Por Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
Quando falamos em colagem, inicialmente
podemos nos deparar com uma série de preconceitos, como por exemplo colocando-a
como uma técnica infantilizada. Entretanto, ao estudarmos sobre a inserção da
colagem na História da Arte, que se deu no início do século XX, no advento da
Arte Moderna com raízes no Cubismo, constatamos
a profundidade dos simbolismos contidos nesta linguagem da arte inserida em seu
contexto histórico e sociocultural. A contextualização da colagem na História
da Arte faz com que o arteterapeuta se conscientize da profunda herança
simbólica que ela carrega a cada oportunidade de oferece-la ao seu
paciente/cliente. Neste texto não me aprofundarei neste tema, mas deixo aqui a
sugestão de pesquisa e estudo.
Outra percepção equivocada sobre
a colagem se dá quando é vista como uma técnica simplória, propícia para uma
fase inicial ou primária da experiência
da Arteterapia. Esta percepção se torna falaciosa, quando compreendemos que o
fato da colagem ter como benefício a não complexidade durante o ato criativo,
não minimiza o grande potencial que está contido em seu processo, podendo ser
acessada em qualquer etapa do percurso terapêutico e explorada em diversas
complexidades a medida da riqueza de materiais possíveis de serem utilizados.
O processo da colagem se dá
em dois tempos, riquíssimos em simbolismos, que remontam dinâmicas tão
presentes na vida cotidiana: o primeiro se refere à desconstrução,
fragmentação, um caminho para a abstração; o segundo, a colagem propriamente
dita, se refere à (re)construção e (re)composição como um caminho possível
diante dos fragmentos físicos e/ou subjetivos.
Colocar o paciente/cliente de Arteterapia na experiência do primeiro tempo fica
a critério do arteterapeuta, tendo em vista se o sujeito necessita vivenciar o
processo de desconstrução. Mas se ele já se encontra “fragmentado”, somente há
sentido na vivência do segundo tempo.
A partir da prática e
observação clínica, alguns aspectos sobre a colagem são importantes serem
destacados:
a) As propriedades
A colagem é uma técnica estruturante
e de controle. No diálogo com a imagem, coloca o sujeito em relação
prioritariamente com a forma, em detrimento da cor.
Todas as técnicas da
Arteterapia estimulam as quatro funções psíquicas descritas por Jung, mas
naturalmente em cada uma delas, uma função específica se torna protagonista. Na
experiência da colagem, a função principal convidada é a Função Pensamento.
No primeiro tempo é
trabalhada a desconstrução, fragmentação, quebra do estabelecido, o abrir mão:
experiências que não raras vezes a vida impõe de forma avassaladora na biografia
de um sujeito. Entretanto no segundo tempo, é proporcionada a experiência do controle:
as linhas/traços são feitos com a tesoura; o processo envolve escolher,
delinear, compor; a composição estimula a organização de múltiplos elementos,
associações entre as partes, integração do fragmentado; a imagem se estrutura
através dos contornos, limites, localização, circunscrição, tamanho definido.
b) O processo: verbos; ações e movimentos externos/internos
Colocar o sujeito na
experiência com o material significa colocá-lo para agir sobre suas
questões. Desta forma é interessante ao arteterapeuta atentar-se para os
“verbos” ou as ações que cada material proporcionará externa e internamente em
seu paciente/cliente.
No processo da colagem, no
primeiro tempo, podemos destacar verbos como quebrar, fragmentar, cortar,
desconstruir, destruir, decompor.
No segundo tempo, escolher,
selecionar, priorizar, ordenar, planejar, organizar, reunir, integrar. Encontrar
um “novo possível” (as vezes “não-belo”, não harmonioso, não equilibrado). (Re)compor,
ressignificar, reinventar(-se).
c) Os potenciais
c.1) Perfis de
pacientes/queixas, palavras chave:
O primeiro tempo é
interessante ser proporcionado a sujeitos com enrijecimento de pensamentos,
sentimentos, perspectivas, desejos ou construções e que a vida apresenta a
necessidade de descontruir-se para reconstruir-se, ou seja a necessidade
de flexibilidade, lidar com o não
controle sobre a vida.
O segundo tempo deve ser proposto
para aqueles em que já houve a desconstrução, como cenários de perdas e/ou
traumas (ego fragmentado). Para pacientes/clientes que apresentam desorganização,
falta de equilíbrio, de contornos e limites, excessos, misturas, espalhamentos,
transbordamentos de conteúdos, pensamentos, sentimentos.
Vale ressaltar que, ao
contrário das ideias simplórias sobre a colagem, estas descrições se encaixam
em qualquer momento de uma vida e consequentemente em qualquer estágio de um
processo terapêutico.
c.2) Pouca resistência
Uma das grandes qualidades
da colagem como técnica arteterapêutica se dá por não demandar grande histórico
ou intimidade com o fazer artístico: os elementos já estão prontos, devem “apenas”
serem selecionados e compostos. Sendo assim, ela é uma técnica propícia para os
primeiros contatos com as técnicas expressivas, excelente porta de entrada para
outras linguagens além da verbal, para o mundo das imagens e para o ato de
criar, nas modalidades individual ou grupal.
Inicialmente trabalhos com
figuras de revista se mostram as propostas mais indicadas, pois as imagens com
tanto potencial projetivo estão postas para serem manejadas a partir da subjetividade
de cada um. Mas a medida do aprofundamento da intimidade com o criar, abre-se
ao arteterapeuta um campo para a ampliação dos materiais, como papéis de
variadas cores, estampas e texturas além de tecidos e aviamentos. É possível
ampliar ainda mais para utilização de qualquer material “estranho”, à
inspiração de Picasso, considerado:
“o descobridor da colagem, a qual pode ser descrita
como a incorporação de qualquer material estranho à superfície do
quadro... fragmentos de jornais, maços de cigarro, papéis de parede e tecidos
estão relacionados com a nossa vida cotidiana; identificamo-los sem esforço
e... formam parte de nossa experiência no mundo material que nos cerca...”
(Golding in Stangos)
Nesta perspectiva, cabe ao
arteterapeuta fugir do senso comum e enriquecer ao máximo as possibilidades de
materiais para colagens em seu atelier. É possível também estimular que o
próprio paciente/cliente invista (de si) em coletar seu próprio material. Como
referência na História da Arte, temos as assemblagens de Kurt Schwitters e sua Merz
Art, vistas como uma espécie de coluna, quase um totem, feita de coisas
encontradas ao acaso e acrescidas às outras, dia após dia. Uma composição de
tudo o que por acaso caiu sob suas vistas ou esteve ao alcance da mão, chamou
sua atenção por um instante, ocupou sua vida por algum momento - passagens
usadas de bonde, pedaços de cartas, barbantes, rolhas, botões, etc. Com o
objetivo de "criar relacionamentos entre as coisas do mundo", os
elementos recolhidos e combinados que haviam sido descartados pela sociedade
por não servirem mais, por terem cumprido suas funções (algumas pessoas podem
se identificar com esta descrição), mas por serem "vividas", comporão
o quadro, arte.
.
c.3) Repetição Criativa
“Repetir,
repetir – até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.” Manoel de
Barros
O tempo de elaboração da clínica
individual é singular e caminha ao ritmo do sujeito. Sendo assim, na prática,
não há necessidade de trocar de material a cada sessão, pelo contrário
manter-se em diálogo com um material e uma técnica (demorar-se, algo que tem se
perdido em nossa contemporaneidade), proporciona o aprofundamento das reflexões
e dos movimentos externos/internos.
A colagem em sua diversidade
de possibilidades em propostas e materiais, é uma excelente técnica que
proporciona por tempo estendido a oportunidade da repetição para a elaboração:
não a repetição obsessiva, mas a “repetição criativa” que possibilita
retificações ao longo do processo de autoconhecimento.
c.4) Estimulação
cognitiva idosos/seres humanos
Um dos benefícios da
Arteterapia no trabalho com idosos se dá porque de forma criativa, lúdica, leve
e convidativa os pacientes/clientes estimulam as mais variadas funções
cognitivas como atenção, concentração, memória, linguagem, funções executivas,
praxia, abstração. A estimulação cognitiva é um imperativo da gerontologia e no
processo da colagem isto se dá de forma especial, acionando diversas funções
cognitivas para a resolução da composição da imagem.
Porém, independente da
faixa etária, a colagem é encaminhada para qualquer contexto em que o
arteterapeuta intente estimular a busca de soluções, o reconhecimento dos
recursos, a criação de estratégias e suas execuções, além de trabalhar a proatividade,
pensar fora da caixa, principalmente quando explorada a pluralidade de
materiais.
d) Materiais de apoio
A medida da ampliação dos
materiais utilizados na colagem, inclusive caminhando para a assemblagem, o
arteterapeuta deve atentar-se para dispor em seu atelier de materiais de apoio
que deem sustentação para o processo criativo e o encontro de soluções por
parte do sujeito. É essencial
disponibilizar bases resistentes como papelão, papel paraná, cartão
kraft grosso (de cor parda), papel duplex ou triplex (de cor branca), madeira,
tela... Deve dispor também de materiais para colar diferentes elementos como cola
cascorez, cola quente, fita crepe, grampeador, arame, gominha, tachinha, tachinhas
tipo bailarina, prego...
Vale ressaltar que a
pluralidade de materiais envolvidos na colagem, em geral, envolve materiais de
baixo custo ou até mesmo reaproveitamento de materiais. Este é um dado que vai
ao encontro da realidade prática de arteterapeutas que possuem poucos recursos
de investimentos para materiais, como por exemplo em trabalhos institucionais
em que a direção não oferece recursos para manutenção do material.
e) Herança Simbólica
“Porque
a vida, a vida, a vida, a vida só é possível se reinventada.” Cecilia Meireles
em Reinvenção
Na contramão de ideias
preconcebidas que colocam a colagem como uma técnica simplória, o
aprofundamento do estudo sobre sua história e sobre o potencial mobilizador de
seu processo empodera o arteterapeuta para seu manejo no setting
arteterapêutico. É importante que ele esteja seguro que o ato criativo da
colagem possui uma profunda herança simbólica que remonta nos materiais
movimentos de vida que demandam o (re)criar, o (re)construir e o (re)inventar,
encaminhando o sujeito para uma “resiliência criativa”, as vezes imperativa
para o atravessamento de uma biografia.
Conclusão:
“Fracionar e rejuntar, como faz a colagem, não repõe
a unidade quebrada. Ela não pasteuriza nem pacifica. Não tem vocação
democrática se isto for entendido como união de todas as diferenças. Há
diferenças que não cabem em determinadas formas mas cabem em outras.” Marx Ernst
(Golding in Stangos)
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Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Referências Bibliográficas:
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia:
uso, indicações e propriedades
STANGOS, Nikos (org).
Conceitos da Arte Moderna
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.