Laila Alves de
Souza – Curitiba / Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
O
estudo das mitologias nos alude ao conhecimento do nosso mundo psíquico, onde
os deuses representam as nossas forças arquetípicas e os mitos representam
nossos processos internos e externos. Desse modo, o conhecimento desse estudo
nos permite compreender a psique humana.
A
psicologia arquetípica, especificamente, evidencia a importância daquilo que
nos ensina a mitologia. Os deuses estão presentes na psique e na cultura, e a
negação de um deles repercute na estrutura psicológica do indivíduo.
Nesse texto entraremos em
contato com uma deusa desprezada, pois ela pertence ao âmbito do ctônico e do
escuro. A deusa Hécate.
Na
mitologia grega, a deusa Hécate é considerada uma deusa sombria e infernal.
Assim como Perséfone, ela é uma deusa dos mortos. Como ela se encontra longe do
âmbito da luz, e, sendo a luz um dos símbolos da consciência, esta deusa reside
nos escombros de nossa psique, ou seja, no escuro do inconsciente. C.G Jung,
com seu conceito de sombra, mostrou que são nesses escombros que reside muito
de nossa energia psíquica, e sendo estas não conscientes, podem agir
autonomamente e perturbadoramente, sem a orientação do ego. Considerando que
Hécate pertence a esse terreno ou esse terreno pertence a Hécate, o olhar para
ela é de fundamental importância para a saúde psíquica. Sobre a deusa vemos em
Chevalier & Gheerbrant:
"Enfim, a nigromante das aparições noturnas
simbolizaria o inconsciente, onde se agitam as feras e monstros: o inferno vivo
do psiquismo, mas também reserva de energias a organizar, como o caos se
organizou em cosmo sob a influência do espírito." (CHEVALIER &
GHEERBRANT, p.485)
Hécate
também está associada ao lixo, a podridão e aos restos. De acordo com Hillman esta deusa
"(...)torna sagrados os lixos da vida, de forma que tudo conta, tudo
importa." (Hillman, p. 70). Dessa forma, honrar essa deusa significa
iluminar nossos lixos psíquicos, aquilo que não prestou para nossa casa egóica,
ou seja, que apresenta característica desagradável e incompatível.
Não
é à toa que, por governar esses atributos, essa deusa tenha sido esquecida no
arcabouço dos mitos. Inclusive, ao pegarmos compilações sobre deuses gregos não
é comum ter a presença de Hécate. Por mais que um dos indícios também seja a de
que a deusa não tenha um mito próprio, essa exclusão pode vir desses atributos
que são considerados fétidos e feios para os olhos da consciência.
A sucata
A sucata pode se apresentar como um material sob os domínios de Hécate. Aquilo que aparentemente se mostra como resto e lixo, sob os desígnios dessa deusa, se transforma em material e energia possíveis de serem trabalhados; é o que o Hillman coloca como "tudo conta, tudo importa".
O
trabalho já começa no olhar sobre aquilo que seria lixo. Essa análise sobre
qual material pode virar sucata e qual não, é um trabalho que, na perspectiva
da psique, já está se mexendo na sombra. O ego com sua orientação consciente e
unilateral já descartaria qualquer resto, mas na psique Hécate tem seu lugar
sagrado, ou seja, para psique esses restos têm seu lugar.
Depois
de discriminar o que pode virar sucata, o trabalho consiste em construir algo
com aquilo que parece ser um amontoado confuso e sem sentido. As energias
inconscientes se apresentam dessa mesma forma para o ego consciente. Vários
mitos e contos retratam essa dinâmica de amontoados de elementos (geralmente
vários tipos de grãos misturados) onde o herói ou a heroína precisam enfrentar
o trabalho de separar e classificar. Vemos isso no mito de Psiquê e no conto da
Vasalisa, por exemplo.
O
olhar, manusear, separar e compor a sucata é um trabalho que exige disposição
psíquica, pois pede um olhar e um diálogo para dentro de nós. Se não houver
esse movimento, ficaremos na superficialidade e só veremos um conjunto de
coisas que poderiam ser jogadas fora. É um trabalho que propicia um contato com
novas forças arquetípicas, no caso, com a força de Hécate.
Esse
olhar permite, por exemplo, que uma lata velha venha a ser um corpo de um
boneco, e a partir disso o corpo se presentifica. Mas como é esse corpo? Duro
como uma lata ou mais macio como um rolo de papel higiênico? As fitas coloridas
são usadas para enfeitar (entrando em contato com Afrodite)? Ou a obra se
compõe com as embalagens nuas e sem embalagens (entrando em contato com a
sobriedade)? O manuseio da cola quente é exagerado ou se coloca pouca cola? Percebemos
aqui questões de firmeza/rigidez ou flexibilidade/frouxura.
Um
mundo de possibilidades se descortina nesse tipo de trabalho, abrindo-se
também, o mundo psíquico. Todo esse processo consiste no que a psicologia
arquetípica proposta por James Hillman fala do “fazer alma”, ou seja, a alma se faz na experiência.
Portanto,
a psicologia possibilita a expressão daquilo que se encontra inconsciente em
nós. No presente caso, a força arquetípica de Hécate traz o sagrado para o
olhar para os lixos e o que subjaz no nosso subterrâneo psíquico. E a Arteterapia,
por sua vez, vem reforçar essa expressão, dando forma e corpo para o aspecto
inconsciente. Aquilo que antes era nebuloso e até mesmo desagradável tem agora
uma imagem, imagem material e palpável. Imagem que fala e nos espelha sobre nós
mesmos.
É
a transformação dos escombros em arte!
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Referências Bibliográficas:
CHEVALIER, J. &
GHEERBRANT, Al. Dicionário de Símbolos.RJ: José Olympio, 2009.
HILLMAN, J. O sonho e o
mundo das trevas. Petropólis, RJ: Vozes, 2013
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Sobre a autora: Laila Alves de Souza
Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.