terça-feira, 14 de outubro de 2025

MUSEUS, GALERIAS E ARTETERAPIA: A PROMOÇÃO DO BEM ESTAR ATRAVÉS DA APRECIAÇÃO ESTÉTICA


Por Karine Drumond - MG

A Arteterapia é um campo vasto e dinâmico que utiliza o processo criativo e os materiais artísticos como via de expressão, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. A visita a exposições e museus de arte se apresenta como uma rica, embora por vezes subutilizada, ferramenta complementar no setting terapêutico.

Ir a uma exposição não é apenas um passeio cultural, mas uma imersão em um universo de símbolos e emoções que pode catalisar insights profundos. Meu propósito é explorar como a apreciação estética de obras de arte, a princípio vista como fora do escopo da produção do cliente, pode se integrar e enriquecer o processo terapêutico.

O Diálogo com o campo de atuação

A ideia de que a arte, para além da criação, atua na saúde mental e no bem-estar não é nova e tem ganhado destaque em diversas áreas.

Prescrição Cultural 

A literatura contemporânea em saúde, especialmente em países como a Suíça e no relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019, aponta para a eficácia da "prescrição cultural", onde médicos e profissionais de saúde incluem visitas a museus e galerias como parte do tratamento para problemas de saúde mental e doenças crônicas. Esta abordagem reconhece os benefícios neurobiológicos da exposição à arte, como a liberação de dopamina (hormônio do prazer) e a redução dos níveis de estresse e ansiedade.

Psicologia e "Flow"

O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, com seu conceito de "Flow" (estado de imersão total em uma atividade), sugere que a contemplação de uma obra de arte pode induzir a um estado de plenitude, desconectando o indivíduo de preocupações diárias e promovendo a satisfação profunda, um processo valioso para a saúde mental.

A Perspectiva Junguiana

Na psicologia analítica, que fundamenta muitas abordagens arteterapêuticas, Carl Jung defendia que a arte é uma expressão do Inconsciente Coletivo. A visita a museus permite ao cliente dialogar com uma vasta gama de símbolos arquetípicos, presentes nas obras de arte de diferentes culturas e épocas. Essa conexão simbólica pode despertar emoções, memórias e reflexões sobre aspectos profundos de si mesmo, facilitando a elaboração e a integração de conteúdos psíquicos.

Possibilidades na Arteterapia

Em Arteterapia a visita a exposições pode ser utilizada de forma intencional para a ampliação do Repertório Simbólico. A exposição a diferentes estilos, temas e linguagens artísticas pode oferecer ao cliente novas "palavras" visuais, expandindo seu leque de possibilidades para a expressão no ateliê. Uma obra pode servir como um catalisador, um ponto de partida para a sua própria criação.

Ao apreciar uma obra, o cliente pode projetar sentimentos e conflitos internos na imagem. O Arteterapeuta pode guiar a observação com perguntas como: "Qual obra te toca mais e por quê?", "Que emoção essa cor ou forma te evoca?", "Que história essa imagem te conta?". A obra de arte de um artista consagrado, ao ser apreciada, atua como um "espelho" neutro, permitindo ao cliente falar sobre si indiretamente.

Ver que outros seres humanos, através da história e de diferentes culturas, expressaram temas como dor, alegria, transformação ou solidão, pode gerar um sentimento de universalidade da experiência humana. Isso pode ser particularmente terapêutico para quem se sente isolado em sua experiência.

Além disso, a apreciação estética estimula a imaginação, a intuição e a capacidade de fazer associações. Ao sair do seu ambiente habitual e se deparar com o inesperado da arte, o cliente é convidado a exercitar a sua flexibilidade psíquica e a sua capacidade de ressignificação.

Em suma, a visita a museus e exposições em Arteterapia não é sobre ensinar história da arte ou julgar a estética. É sobre criar um encontro mediado e sensível entre o mundo interno do cliente e o vasto acervo de expressões da alma humana. É um convite para que o cliente se aproprie da arte — e dos seus símbolos — como um recurso de promoção da saúde mental e um portal para o autoconhecimento.


Referências


Ir a museus melhora a saúde mental. Somos Newa, [S.d.]. Disponível em: https://somosnewa.com.br/ir-a-museus-melhora-a-saude-mental/. Acesso em: 13 out. 2025.

MANTOVANI, Cecile; BALIBOUSE, Denis. Arte como terapia: médicos suíços estão prescrevendo visitas a museus. Medscape, 20 mar. 2025. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6512477. Acesso em: 13 out. 2025.

Museu como terapia? Básico365, 24 mar. 2025. Disponível em: https://www.basico365.com.br/post/museu-como-terapia. Acesso em: 13 out. 2025

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Sobre a autora: Karine Drumond

Karine Drumond tem uma formação em Design, Arte Educação. Pós graduanda em Arteterapia pelo INTEGRATE - MG. Com sólida experiência facilitando processos criativos para mulheres e crianças entre 7 e 14 anos. Atuou como pesquisadora e professora em Design na PUC Minas por mais de 10 anos. Recentemente atuou na ONG Projeto Reconstruir, utilizando a arte como ferramenta de expressão e transformação social. Atualmente, está à frente do EquilibrArte, projeto em construção que pretende promover vivências que integram yoga, arteterapia e autoconhecimento para resgatar o bem-estar e a criatividade pessoal e coletiva.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA E A ARTETERAPIA

 


Casa Estrelinha - Ilha do Ferro- Alagoas

Regina Célia Rasmussen – SP

@espacocrisantemo1

Em maio de 2025, participei de uma residência artística em Ilha do Ferro, um pequeno povoado de Pão de Açúcar, Alagoas. A experiência despertou em mim sensações e emoções adormecidas, como se minha alma fosse novamente convidada a respirar. Foram dias intensos, em que o olhar, o paladar, o corpo e a mente foram provocados e atravessados por novas descobertas.

A residência artística tem como propósito deslocar o artista para um contexto cultural distinto, oferecendo vivências capazes de nutrir e desafiar a criatividade. É um espaço-tempo em que o cotidiano se rompe e dá lugar à abertura: para o encontro com o outro, com a cultura local, com a natureza, com  o fazer artístico e, sobretudo, consigo mesmo.

Ilha do Ferro revelou-se para mim como uma viagem por um túnel do tempo. Foi como retornar à infância, a um período em que não existiam celulares, em que os perigos não eram tão iminentes e a vida parecia seguir em um compasso mais lento, com dias que se alongam no tempo Kairós.

O povoado, com cerca de 500 moradores, abriga em quase um quarto de sua população artistas populares. São homens e mulheres dedicados às mais diversas linguagens expressivas — e até ao mobiliário criativo — que carregam a marca singular da comunidade.

Éramos cinco residentes: três artistas visuais, uma escritora e eu - arteterapeuta criativa.

O coordenador da residência artística, Roger Basseto, é artista contemporâneo e educador, que valoriza o processo criativo. Ele explora cadernos (sketchbooks) e variadas técnicas em seu ateliê - Estúdio Pop - onde também oferece workshops.                                    

                                                  

 Roger Basseto

A casa que nos acolheu às margens do Rio São Francisco já se apresentava como um templo sagrado da arte local. Suas paredes e cômodos apresentavam símbolos do povo ribeirinho — esculturas, pinturas, bordados e objetos que transbordavam histórias. Esse ambiente, repleto de criação, era em si um convite à percepção e à imaginação. 




As manhãs se tornaram um convite para o fazer criativo. Cada gesto parecia dialogar com a paisagem e com a energia do lugar. Os almoços eram nas casas de moradores, momentos em que pude conhecer famílias, construir vínculos e ouvir narrativas que misturavam memórias ancestrais com crenças no futuro.

À tarde, seguíamos em visita aos ateliês, onde os artistas nos recebiam generosamente, apresentando seus processos criativos e as obras que expunham à venda — hoje, o grande motor da economia do povoado.

Entre tantas descobertas, chamou-me especial atenção o bordado típico da Ilha do Ferro, conhecido como Boa-Noite, caracterizado pela técnica de desfiar o tecido para formar delicados desenhos geométricos e florais com fios. Seu nome deriva de uma planta típica da região, e ele é repleto de significado, como se cada ponto guardasse a memória das mãos que o tecem e a identidade de um território.

Durante os dez dias em Ilha do Ferro, realizamos dois passeios que ampliaram ainda mais nossa experiência. Visitamos a cidade de Pão de Açúcar, com sua feira típica do Nordeste, e navegamos pelo majestoso Rio São Francisco até Entremontes — onde grande parte das mulheres se dedica ao bordado, perpetuando uma tradição delicada e ancestral — e até Piranhas, cidade marcada pela memória do cangaço, outrora conhecida por exibir as cabeças dos cangaceiros.

Ao cair da noite, quando o sol se despedia nas águas do Velho Chico e os pássaros faziam suas algazarras: íamos nos reunir com moradores e alguns poucos turistas no bar O Macumba. Sob o comando de André Dantas, o espaço transformou-se em uma verdadeira exposição permanente das artes e das histórias da Ilha do Ferro e de suas redondezas. Ali, entre conversas, risos e olhares curiosos, seguíamos desenhando e criando, embalados pelos estímulos visuais e pelo encantamento das histórias dos “Encantados”.

Senti fortemente o prazer da simplicidade: o sabor de um peixe fresco, o encontro das crianças em jogos e brincadeiras às margens do rio, o bordado realizado vagarosamente pelas mãos das mulheres da comunidade. Tudo me lembrava que a vida pode ser plena no essencial, sem a pressa e o excesso que tantas vezes nos afastam de nós mesmos.

Essa simplicidade, tão presente na Ilha do Ferro, ecoou dentro de mim como um convite à leveza. Percebi que, assim como na arteterapia, não é a complexidade do recurso que importa, mas a autenticidade do gesto - seja em um risco traçado no papel ou em um ponto bordado no tecido. Cada experiência carregava potência de sentido e me devolveu a alegria de estar no aqui e agora. Como afirma Zinker (2007 p.20 e 21):

                                                 “O processo criativo é terapêutico porque nos permite expressar e examinar o conteúdo e as dimensões de nossa vida interior. A vida tem a medida da plenitude que nos é possibilitada pela variedade de veículos que encontramos para concretizar, simbolizar e expressar de inúmeras maneiras todas as nossas experiências.”

Na convivência com os moradores, fui tocada pela maneira como vivem com dignidade e beleza, mesmo diante das limitações materiais. Esse olhar me fez refletir sobre o quanto podemos nos nutrir do simples — e como a arteterapia, em sua essência, também é um exercício de reencontro com aquilo que é essencial em nós: o processo criativo, o vínculo humano, a expressão do que pede voz.

Na Ilha do Ferro, percebi, mais do que nunca, que a arte não é apenas produção, mas modo de viver. Manifesta-se no ato singelo de bordar, na escultura que nasce da madeira, nas sentadas preguiçosas na porta de casa ao entardecer e na expressão de quem compartilha sua história. Essa experiência me mostrou que a arteterapia também se constrói assim: na confluência entre a vida e a criação.

Voltei trazendo comigo não apenas boas lembranças, mas a certeza de que o essencial é o que sustenta nossa humanidade.

Acredito que seja justamente isso que uma residência artística, assim como o setting de arteterapia, nos oferece de mais valioso: a oportunidade de experienciar um espaço em que arte e vida se encontram. É nesse encontro - na contemplação, no fazer artístico, no contato com o outro, no coletivo e na simplicidade -  que reside a verdadeira potência da transformação.

Referências

BASSETO, Roger - https://www.instagram.com/rogerbassetto/

ILHA DO FERRO - https://www.instagram.com/_ilhadoferro/

STUDIO POP - https://www.instagram.com/pop_studiopop/

ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. .ed. - São Paulo: Summus Editorial



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Sobre a autora: Regina Célia Rasmussen



Bordadeira

Bacharel em Pedagogia (Faculdade de Educação USP)

Pós graduada: Orientação Educacional, Supervisão Escolar, Gestão Escolar, Psicopedagogia e Arteterapia.

Gestora do Espaço Crisântemo - @espacocrisantemo1

 

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

VISITA A MUSEUS COMO RECURSO PARA AMPLIAR A EXPRESSÃO NO FAZER ARTÍSTICO




Por Claudia Tona - RJ

claudiatona63@gmail.com

@libelula_psicopedagogia_arte

 

“Há beleza na vida, há beleza em tudo. Vocês veem?… Há beleza na alegria, e mesmo na saudade, na tristeza, no sofrimento e até na partida, há beleza. A vida é uma beleza.” (Nise da Silveira)


Como educadora, sempre valorizei a “aula passeio”, termo cunhado por Celetin Freinet. Para ele, a aula-passeio é uma prática que liberta estudantes do ambiente estritamente escolar para explorar o entorno, fomentando o contato com a realidade e a conexão entre teoria e prática. No contexto arteterapêutico, meu trabalho continua sustentado pelo mesmo pilar. Assim, com este relato, apresento um recorte das experiências que venho fazendo com o grupo de mulheres maduras, Sementes ao Pôr-do-sol – oficinas de arte para pessoas no entardecer da vida – incluindo as visitas guiadas a museus. Mas antes, é necessário contextualizar os pensamentos que me fizeram adotar uma prática mais comum na área da Educação, observando algumas conexões entre pensadores que considero importantes para o tema.


Comecemos pela Abordagem Triangular, da arte-educadora Ana Mae Barbosa, cujas ideias se conectam com a Arteterapia no sentido de como essa visão pode enriquecer e aprofundar o processo arteterapêutico, em se tratando das aulas passeio. Enquanto a Arteterapia foca na expressão e no autoconhecimento por meio da arte, a abordagem de Ana Mae oferece uma estrutura para que essa expressão ganhe maior consciência crítica e contextual, tanto para o paciente, quanto para o arteterapeuta. Trata-se do conhecer (contextualizar), apreciar (fruir) e fazer (produzir) Arte.


O fazer artístico é parte fundamental do processo arteterapêutico, onde o cliente materializa conteúdos do inconsciente por meio de diferentes linguagens artísticas e esta expressão se torna um ponto de partida para a reflexão sobre o seu mundo interno. A apreciação e a leitura da imagem são essenciais para o processo reflexivo em Arteterapia. Com o acompanhamento do arteterapeuta, o cliente conhece sua própria obra, compreendendo os símbolos, as formas e as cores como manifestações de seu inconsciente, bem como os materiais e as técnicas utilizadas. Na contextualização, a abordagem de Barbosa sugere um enriquecimento. O arteterapeuta pode levar o paciente a relacionar suas criações não apenas com sua história pessoal, mas também com o contexto histórico, social, cultural e familiar em que vive, permitindo uma compreensão mais completa das influências externas sobre seus sentimentos e comportamentos, pois todos nós vivemos no coletivo. A contextualização é o diferencial que a teoria de Ana Mae oferece à Arteterapia. Ao encorajar a reflexão sobre as condições sociais e culturais, o processo terapêutico se aprofunda. Por exemplo, a obra de um paciente pode refletir questões de gênero, racismo ou preconceitos, que ganham mais profundidade se analisadas sob uma perspectiva abrangente. 

A Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa é um recurso para a organização da prática arteterapêutica ao oferecer uma estrutura que integra a expressão emocional (fazer artístico) com a reflexão estética e crítica (apreciação e contextualização), promovendo um processo mais consciente, completo e libertador para o paciente quando em visita guiada a museus, o que pode ser uma ferramenta complementar e enriquecedora para a arteterapia, pois proporciona um encontro direto com obras de arte em seu contexto original, estimulando a reflexão, a ressignificação e a expressão emocional dos pacientes. O museu se torna o espaço para a leitura mais aprofundada, coletiva e individual de imagens, indo além das obras produzidas na sessão. Os clientes têm contato com diferentes técnicas, estilos e épocas, ampliando seu repertório visual e estético. O arteterapeuta vai mediar a observação, incentivando o cliente a explorar como diferentes artistas representaram temas universais como medo, alegria, tristeza ou esperança. Essa análise pode trazer insights sobre as próprias emoções. Além do mais, o museu pode e deve ser um espaço de integração social, onde o cliente questiona seu lugar na arte e na sociedade. Para a Arteterapia, isso pode ajudá-lo a ressignificar o pertencimento e a identidade. O fazer artístico que acontece depois, na sessão de Arteterapia, se aprimora com a visita a museus. O contato com as obras pode inspirar e dar novas ideias aos pacientes, que retornam ao ateliê com um repertório ampliado para a criação, produzindo uma releitura pessoal, baseada nas percepções, emoções e reflexões que surgiram durante a visita, fortalecendo a autenticidade e a autoria. E as vantagens terapêuticas da visita a museus não param por aí. 



A prática pode promover a redução da ansiedade e estresse: a contemplação de obras de arte em um ambiente tranquilo pode ter um efeito calmante, ajudando a restaurar a atenção e a reduzir a ansiedade; o aumento da autoconsciência e da criatividade (ao se conectarem com as emoções expressas na arte e refletir sobre a própria história, os clientes podem aumentar sua autoconsciência) estimula a criatividade, abrindo novas possibilidades de expressão; o pertencimento social, sobretudo para grupos em situação de isolamento ou com questões de saúde mental, pois a visita ao museu, especialmente em contexto terapêutico, fomenta a coesão social e a sensação de ser pertencente; o enriquecimento da narrativa pessoal, já que a arte pode evocar memórias e sentimentos, levando o sujeito a refletir sobre suas experiências de vida e a ressignificar sua narrativa. 

Convido ainda para esta conversa, a psiquiatra Nise da Silveira, pioneira na luta contra o estigma da loucura, demonstrando o potencial criativo de seus clientes. Ela valorizava o sujeito em sua totalidade, independentemente de seu estado psíquico. Foi a criadora do Museu de imagens do Inconsciente, no Rio de janeiro, com a função de preservar, estudar e divulgar as obras dos clientes, dando a elas o estatuto de arte. O museu foi pensado como um espaço de reconhecimento e dignidade para a produção de quem era historicamente marginalizado, além de um espaço de pesquisa para cientistas nacionais e internacionais. A expressão do inconsciente através da criação artística era o ponto central do trabalho de Nise. Ela via a arte como a manifestação do mundo interior. Utilizava a interpretação das obras para entender os processos psicológicos dos clientes, fazendo uso da Psicologia Junguiana e da mitologia. Ela contextualizava o trabalho em relação ao universo simbólico e inconsciente de cada indivíduo.

Bem, então vamos à prática! Antes da visita guiada, o grupo de 5 pessoas de 60 a 80 anos já havia trabalhado com sua identidade, suas memórias desde a infância, usando materiais e técnicas diversas. Uma delas se interessa pela fotografia e este foi o gancho que eu precisava para que a minha proposta de saída cultural acontecesse. Na mesma rua da instituição, foi reinaugurado recentemente o Museu Antonio Parreiras, que estava fechado há mais de dez anos. Quando lancei a ideia, elas se entusiasmaram e então, passei à etapa da organização: o agendamento da visita guiada, informando o perfil do grupo à equipe do museu, o preparo do grupo sobre qual seria a consigna e, claro, o lanche para um piquenique coletivo. Todos esses preparativos fazem parte do acolhimento com afeto e são disparadores da vivência.

O MAP é cercado de verde. O som do vento nas folhas e dos pássaros e pequenos animais silvestres superam o movimento da rua onde é localizado. Combinamos o encontro no local e ali mesmo, no jardim, começou essa experiência sensível, emocional e afetiva, pois algumas haviam conhecido o Museu antes dele fechar. A visita guiada pela Exposição em cartaz foi enriquecida por uma experimentação sensorial, na qual usamos vendas para sentir cheiros e tocar em elementos da natureza sem o sentido da visão. Ao abrirmos os olhos, estávamos diante de duas obras de Parreiras que retratavam um incêndio na floresta e uma árvore morta (ambas dos anos 1930), o que explicou o aroma inicial de ervas e o barulho de chuva, substituídos posteriormente pelo cheiro de fumaça e estalidos de fogo. Foi um momento de reflexão profunda sobre a natureza e a importância do ecossistema, planejado e executado com maestria pela equipe do Educativo do MAP. Depois desse momento, o grupo ficou livre para fotografar o que mais as tocaram em todo o espaço de visitação, incluindo o jardim. Acompanhei o movimento de longe, mas com olhar e escuta atentos. Percebi que cada uma por si buscava cantos e recantos que as chamavam para perto, penetrando num outro plano, numa envolvente atmosfera de passado, presente e elucubrações futuras.



Pedi que elas enviassem as fotos mais significativas (em suas visões) para o grupo de WhatsApp e passei as orientações para o encontro seguinte, já na sede da Fundação: elas deveriam, além de me enviar as fotos, escolher uma delas, a mais importante para cada uma, e levar impressa.

Uma semana depois, o fazer artístico estava ali, se materializando. A consigna era: o que está além dos meus sentidos na visita ao Museu Antonio Parreiras? A técnica foi a amplificação de imagem, usando a foto selecionada e o material disponibilizado foi lápis aquarelável e aquarela, mas algumas me solicitaram lápis grafite e régua. Para sensibilização, exibi um vídeo com todas as imagens que elas me enviaram, possibilitando que elas revisitassem o Museu e relessem aqueles registros tão caros a elas.

Durante o processo de produção expressiva, houve comentários, como: “sinto-me uma criança brincando de pintar.”; ou “eu me lembro do momento exato em que fiz essa foto.” Percebi o quanto estavam envolvidas naquele trabalho de estimulação cognitiva, tão essencial para um envelhecimento saudável, ainda mais com Arte, afeto e diversão.



Essa vivência ainda não terminou, está acontecendo ainda, se amplificando e, a cada semana, elas descobrem algo a incluir nessa visão abrangente do seu mundo interno. E assim segue o grupo Sementes ao Pôr-do-Sol, para pessoas no entardecer da vida, semeando sempre, pois, no pensamento de Ana Mae Barbosa:

“A arte une mais que experiências de outra natureza. São as relações de fazer e padecer, e a energia de ida e vinda que fazem com que a experiência da Arte seja uma experiência renovadora e constantemente renovável”. BARBOSA, 2021.


REFERÊNCIAS


BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda Pereira , Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. 1ª ed. Ed. Cortez. SP, 2012

BARBOSA, Ana Mae. Arte na Pedagogia. 200 Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 200-209, maio/ago. 2021. http://dx.doi.org/10.22456/2357-9854.117498

FREINET, Celestin. A Pedagogia do Bom Senso. Ed: ‎ WMF Martins Fontes (POD). 8ª edição. SP, 2022.

https://educacaointegral.org.br/reportagens/ana-mae-barbosa-e-educacao-por-meio-da-arte/#:~:text=Aluna%20de%20Paulo%20Freire%2C%20desenvolveu,apreciar%20uma%20obra%20de%20arte.

https://mow.arquivonacional.gov.br/index.php/not%C3%ADcias/68-nise-da-silveira-e-o-museu-de-imagens-do-inconsciente.html 

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0197455616300879#:~:text=Popular%20authors%20and%20philosophers%20de,reminiscence%20and%20other%20psychological%20needs.

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Sobre a autora: Claudia Tona




Formanda em Arteterapia pelo Espaço terapêutico Caminhos do Self, no Méier, RJ.


Como Pedagogoga e Psicopedagoga, atuou em todos os segmentos da Educação Básica, da Educação Infantil ao Ensino Médio, EJA e Educação Especial e Inclusiva, tanto como professora quanto gestora; nas escolas públicas e privadas, a Arte sempre foi seu instrumento principal, sua varinha de condão.


Atualmente, faz atendimentos individuais e em grupo, tendo como base a Psicopedagogia com abordagem em Arte. 


É Coordenadora do Solar do Guri, segmento infanto-juvenil do Solar Artes e Terapias em Piratininga, onde organiza junto com a Trupe Ensolarada, eventos para celebração do brincar através da Arte.


Compõe a equipe multidisciplinar do Espaço Terapêutico Cíntia Magacho, no Centro de Niterói, onde realiza atendimentos individuais e participa da organização de Workshops periódicos sobre aprendizagem e saúde mental.


Na Fundação Cultural Avatar, no Ingá, promove a Oficina Sementes ao Pôr-do-sol, com pessoas maduras as protagonistas do presente relato.


segunda-feira, 22 de setembro de 2025

RELATO DE EXPERIÊNCIA: O USO DO ILEÍSMO EM UM GRUPO DE MULHERES NO CONTEXTO DA ARTETERAPIA ORGANIZACIONAL

Por Milena Medeiros - RJ

O conceito de Ileísmo, derivado do latim ille (aquele) e o sufixo -ismo, ganhou destaque nas práticas terapêuticas a partir dos anos 2000, especialmente nas abordagens narrativas em que o foco é reescrever ou reinterpretar a própria história em terceira pessoa.  Desenvolvida na década de 1990, a Terapia Narrativa visa distanciar o indivíduo de seus problemas, permitindo que ele os perceba como algo separado de si. Esse distanciamento facilita a releitura da própria história, proporcionando uma nova perspectiva sobre as experiências e auxiliando na construção de uma identidade mais forte e integrada.

Conforme White e Epston (1990, 2007), na perspectiva narrativa, não há uma única maneira de descrever uma experiência. Ao narrá-la, certos aspectos ganham mais destaque, o que resulta em uma narrativa dominante que pode limitar as ações e a visão de identidade da pessoa, muitas vezes obscurecendo outros elementos que poderiam ajudar a construir narrativas alternativas (Ribas, Lion & Souza, 2024).

Embora o Ileísmo não seja amplamente abordado como uma técnica isolada, ele é altamente eficaz em processos de autoconhecimento e na gestão de experiências dolorosas. Em abordagens como a TCC, o uso da terceira pessoa ajuda o indivíduo a observar seus pensamentos e emoções de forma mais clara, promovendo maior controle emocional e reduzindo a reatividade. Na psicologia Positiva, estudos mostram que a técnica pode reduzir a ansiedade, aprimorar a tomada de decisões e ampliar a estabilidade emocional. O uso dessa técnica não se limita à terapia – em contextos educativos com crianças, o Ileísmo facilita o entendimento e nomeação das emoções, criando um distanciamento saudável para lidar com frustrações. Ela também aparece na literatura, onde o discurso indireto cria um distanciamento emocional que também permite a reinterpretação das vivências; e na autoterapia, facilitando o processamento das emoções e promovendo uma nova compreensão sobre si mesmo.

Na Arteterapia, o Ileísmo surge como um recurso simbólico e afetivo de distanciamento emocional, favorecendo a autoaceitação, a reorganização dos sentimentos e o fortalecimento da relação interna, com foco na redução da autocrítica. Na vertente da “Arteterapia Expressiva”, a técnica do Ileísmo se expande além da narração em terceira pessoa para incluir não apenas materiais artísticos, mas também formas de expressão corporal como gestos, movimentos e elementos do teatro. Segundo a americana Cathy Malchiodi, arteterapeuta, terapeuta em artes expressivas e conselheira em saúde mental, o uso combinado de recursos expressivos e do corpo como ferramenta simbólica amplia a capacidade de externalização das emoções e vivências. Em The Art Therapy Sourcebook (2006), a autora destaca que a criação artística oferece ao indivíduo um espaço simbólico seguro, permitindo o distanciamento necessário para reorganizar sua narrativa pessoal de forma mais leve e construtiva.

“A criação artística, através de formas como a narrativa ou o desenho, pode ser usada para reescrever e reinterpretar as experiências de vida, criando uma distância simbólica que possibilita a cura e a reconstrução da identidade.”
Cathy Malchiodi, "The Art Therapy Sourcebook" (2007).

O distanciamento narrativo é uma ferramenta terapêutica valiosa, mas seu uso inadequado, especialmente em contextos traumáticos ou transtornos dissociativos, pode prejudicar a integração emocional e afastar a pessoa da realidade, dificultando o enfrentamento das emoções. Quando mal orientado, pode gerar alienação emocional e prejudicar o processo terapêutico. Embora o Ileísmo seja eficaz em muitos contextos, seu uso excessivo ou dissociado pode estar relacionado a distúrbios do pensamento, como na esquizofrenia, em que a dissociação não é controlada, pois há uma perda de contato com a realidade. A linha entre distanciamento saudável e dissociação patológica é muito tênue, dependendo de como a técnica é aplicada e da intenção terapêutica. Por isso, é fundamental usá-la com sensibilidade, respeitando os limites individuais ou de grupo para que seja um recurso promotor da saúde e do fortalecimento da identidade. Contexto e intenção são essenciais.

Com base nessa premissa, o caso a seguir ilustra a aplicação do Ileísmo em um grupo de mulheres no ambiente corporativo. O uso da técnica ocorreu em um momento oportuno, ao final de um ciclo de encontros já consolidados, quando o vínculo de confiança entre as participantes, dentro do processo, já se encontrava fortalecido. Esse contexto proporcionou um espaço seguro para que elas compartilhassem conquistas e desafios de forma reflexiva. O distanciamento emocional oferecido pelo Ileísmo permitiu observar as experiências sob uma perspectiva externa, favorecendo a reflexão sem a sobrecarga emocional do momento presente.

 





Durante o estágio realizado em 2019, um dos encontros mais significativos foi justamente o encerramento desse ciclo arteterapêutico. A proposta da sessão foi simbolizar a Jornada de Heroínas, utilizando o ritual de coroação como forma de resgatar os aprendizados e mudanças vivenciadas ao longo do processo. A técnica do Ileísmo foi cuidadosamente integrada ao processo grupal, respeitando o momento evolutivo do grupo e garantindo que a atividade ocorresse de forma segura.

O grupo era composto por cinco participantes: Atena, Hebe, Héstia, Íris e Afrodite. A sessão teve início em um ambiente externo, acolhedor e descontraído, acompanhado por um lanche artesanal que contribuiu para a criação de um clima afetivo. Em seguida, foi proposta uma atividade de contação de histórias, na qual cada integrante narrou sua trajetória pessoal em terceira pessoa.  Esse distanciamento narrativo possibilitou que experiências difíceis fossem acessadas de maneira mais leve e reflexiva, favorecendo a elaboração emocional sem que as participantes fossem consumidas pela dor. 




As histórias compartilhadas foram intensas e marcantes. Atena, que estava prestes a deixar o grupo, celebrou sua aprovação em um concurso público e sua mudança para uma nova cidade com a filha, observando com particularidade o que a participação no processo implicou em sua nova visão de vida “liberdade de escolha, de ação, leveza na alma e certeza de que posso me sentir mais feliz”.  Héstia trouxe à tona a dor pela perda recente da mãe “tudo mudou após a morte de SUA mãe” sendo acolhida com sensibilidade pelo grupo. Íris, inicialmente reticente e emocionada, conseguiu expor e compartilhar sua história, sendo aquela a primeira vez que expressou algo sobre sua vida particular. Afrodite, que não havia finalizado a confecção de sua coroa na sessão anterior, trouxe-a pronta, encerrando simbolicamente seu processo junto às demais e HEBE, corajosamente se expressou com emoção e firmeza. As histórias de vida revelaram trajetórias marcadas por grandes perdas familiares, financeiras, ausência de moradia e dificuldades na relação com a figura materna. Essa sessão foi especialmente catártica e comovente, conforme relataram as próprias participantes. Houve profunda comoção por parte das ouvintes a cada narrativa. 

Em seguida, cada participante foi convidada a se dirigir até um trono simbolicamente decorado, representando o reconhecimento de sua jornada de autoconhecimento e conquistas. Nesse momento, elas declararam seus desejos e intenções para o futuro, em um gesto de autoafirmação e fortalecimento pessoal. Os símbolos utilizados – a coroa , o manto branco de renda e seda, e o cetro improvisado a partir de uma baguete da mesa do café, reforçaram a autonomia e a potência de cada mulher. Apesar da simplicidade dos elementos, o impacto foi profundo, contribuindo para que as participantes se reconhecessem como protagonistas de suas próprias histórias.

Esse relato ilustra como a técnica do Ileísmo, aliada a rituais simbólicos, pode ser valiosa dentro da Arteterapia. Mais do que narrar experiências, trata-se de oferecer meios expressivos e simbólicos que favoreçam o distanciamento saudável, o reinventar de vivências e o fortalecimento emocional — especialmente em contextos grupais, com foco na reconstrução do sujeito a partir de sua própria história.

 

Referências

Ribas, J. C., Lion, C. M., Souza, L. V. (2024). Práticas Narrativas no Brasil: Panorama e Difusão. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003269019

MALCHIODI, Cathy A. The art therapy sourcebook. New York: McGraw-Hill, 2006.

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Sobre a autora: Milena Medeiros



Arteterapeuta AARJ1122

Com mais de 15 anos de experiência em Gestão de Gente e Negócios no mercado Corporativo, hoje atua com a Arteterapia Clínica e Empresarial

Coautora e Coordenadora do Projeto de Atendimento Social Não Palavra Arteterapia

Pós Graduada em Arteterapia pela Clínica Pomar RJ

Certificada pela Escola Humana de Negócios em Arteterapia nas Empresas

Certificada em Visão Sistêmica Organizacional – Systems Team Awarebess – Mundo VUCA – Metaforum Internacional SP

Certificada em Visão Sistêmica com base psicoterapêutica de Bert Hellinger Instituto Luz do Ser/SC e MG

Practioner em PNL pelo Instituto Espaço SER/SC

Certificada pela UNAT- Brasil – 101 Introdutório Oficial de Análise Transacional. Abordagem psicológica de Erick Berne.

   Gestão em PMES – Universidade Metodista de SP