terça-feira, 14 de outubro de 2025

MUSEUS, GALERIAS E ARTETERAPIA: A PROMOÇÃO DO BEM ESTAR ATRAVÉS DA APRECIAÇÃO ESTÉTICA


Por Karine Drumond - MG

A Arteterapia é um campo vasto e dinâmico que utiliza o processo criativo e os materiais artísticos como via de expressão, autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. A visita a exposições e museus de arte se apresenta como uma rica, embora por vezes subutilizada, ferramenta complementar no setting terapêutico.

Ir a uma exposição não é apenas um passeio cultural, mas uma imersão em um universo de símbolos e emoções que pode catalisar insights profundos. Meu propósito é explorar como a apreciação estética de obras de arte, a princípio vista como fora do escopo da produção do cliente, pode se integrar e enriquecer o processo terapêutico.

O Diálogo com o campo de atuação

A ideia de que a arte, para além da criação, atua na saúde mental e no bem-estar não é nova e tem ganhado destaque em diversas áreas.

Prescrição Cultural 

A literatura contemporânea em saúde, especialmente em países como a Suíça e no relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019, aponta para a eficácia da "prescrição cultural", onde médicos e profissionais de saúde incluem visitas a museus e galerias como parte do tratamento para problemas de saúde mental e doenças crônicas. Esta abordagem reconhece os benefícios neurobiológicos da exposição à arte, como a liberação de dopamina (hormônio do prazer) e a redução dos níveis de estresse e ansiedade.

Psicologia e "Flow"

O psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi, com seu conceito de "Flow" (estado de imersão total em uma atividade), sugere que a contemplação de uma obra de arte pode induzir a um estado de plenitude, desconectando o indivíduo de preocupações diárias e promovendo a satisfação profunda, um processo valioso para a saúde mental.

A Perspectiva Junguiana

Na psicologia analítica, que fundamenta muitas abordagens arteterapêuticas, Carl Jung defendia que a arte é uma expressão do Inconsciente Coletivo. A visita a museus permite ao cliente dialogar com uma vasta gama de símbolos arquetípicos, presentes nas obras de arte de diferentes culturas e épocas. Essa conexão simbólica pode despertar emoções, memórias e reflexões sobre aspectos profundos de si mesmo, facilitando a elaboração e a integração de conteúdos psíquicos.

Possibilidades na Arteterapia

Em Arteterapia a visita a exposições pode ser utilizada de forma intencional para a ampliação do Repertório Simbólico. A exposição a diferentes estilos, temas e linguagens artísticas pode oferecer ao cliente novas "palavras" visuais, expandindo seu leque de possibilidades para a expressão no ateliê. Uma obra pode servir como um catalisador, um ponto de partida para a sua própria criação.

Ao apreciar uma obra, o cliente pode projetar sentimentos e conflitos internos na imagem. O Arteterapeuta pode guiar a observação com perguntas como: "Qual obra te toca mais e por quê?", "Que emoção essa cor ou forma te evoca?", "Que história essa imagem te conta?". A obra de arte de um artista consagrado, ao ser apreciada, atua como um "espelho" neutro, permitindo ao cliente falar sobre si indiretamente.

Ver que outros seres humanos, através da história e de diferentes culturas, expressaram temas como dor, alegria, transformação ou solidão, pode gerar um sentimento de universalidade da experiência humana. Isso pode ser particularmente terapêutico para quem se sente isolado em sua experiência.

Além disso, a apreciação estética estimula a imaginação, a intuição e a capacidade de fazer associações. Ao sair do seu ambiente habitual e se deparar com o inesperado da arte, o cliente é convidado a exercitar a sua flexibilidade psíquica e a sua capacidade de ressignificação.

Em suma, a visita a museus e exposições em Arteterapia não é sobre ensinar história da arte ou julgar a estética. É sobre criar um encontro mediado e sensível entre o mundo interno do cliente e o vasto acervo de expressões da alma humana. É um convite para que o cliente se aproprie da arte — e dos seus símbolos — como um recurso de promoção da saúde mental e um portal para o autoconhecimento.


Referências


Ir a museus melhora a saúde mental. Somos Newa, [S.d.]. Disponível em: https://somosnewa.com.br/ir-a-museus-melhora-a-saude-mental/. Acesso em: 13 out. 2025.

MANTOVANI, Cecile; BALIBOUSE, Denis. Arte como terapia: médicos suíços estão prescrevendo visitas a museus. Medscape, 20 mar. 2025. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6512477. Acesso em: 13 out. 2025.

Museu como terapia? Básico365, 24 mar. 2025. Disponível em: https://www.basico365.com.br/post/museu-como-terapia. Acesso em: 13 out. 2025

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Sobre a autora: Karine Drumond

Karine Drumond tem uma formação em Design, Arte Educação. Pós graduanda em Arteterapia pelo INTEGRATE - MG. Com sólida experiência facilitando processos criativos para mulheres e crianças entre 7 e 14 anos. Atuou como pesquisadora e professora em Design na PUC Minas por mais de 10 anos. Recentemente atuou na ONG Projeto Reconstruir, utilizando a arte como ferramenta de expressão e transformação social. Atualmente, está à frente do EquilibrArte, projeto em construção que pretende promover vivências que integram yoga, arteterapia e autoconhecimento para resgatar o bem-estar e a criatividade pessoal e coletiva.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

RESIDÊNCIA ARTÍSTICA E A ARTETERAPIA

 


Casa Estrelinha - Ilha do Ferro- Alagoas

Regina Célia Rasmussen – SP

@espacocrisantemo1

Em maio de 2025, participei de uma residência artística em Ilha do Ferro, um pequeno povoado de Pão de Açúcar, Alagoas. A experiência despertou em mim sensações e emoções adormecidas, como se minha alma fosse novamente convidada a respirar. Foram dias intensos, em que o olhar, o paladar, o corpo e a mente foram provocados e atravessados por novas descobertas.

A residência artística tem como propósito deslocar o artista para um contexto cultural distinto, oferecendo vivências capazes de nutrir e desafiar a criatividade. É um espaço-tempo em que o cotidiano se rompe e dá lugar à abertura: para o encontro com o outro, com a cultura local, com a natureza, com  o fazer artístico e, sobretudo, consigo mesmo.

Ilha do Ferro revelou-se para mim como uma viagem por um túnel do tempo. Foi como retornar à infância, a um período em que não existiam celulares, em que os perigos não eram tão iminentes e a vida parecia seguir em um compasso mais lento, com dias que se alongam no tempo Kairós.

O povoado, com cerca de 500 moradores, abriga em quase um quarto de sua população artistas populares. São homens e mulheres dedicados às mais diversas linguagens expressivas — e até ao mobiliário criativo — que carregam a marca singular da comunidade.

Éramos cinco residentes: três artistas visuais, uma escritora e eu - arteterapeuta criativa.

O coordenador da residência artística, Roger Basseto, é artista contemporâneo e educador, que valoriza o processo criativo. Ele explora cadernos (sketchbooks) e variadas técnicas em seu ateliê - Estúdio Pop - onde também oferece workshops.                                    

                                                  

 Roger Basseto

A casa que nos acolheu às margens do Rio São Francisco já se apresentava como um templo sagrado da arte local. Suas paredes e cômodos apresentavam símbolos do povo ribeirinho — esculturas, pinturas, bordados e objetos que transbordavam histórias. Esse ambiente, repleto de criação, era em si um convite à percepção e à imaginação. 




As manhãs se tornaram um convite para o fazer criativo. Cada gesto parecia dialogar com a paisagem e com a energia do lugar. Os almoços eram nas casas de moradores, momentos em que pude conhecer famílias, construir vínculos e ouvir narrativas que misturavam memórias ancestrais com crenças no futuro.

À tarde, seguíamos em visita aos ateliês, onde os artistas nos recebiam generosamente, apresentando seus processos criativos e as obras que expunham à venda — hoje, o grande motor da economia do povoado.

Entre tantas descobertas, chamou-me especial atenção o bordado típico da Ilha do Ferro, conhecido como Boa-Noite, caracterizado pela técnica de desfiar o tecido para formar delicados desenhos geométricos e florais com fios. Seu nome deriva de uma planta típica da região, e ele é repleto de significado, como se cada ponto guardasse a memória das mãos que o tecem e a identidade de um território.

Durante os dez dias em Ilha do Ferro, realizamos dois passeios que ampliaram ainda mais nossa experiência. Visitamos a cidade de Pão de Açúcar, com sua feira típica do Nordeste, e navegamos pelo majestoso Rio São Francisco até Entremontes — onde grande parte das mulheres se dedica ao bordado, perpetuando uma tradição delicada e ancestral — e até Piranhas, cidade marcada pela memória do cangaço, outrora conhecida por exibir as cabeças dos cangaceiros.

Ao cair da noite, quando o sol se despedia nas águas do Velho Chico e os pássaros faziam suas algazarras: íamos nos reunir com moradores e alguns poucos turistas no bar O Macumba. Sob o comando de André Dantas, o espaço transformou-se em uma verdadeira exposição permanente das artes e das histórias da Ilha do Ferro e de suas redondezas. Ali, entre conversas, risos e olhares curiosos, seguíamos desenhando e criando, embalados pelos estímulos visuais e pelo encantamento das histórias dos “Encantados”.

Senti fortemente o prazer da simplicidade: o sabor de um peixe fresco, o encontro das crianças em jogos e brincadeiras às margens do rio, o bordado realizado vagarosamente pelas mãos das mulheres da comunidade. Tudo me lembrava que a vida pode ser plena no essencial, sem a pressa e o excesso que tantas vezes nos afastam de nós mesmos.

Essa simplicidade, tão presente na Ilha do Ferro, ecoou dentro de mim como um convite à leveza. Percebi que, assim como na arteterapia, não é a complexidade do recurso que importa, mas a autenticidade do gesto - seja em um risco traçado no papel ou em um ponto bordado no tecido. Cada experiência carregava potência de sentido e me devolveu a alegria de estar no aqui e agora. Como afirma Zinker (2007 p.20 e 21):

                                                 “O processo criativo é terapêutico porque nos permite expressar e examinar o conteúdo e as dimensões de nossa vida interior. A vida tem a medida da plenitude que nos é possibilitada pela variedade de veículos que encontramos para concretizar, simbolizar e expressar de inúmeras maneiras todas as nossas experiências.”

Na convivência com os moradores, fui tocada pela maneira como vivem com dignidade e beleza, mesmo diante das limitações materiais. Esse olhar me fez refletir sobre o quanto podemos nos nutrir do simples — e como a arteterapia, em sua essência, também é um exercício de reencontro com aquilo que é essencial em nós: o processo criativo, o vínculo humano, a expressão do que pede voz.

Na Ilha do Ferro, percebi, mais do que nunca, que a arte não é apenas produção, mas modo de viver. Manifesta-se no ato singelo de bordar, na escultura que nasce da madeira, nas sentadas preguiçosas na porta de casa ao entardecer e na expressão de quem compartilha sua história. Essa experiência me mostrou que a arteterapia também se constrói assim: na confluência entre a vida e a criação.

Voltei trazendo comigo não apenas boas lembranças, mas a certeza de que o essencial é o que sustenta nossa humanidade.

Acredito que seja justamente isso que uma residência artística, assim como o setting de arteterapia, nos oferece de mais valioso: a oportunidade de experienciar um espaço em que arte e vida se encontram. É nesse encontro - na contemplação, no fazer artístico, no contato com o outro, no coletivo e na simplicidade -  que reside a verdadeira potência da transformação.

Referências

BASSETO, Roger - https://www.instagram.com/rogerbassetto/

ILHA DO FERRO - https://www.instagram.com/_ilhadoferro/

STUDIO POP - https://www.instagram.com/pop_studiopop/

ZINKER, Joseph. Processo Criativo em Gestalt-terapia. .ed. - São Paulo: Summus Editorial



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Sobre a autora: Regina Célia Rasmussen



Bordadeira

Bacharel em Pedagogia (Faculdade de Educação USP)

Pós graduada: Orientação Educacional, Supervisão Escolar, Gestão Escolar, Psicopedagogia e Arteterapia.

Gestora do Espaço Crisântemo - @espacocrisantemo1