segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

MINHA ORIGEM: ITÁLIA E JAPÃO

Bandeiras: Itália e Japão


Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

Escrevo aqui mais um relato de uma sessão arteterapêutica realizada em domicílio, com meu pai e minha tia materna, lembrando que o meu pai é portador da Doença de Alzheimer e trabalhamos ao longo de dois anos a estimulação cognitiva com ambos, num atendimento grupal por meio do manejo arteterapêutico.

A sessão arteterapêutica de número 18, realizada em 29/agosto/2018 com meu pai (aos 84 anos) e minha tia (aos 91 anos), teve como proposta inicial a experimentação de um material novo: a massa cerâmica fria italiana.

O objetivo era conhecer a massa, sentir se era fácil para se trabalhar, e principalmente saber se sairia fácil das mãos e sem fazer muita sujeira, diferentemente do trabalho com argila.

Massa cerâmica fria italiana



Primeiramente pude observar como os dois estavam trabalhando, amassando, apertando a massa até formarem uma bola.

Tia achou difícil apertar – “dura”, enquanto pai achou fácil apertar a massa.
Continuaram rolando a massa na mesa, batendo e sentindo-a nas mãos.

Tia: ela é fria, gostosa de mexer.
Pai: cabe perfeitamente nas minhas mãos, ela obedece à curvatura dos meus dedos e se mantém redonda. Não aquece e não desmancha rápido. Permanece mantendo o formato. Fácil de manipular.

Em seguida trabalharam a massa com os dedos, porém desta vez com os olhos fechados; lentamente foram surgindo os objetos, conforme fui conduzindo a atividade:“Vão sentindo o que o seu cérebro quer fazer, deem forma nessa massa. Agora abram os olhos, trabalhem a massa. Usem o garfo e faca para fazer detalhes no objeto. Imaginem o que este objeto te traz de memória”.

Pai: ele é mole, quer fazer uma coisa destrói a outra.
Nenhum deles quis utilizar os talheres plásticos para fazer detalhes na massa.

Compartilhamento


Pai: chawan

Palavra final: origem


Pai: é um prato japonês chamado “chawan” – para comer com “hashi”. Para japonês isto é o prato do dia a dia. Come com hashi e leva à boca.
         Foi muito bom, ele é macio, não produz marca na mão, não gruda na mão, se mantém unido. É muito maleável (sobre a massa cerâmica).
         Eu descendente de japonês, como num chawan e faço a cuidadora comer também e ela topa. É muito prático. A minha origem nipônica levou a fazer este objeto.

Tia: rolo de macarrão

Palavra final: recordação

Tia: rolo de fazer macarrão, pizza, massa, pastel.
        Fácil, maleável (sobre a massa).
        Lembrei do macarrão, pastel, capeletti; quando chegava época de Páscoa e Natal, fazia o capeletti recheado de carne, muçarela. Aprendi com minha tia, fazia aquela montanheira de capeletti. Fazia os capeletti e depois traziam para cozinhar, fazer o molho. Depois de cozido punha num pratão, punha o queijo.
        “Avanzate che vengono le guardie!” (minha tia cita esta frase como quando éramos chamados à mesa para uma refeição especial).

Ao final da sessão, conversamos sobre como nós buscamos as nossas origens e confesso que fiquei surpresa com suas falas durante toda a atividade.

Conclusão: gostaram do material, foi muito fácil de usar, e a limpeza das mãos foi em segundos, apenas com água!

Se você quiser ler meus textos anteriores:
Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” CLIQUE AQUI
“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” CLIQUE AQUI

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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe




Arteterapeuta e Farmacêutica

Farmacêutica-Bioquímica graduada pela UNESP Araraquara-SP.
Especialista em Farmácia Homeopática pela USP-SP.
Especialista em Organização de Serviços em Dependência Química pela UNIFESP-SP.
Especialista em Gestão da Assistência Farmacêutica pela UFSC-Universidade Federal de Santa Catarina-SC
Especialista em Arteterapia e Criatividade pela Faculdade Vicentina-PR  
Focalizadora de Danças Circulares pela Prefeitura do Município de São Paulo-SP
Atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos.
Atualmente com o projeto “Mandalas”, em instituição de longa permanência para idosos, sua maioria portadores da Doença de Alzheimer.
Atendo em domicílio.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

COMO RECONSTRUIR EM MEIO AO CAOS?: Relatos sobre uma oficina arteterapêutica




Mercedes Duarte - RJ
duarte.mercedes@gmail.com

Em uma oficina arteterapêutica - intitulada “Ordenando o caos”, em caráter experimental, em uma casa cedida por uma amiga, aplicada em um grupo de seis pessoas, em que cinco eram artistas, sendo a maioria parte da faixa etária de cinquenta a setenta anos, contando apenas com um jovem - trabalhei inspirada em textos[1] e em uma aula, ministrada no curso de arteterapia do Espaço Terapêutico Psi, sobre o Dadaísmo, da arteterapeuta Eliana Moraes.
 
O Dadaísmo (1916)[2] se define por um movimento artístico de vanguarda de cunho político. Ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial, o movimento é criado por um grupo de artistas e intelectuais, fundadores do Cabaret Voltaire (Zurique), em uma época em que a noção de racionalidade humana havia se esgarçado. Desde o Iluminismo, o Ocidente acreditou que a razão levaria as sociedades e indivíduos a um elevado grau de desenvolvimento, em que a felicidade humana seria plena (GIANNETTI, 2002). Entretanto, especialmente com a culminação das guerras, essas expectativas viram-se frustradas. Desse modo, os valores vigentes passaram a ser questionados, e muitas vezes combatidos, incluindo as noções estéticas e artísticas correntes.

O Dadaísmo surge como um sopro de destruição aos padrões do que era considerado arte. Pressupunha a expressão do caos, da desordem, da destruição, do absurdo e da irracionalidade. Contra o capitalismo, os valores burgueses, o consumismo - que representavam uma ordem social fracassada, erguida sob a égide da racionalidade - seus poemas, performances, trabalhos plásticos, entre outras linguagens, exploravam o “automatismo”, o acaso, a espontaneidade e a irreverência (MARTINS, 1999; MORAES, 2018).

Em tempos em que a organização social parece desacreditada, expressar a destruição e o caos através da arte, e nesse caso, mediante a arteterapia, abre espaço para explorarmos novos sentidos e reordenamentos possíveis. É frequente nos sentirmos impotentes frente a opressões externas e desarranjos sociais. A arteterapia, portanto, pode ser uma ferramenta que nos encoraja a encontrar um lugar no mundo e a responsabilidade que nos cabe nele, mesmo que em nível de nossos afetos e trânsitos cotidianos. Responsabilizar-se, por aquilo que nos é possível, é encontrar potenciais de transformação em si mesmo, e diminuir o sentimento de impotência que leva ao imobilismo e ao aumento desenfreado de diagnósticos de depressão.


Na oficina em questão trabalhamos a destruição como acaso; o ato de destruir o que incomoda e de reconstruir/reconfigurar sentidos a partir dos devires da vida, ou, como disse Sartre (2012) em virtude da biografia de Saint Genet: a partir do que as pessoas fizeram de nós[1]. Sem dúvida tivemos distintas respostas evidenciadas nos trabalhos plásticos e nas falas que os sucedem. Entretanto, o que marcou a oficina, segundo minha leitura, foi certa dificuldade de alguns participantes reconfigurarem/reordenarem de forma ativa suas trajetórias após a “destruição”.

Levo aqui em consideração, especialmente, o fato de se tratar de pessoas que estão próximas ou já fazem parte da chamada terceira idade. Existe, como sabemos, uma série de questões que envolve esse período da vida. Em especial, no que toca a proposta da oficina, a sensação de exclusão social e de não pertencimento. No entanto, como aponta a Organização Mundial de Saúde (2017), a expectativa de vida aumenta ao longo das décadas, o que nos traz cada vez mais a necessidade de pensarmos modos de possibilitarmos a reintegração e sentimento de pertencimento dessa faixa etária. Mais uma vez, o trabalho arteterapêutico, que, entre outras coisas, lança mão da arte como “conscientizadora” e potencializadora de nossa ação no mundo, pode ser considerado uma ferramenta bastante útil.



O fato de alguns participantes terem tido dificuldades na ressignificação e/ou reorganização de seu “caos” não anula o poder do processo terapêutico. De acordo com Angela Philippini (1998) o uso da palavra, por exemplo, quando expressa a tomada de consciência dos processos terapêuticos, só acontece

algumas vezes anos depois, quando a energia psíquica tiver podido pouco a pouco, percorrer a “distância” que separa os processos psíquicos primários [que não passam pelo crivo da consciência], dos processos psíquicos secundários de elaboração simbólica. De todo o modo (...) já terá o indivíduo vivenciado dentro de si, aquilo que efetivamente a arteterapia tem de mais benéfico e produtivo terapeuticamente, que é: expressar, configurar, e materializar conflitos e afetos, realizando um conjunto de atos que podemos designar genericamente como: “O FAZER TERAPÊUTICO” (1998, s/n).
        
 É esse “fazer terapêutico”, mencionado por Philippini (1998), que pode nos munir de força criadora para transformar a realidade que nos cabe. Já o trabalho arteterapêutico em grupo tem a particularidade de mobilizar redes, afetos e espelhos. Um dos relatos mais comoventes da oficina, que envolvia a maior parte dos participantes que eram atores, foi sobre o quanto o fechamento de um teatro onde atuavam estava afetando o participante. Esse relato/revelação comoveu a todos que estavam implicados na situação, promovendo acolhimento, solidariedade e desejo de enfretamento da situação. 

De acordo com Ligia Diniz, no processo de maturidade

várias etapas precisam ser percorridas e elas vão desde a preocupação meramente egóica até um outro patamar que implica na abertura para o social e transcendente. Tendo reconhecido seu valor pessoal e tendo se apropriado de sua própria luz, o homem pode, então colocá-lo a serviço de um benefício coletivo. (...) Confrontando-se com aspectos esquecidos do eu, relacionando-se com as perdas inevitáveis ao longo da jornada, mergulhando no inconsciente, encarando a própria sombra, o ser humano é capaz de corrigir rotas e transcender (p.113).

Obviamente que não existem fórmulas fáceis para lidarmos com as opressões externas e com aquilo que elas nos causam. Mas elaborar maneiras de construirmos caminhos alternativos, mesmo que pouco expressivos aos olhos alheios, é um alento, e é possível quando estamos atentos ao nosso lugar no mundo, e encontramos e produzimos meios de expressão, integração e solidariedade. Que consigamos então produzir mais arte terapêutica e construir mais teatros, nas ruas, nas casas, nas vilas e nas favelas.  






[1] Ver nas referências livro de Eliana Moraes.
[2]  Seu manifesto, escrito pelo poeta romeno Tristan Tzara (1896-1963), data de 1918, quando alcançou maior visibilidade.

[3] Nesse contexto podemos substituir a palavra “pessoas” por “vida”. O fragmento sartreano completo, largamente citado, é: “o importante não é o que as pessoas fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que elas fizeram de nós” (SARTRE, 2012, p.49, tradução nossa).  

Referências Bibliográficas:

DINIZ, Ligia. Espiritualidade e Arte Terapia. Arte Terapia: Coleção Imagens da Transformação.  vol. 10, nº 10. Rio de Janeiro: Pomar, 2003.

GIANNETTI, Eduardo. Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

MARTINS, Ana Maria Pina. Movimento Dada: O banal e o indizível. Análise Psicológica [online], vol. 17, nº 4, pp. 723-726. Lisboa, 1999.

MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia. Divino de São Lourenço: Semente Editorial, 2018.

OPAS/OMS Brasil. Expectativa de vida aumenta para 75 anos nas Américas. 2017.
Disponível em:

PHILIPPINI, Angela. Imagens da Transformação. Coleção de Revistas de Arteterapia. Vol. 5. Rio de Janeiro: Pomar, 1998.

SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet: actor and martyr. Traduzido por Bernard Frechtman. University of Minnesota: Press edition, 2012.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte




Socióloga/ Mestre em Ciências Sociais/ Arteterapeuta em Formação


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

ORAÇÃO PARA 2020



Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra

O blog Não Palavra esteve de férias desde dezembro do último ano. E como de costume utilizo este tempo para um recolhimento. Este movimento de introversão me é útil para recarregar as energias, refletir sobre o caminho percorrido durante o ano e aguçar a intuição para os passos que estão por vir.
Encerramos o ano com o lançamento do livro “Pensando a Arteterapia Volume 2” e neste período de introspecção pude relê-lo alcançando um olhar mais distanciado para o que ele constelou. Nele está registrado uma etapa do meu percurso em que estive bastante instigada a pensar e estimular que o arteterapeuta se aproprie do seu lugar:

Tenho-me dedicado à conscientização do arteterapeuta como portador da sensibilidade tão singular do artista, como aquele que capta, percebe, compreende, expressa e traduz para as mais variadas linguagens da arte as questões mais profundamente humanas, mas especialmente aquele que exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território “sagrado” para que ela aconteça. Penso que a tomada de consciência sobre a profundidade, responsabilidade e convocação que tal função nos permite seja essencial para a construção de um arteterapeuta. (MORAES, 2019, 129-130)

Já nas últimas páginas do livro reconheço a minha contribuição pessoal:

Esse caminho de desenvolvimento da sensibilidade artística é absolutamente íntimo e pessoal. E aqui reforço meu incentivo para que cada arteterapeuta participe desse esvaziamento de si e (se) ouça como pode exercer seu ofício, oferecendo os materiais e estímulos que o social nos pede. Neste texto, compartilho a minha experiência pessoal, que não é “a verdade” ou “a solução”, mas a minha contribuição: a experiência do Belo. (MORAES, 2019, 179)


Estou convencida de que através da Arteterapia, oferecemos ao social verdadeiras experiências com o Belo. Em cada encontro com a arte vivenciamos o sensível, o sublime, o poético, o profundo. Experimentamos a sensação de enlevo, de eternidade. Através desta experiência, somos positivamente contaminados com uma nova energia, que nos potencializa para enfrentarmos os mesmos desafios da vida que já nos consumiam. Mas agora os olhamos de frente, alimentados e fortalecidos.

Durante o período sabático que me levou a profundas reflexões, alguns eventos da vida me impeliram a questionar qual era o sentido do meu trabalho. Confesso que ainda não (re)encontrei respostas definitivas. Mas uma experiência vivida nos últimos dias de 2019 tem ecoado em meus pensamentos. No dia 29 de dezembro fui ao velório de uma paciente querida, que pude acompanhar por oito anos e testemunhar o poder estruturante e ressignificador da arte. Despedir-me desta mulher que tanto me ensinou como um ser humano pode atravessar toda uma vida sem se deixar derrotar pelo pior da humanidade foi uma das experiências mais marcantes dos últimos anos.



Já mergulhada em minhas reflexões, me emocionei quando a celebrante do velório me lembrou da oração de São Francisco e esta oração me ofereceu algumas respostas sobre o sentido do meu trabalho, ofício, missão. Hoje tomo a liberdade de compartilhar um fragmento desta oração com os amigos do Não Palavra que, independente da sua religiosidade, pode meditar sobre esta oração tão sincera e profunda:

Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz
Onde houver ódio, que eu leve o amor
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão
Onde houver discórdia, que eu leve a união
Onde houver dúvida, que eu leve a fé
Onde houver erro, que eu leve a verdade
Onde houver desespero, que eu leve a esperança
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria
Onde houver trevas, que eu leve a luz.


E pensei: Onde houver aridez, que eu leve a arte.

Abre-se 2020 e tudo o que nele contém. Arteterapeutas, mãos a obra!


* As imagens que ilustram este texto foram tiradas no evento "Conversando com a Arte de Beatriz Milhazes", considerada por alguns críticos como "um oásis do belo na arte contemporânea". Este evento foi feito em duas turmas no dia 24/01/20 em parceria com Vera de Freitas.
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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2