 2009, p.141)

O terapeuta capaz de assim proceder renuncia a onipotência, alcança a necessidade de humildade assentada na consciência da própria precariedade, da finitude e dos limites, podendo então ser empático ao sofrimento do paciente, já que é também humano. O terapeuta sabe que é também peregrino e encontra-se em travessia. (CARDELLA, 2020, p 61) 

Nosso Grupo Quíron se constitui como um grupo oferecido para arteterapeutas e estudantes que desejam fazer um recorte no tempo e no espaço para beberem da própria fonte: a arte. É um grupo aberto no sentido de que a participação dos terapeutas ocorre de acordo com sua disponibilidade e a cada encontro novos inscritos podem participar. Entretanto, para receber os contatos, ouvir de forma acolhedora e fazer uma triagem atenta dos participantes que condizem com nosso público alvo, conto com Regina, meu braço direito nesta empreitada.

Da mesma forma, a programação é aberta, com temáticas abordadas independentes entre si, colaborando assim para a flexibilidade de participação dos experienciadores. Estes encontros acontecem uma vez a cada três semanas.

Nosso objetivo primeiro era proporcionar um tempo e espaço para que os terapeutas se permitissem o retirar das personas de profissionais e estudantes, para que fizessem um contato consigo mesmo, com sua alma, e através de seus processos criativos e produção de imagens pessoais, pudessem se reenergizar. A ideia era que, mesmo estando cada um em seu espaço geográfico e em um processo criativo individual, a presença do afeto catalizador circulasse entre nós, partindo de uma sensibilização ao qual nos imaginávamos em uma grande roda.

Com esta configuração tão aberta e flexível, não tínhamos grandes expectativas quanto à formação de um vínculo grupal tão sólido. Entretanto para a nossa surpresa, um dos feedbacks que recebemos foi a sensação de que a experiência grupal estava fazendo a diferença para os participantes. A possibilidade de dividirmos em grupos de três ou quatro pessoas no momento do compartilhamento, proporcionou o encontro de pessoas tão distantes geograficamente mas tão perto em desejo de troca. Ou ainda, o reencontro de pessoas que já se conheciam, mas que impedidas pelo isolamento social, estavam há tempos sem se verem. Após alguns meses de encontros regulares, pudemos ouvir que o Grupo Quíron proporcionava a sensação de pertencimento para aqueles que tiveram a oportunidade de participar com regularidade.

A necessidade de pertencimento é um dos temas que tem me atravessado nos últimos tempos e encontrei eco nas palavras de Beatriz Cardella:

Na clínica isto significa que o terapeuta precisará reconhecer as necessidades fundamentais da dignidade humana que constituem o Ethos, como por exemplo: a hospitalidade, o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a responsabilidade, a transcendência, entre outras. (CARDELLA, 2020, p 52)

 O Grupo Quíron que nasceu em julho de 2020, já conta com quinze encontros, tendo recebido em torno de oitenta terapeutas. Nossa rede afetiva tem crescido de tal forma que decidimos estender este espaço para uma segunda turma, agora no horário noturno. Nosso desejo é que esta rede de acolhimento e reabastecimento mútuo se solidifique cada vez mais e se estenda a outros terapeutas que necessitem deste equilíbrio dinâmico de cuidados.

 

Referência bibliográfica:

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. De volta para casa: ética e poética na clínica gestáltica contemporânea. 2ª edição. 2020

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Sobre a autora: Eliana Moraes 

Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

segunda-feira, 10 de maio de 2021

UM MATERIAL INUSITADO – O CARIMBO DE PLACENTA

 

Carimbo de placenta

Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

leonardo.claudia@gmail.com

 

Venho pensando em todas as vezes que li ou ouvi alguém falar o quão importante é para o arteterapeuta vivenciar ele mesmo, a utilização de materiais para sua própria produção plástica. Trazer sensações, emoções, percepções, enfim, o que aquele material te move, te suscita, se te agrada, se te irrita. Afinal o que ele desperta em você.

Dessa forma, cabe ao arteterapeuta o estudo teórico e prático das propriedades de cada material e linguagens da arte, pois cada uma delas possui suas “forças próprias”. (MORAES, 2019, pág. 18)

Lembrei-me de um dos grupos de estudos que participo, onde o tema transferência e contratransferência foi abordado ao longo de quatro encontros além de uma palestra que assisti, todos com a condução da arteterapeuta Eliana Moraes e obviamente on line nesses tempos de pandemia da Covid-19. Nessa relação terapeuta-cliente/paciente, aqui na arteterapia podemos incluir uma terceira relação que seria com os materiais.

A partir da entrada do 3º elemento – o material – na dinâmica relacional, uma gama de estímulos abre-se nos campos verbal e não verbal, objetivos e subjetivos, conscientes e inconscientes. (MORAES, 2019, pág. 17)

Acredito ser impossível vivenciar todos os tipos de materiais e isso me foi comprovado quando estava atendendo uma cliente, on line.

Chamaremos essa cliente de K. Iniciamos sua sessão arteterapêutica utilizando como estímulo projetivo o conto “Amaterasu - a Deusa do Sol”, pois K expressou anteriormente o seu desejo na busca de sua ancestralidade e este conto é de origem japonesa.

As técnicas projetivas são todas aquelas às quais o cliente/paciente recebe um estímulo direcionado a algum dos cinco sentidos, e a partir dele fala o que percebe, o que sente, o que pensa. Na sensação de estar falando de algo terceiro, o experienciador naturalmente está projetando de si e assim falando de si mesmo. (MORAES, 2019, blog)

Após a narração do conto, K partiu para a sua produção plástica. Ela me chamou neste momento, para dizer que tinha o desenho da placenta dela e queria trabalhar em cima dessa imagem utilizando a aquarela.

Quem aqui conhece o carimbo de placenta? Pois bem, eu não conhecia, fiquei muito surpresa quando ela se levantou para ir buscar o material, fiquei imaginando se seria algum tipo de exame de imagem feito em hospital.

“Amaterasu dá luz a sua placenta”

 

Assim que ela me mostrou seu trabalho, devido a minha curiosidade, simplesmente falei para a minha cliente: Pelamordedeus, me conta o que é isso!

Já estava tudo planejado com as doulas para quando nascesse o meu filho. Elas pegariam a placenta com o cordão umbilical (após o parto) e fariam os carimbos em folhas.

E desta forma ela foi me relatando como surgiu este material em sua vida.

Após sua produção, utilizando pincéis e tintas, cliente K se sentiu muito satisfeita por ter dado um significado ao seu carimbo de placenta. Finalizou seu trabalho dando o título: “Amaterasu dá luz à sua placenta”. Relatou que há um tempo queria fazer algo com esses carimbos da placenta, mas não sabia o que exatamente.

Com o término da sessão, fui olhar na internet o que seria o carimbo de placenta e depois de alguns vídeos, assisti uma equipe de enfermagem fazendo esse trabalho, colocando a placenta e o cordão umbilical, este no formato da letra inicial do nome do bebê em questão, em uma superfície plana. Fizeram a impressão logo em seguida onde apareceram as manchas de sangue no papel. Em outro vídeo, colocaram tinta guache em cores diferentes por sobre a placenta e o cordão umbilical e fizeram o carimbo destes, com a pressão das mãos por cima da folha em branco. Lembrei-me da técnica da monotipia.

A monotipia é considerada uma técnica simples da gravura, consistindo na pintura de uma imagem sobre uma superfície plana (ferro, metal, vidro, madeira, etc.), seguida de sua impressão em uma folha de papel. (ESTEVES, 2020, pág. 22)

K fez a escolha do uso de um material muito inusitado e totalmente desconhecido por mim, o carimbo de placenta, durante sua sessão arteterapêutica.

Taí, aprendi mais uma !

 

Nota: Doula – Pessoa que auxilia uma mulher durante sua gravidez, seu parto e após o nascimento do seu bebê, providenciando apoio físico, emocional, além de disponibilizar informações sobre o processo de gestação.

 

Bibliografia

MORAES, Eliana – Pensando a Arteterapia: volume 2 / Eliana Moraes. 1. ed. – Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2019.

ESTEVES, Liane. Refletindo sobre monotipias. Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organização Eliana Moraes. 1.ed. Divino de São Lourenço, ES: Semente Editorial, 2020.

MORAES, Eliana. Expressões Artísticas e as Questões Terapêuticas. Disponível em: <https://nao-palavra.blogspot.com/2019/08/expressoes-artisticas-e-as-questoes.html?fbclid=IwAR3kyY39TB3ixluLRZF12Jb5OrydAaM_-ZI1zZzPfzSJ6egVCZBJ0AvO_WE>Acesso em 24/03/2021.

 

Se você quiser ler meus textos anteriores neste blog, são eles:

As Vistas do Monte Fuji – 22/03/21

É Pitanga! – 07/12/20

O que é que a Baiana tem? – 26/10/20

Escrita prá lá de criativa – 27/09/20

Fazer o Máximo com o Mínimo – 01/06/20

Tempo de Corona Vírus, Tempo de se Reinventar – 13/04/20

Minha Origem: Itália e Japão – 17/02/20

Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” - 11/11/19

“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” – 19/08/19

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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe


Arteterapeuta – atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer. Colaboradora em curso de formação de cuidadores de idosos, com a prática de atividades de estimulação cognitiva aplicáveis pelos cuidadores em seus atendidos.

Autora do texto “Salvador Dalí e as minhas gavetas internas”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes, pela Semente Editorial, 2020, sobre a prática arteterapêutica com idosos.

Atendo em domicílio e on line.

 

 


segunda-feira, 3 de maio de 2021

REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA CRIATIVA – PARTE 2

 


Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

As reflexões sobre as aplicações da escrita criativa nas práticas arteterapêuticas seguiram seu curso após a publicação do primeiro texto sobre o tema há alguns meses CLIQUE AQUI. As experiências clínicas individuais e grupais foram solidificando as percepções e orientações sobre o uso deste recurso em meu repertório como arteterapeuta, de forma cada vez mais consciente. E no percurso de me instrumentalizar para esta prática, resgatei a leitura de um livro que muito me inspirou no início do meu caminho de escrita neste blog. No ano de 2013 ganhei de uma pessoa querida o livro “Crônicas para jovens de escrita e vida” de Clarice Lispector, que me estimulou aos enfrentamentos da escrita intuitiva e hoje articulo as palavras desta mestra com a escrita criativa dentro do setting arteterapêutico. 

Este é um livro que reúne alguns fragmentos dos escritos de Clarice para o jornal ao qual era colunista, mas selecionados aqueles em que ela falava sobre os caminhos de sua escrita, caminhos estes, sem destino certo: 

Embora representando grande risco, só é bom escrever quando ainda não se sabe o que acontecerá...

 

Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver com o que escrevi. Paciência. (LISPECTOR, 2010, 74-76) 

Este é o convite que fazemos ao experienciador da Arteterapia quando o apresentamos à escrita: que ele se liberte do controle racional, tanto da forma culta de escrita, quanto ao fluxo da temática abordada. Inclusive, ao fazer este convite ao meu paciente, tomo emprestado a fala de Clarice: “O que salva então é escrever distraidamente.” (LISPECTOR 2010, 95). 

Este “escrever distraidamente” promove um rebaixamento de consciência ao qual Clarice muito bem descreve com sua poética, mas que nós arteterapeutas podemos lê-los para compreender o que acontece com nossos pacientes:

 

Aliás, pensando melhor nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo.

 

Ir me obedecendo – é na verdade o que faço quando escrevo, e agora mesmo está sendo assim. Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará. Às vezes ir me seguindo é tão difícil...

 

Bem, mas o fato é que mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei... (LISPECTOR, 2010, 73-75)

 

Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo. É por isso que no escrever eu não escolho... (LISPECTOR, 2010, 77) 

Este rebaixamento de consciência abre portas para o contato com conteúdos mais inconscientes antes não acessados devido ao controle racional. Clarice descreve estes momentos de insights sobre si mesma durante o processo da escrita, aos quais podemos fazer um paralelo com o processo que acontece dentro setting ao convite do arteterapeuta:

 

Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente das coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia. (LISPECTOR, 2010, 85)

 

Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (LISPECTOR, 2010, 91-92)

 

Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento... De outro lado, escrevo pela incapacidade de entender, sem ser através do processo de escrever. (LISPECTOR, 2010, 103) 

A migração da expressão oral para a escrita, dentre outros fatores, é tão benéfica pelo fato de convidar o sujeito à um demorar-se, e consequentemente a um maior contato com seus conteúdos internos. E dentro da escrita este demorar-se ganha ainda mais potência e profundidade, embora não seja fácil permitir-se à esta paciente lentidão:

 

Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim, e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Passei a entender melhor a coisa que queria ser dita.

 

Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão, ou melhor, certeza de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. (LISPECTOR, 2010, 115) 

Este processo de desaceleração, paciência, contato e escrita deve ser estimulado ao paciente pois é justamente este o percurso que permitirá o acesso à uma outra dimensão denominada por Clarice como “não palavra”: 

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu. (LISPECTOR, 2010, 95)

 

A palavra é uma isca para pegar aquilo que é “não palavra” e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão... (LISPECTOR in PHILIPPINI, 2009, 108) 

A escrita criativa na Arteterapia 

Ao nos reencontrarmos com as palavras de Clarice Lispector, somos lembrados que a Arteterapia é um procedimento que se utiliza das mais variadas linguagens da arte no processo terapêutico. Desta forma, precisamos manter nosso olhar ampliado para as múltiplas possibilidades e recursos acessíveis ao arteterapeuta. Nas palavras de Angela Philippini:

 

Em Arteterapia, a codificação de emoções e afetos pela mediação da palavra corresponde a mais uma, entre inúmeras das possibilidades expressivas de acesso ao inconsciente, oferecendo canal e continente para sentimentos difusos, muitas vezes desconhecidos... um produtivo recurso para a ativação do processo criador e uma possibilidade de configurar novas informações na consciência. A escrita oferece meios de estabelecer um efetivo diálogo silencioso entre indivíduo e fragmentos seus, muitas vezes sombrios e inconscientes que, em cada releitura dos textos produzidos, tornam-se mais claros, pois gradualmente os significados vão sendo apreendidos pela consciência. (PHILIPPINI, 2009, 113)  

Como suas propriedades, podemos dizer que esta é uma técnica organizadora e estruturante, que de acordo com a Psicologia Analítica Junguiana, tem como Função Principal a função pensamento. 

Ela promove o desbloqueio criativo, um rebaixamento de consciência, e um deslocamento do discurso oral já viciado. Promove também um profundo diálogo consigo mesmo. 

Ao escrever, os verbos/as ações externas e internas envolvidas são: dar forma, configurar, ordenar, organizar, estruturar, identificar, nomear. Suas palavra-chaves são:

decodificação, elaboração, compreensão, integração à consciência. 

Por fim, esta é uma atividade tão simples quanto aos materiais, mas na mesma proporção tão profunda em reflexões. 

Encerro estas articulações com as palavras de Clarice: “Aliás, verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?” (LISPECTOR, 2010, 108)

 

Referências Bibliográficas:

LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, RJ. 2010.

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Ed WAK, RJ, 2009.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"