segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Quadrado e o Círculo

Por Flávia Hargreaves

Piet Mondrian. 1942.

“Aquilo que eu entendo aqui como beleza não é o que a gente comum entende geralmente por este nome, como, por exemplo, a dos objetos vivos ou das figurações deles; é, pelo contrário, alguma coisa de retilíneo e de circular, as superfícies e os corpos sólidos compostos por meio de compasso, do cordão e do esquadro. Com efeito, estas formas não são como as outras, belas em certas condições, mas são belas em si.” (Platão, em Filebo, sobre arquitetura)

Há algum tempo me pergunto sobre o lugar das imagens abstratas na Arteterapia, em especial o lugar das linhas retas, das formas geométricas, e o uso de instrumentos como réguas, esquadros, compassos, que se desdobram nas curvas francesas e na régua flexível. Sim, pasmem: Existe uma régua que se chama “régua flexível”, que aliás é bem antiga.

Nas palavras do artista e escritor belga Michel Seuphor, fundador do grupo Cercle et Carré, as imagens do círculo e do quadrado correspondiam ao "[...] emblema da mais simples totalidade das coisas. O mundo racional e o mundo sensorial, a terra e o céu no antigo simbolismo chinês, a geometria retilínea e a geometria curvilínea, o homem e a mulher, Mondrian e Arp." Isto não me parece pouca coisa ...

O que me leva à Mandala, tão popular nos meios da Arteterapia. Afinal, a mandala é um círculo, muitas vezes inscrita ou circunscrita em um quadrado, integrando o espírito e a matéria. Mas este seria o único ponto de contato que percebo da Arteterapia com a geometria. E mesmo este contato me parece frágil nas praticas com mandalas.
Na obra de Mondrian, “a cor pura se projeta no plano, encontrando seu oposto na não-cor, no cinza, no branco e no preto. As oposições se desdobram no quadro: linha negra/plano branco, linha espessa/linha fina, planos abertos/planos fechados, planos retangulares/quadrado da tela, cor/não-cor. As composições se estruturam num jogo de relações assimétricas entre linhas horizontais e verticais dispostas sobre um plano único. A forma obtida a partir daí, indica Schapiro em ensaio clássico sobre o artista, é totalidade sempre incompleta, que sugere sua continuidade além dos limites da tela. O neoplasticismo de Mondrian dispensa os detalhes e a variedade da natureza, buscando o princípio universal sob a aparência do mundo. Menos que expressar as coisas naturais, sua arte visa, segundo ele, a ‘expressão pura da relação’”. 

Mergulhando no universo dos quadrados, triângulos, círculos, e a infinidade de formas possíveis a partir das linhas retas e redondas, acompanhada por grandes artistas como Kandisnky, Mondrian, Malevich e tantos outros como os brasileiros Helio Oiticica, Lygia Clark, Ligia Pape, Geraldo de Barros, Aluísio Carvão, por exemplo, que tiveram parte de sua obra dedicada à abstração geométrica, percebo com estranheza a restrição ao uso de réguas e compasso em Arteterapia. Dialogar com estes artistas e suas obras não teriam uma contribuição importante para nós, arteterapeutas? Será que nossa relação com a geometria deve se limitar às mandalas? Seriam as linhas retas, as réguas, os esquadros, os compassos, os vilões contra os quais temos que lutar com todas as nossas forças? Apolo será sempre um chato, e Dionísio estaria sempre a postos para responder às nossas necessidades?

Fazem 100 anos que Malevich disse "Eu me transformei no zero da forma e me puxei para fora do lodaçal sem valor da arte acadêmica. Eu destruí o círculo do horizonte e fugi do círculo dos objetos, do anel do horizonte que aprisionou o artista e as formas da natureza. O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva. O rosto da nova arte. O quadrado é o infante real, vivo. É o primeiro passo da criação pura em arte" (1915).

O círculo pode não ser o sol ou a lua, ele pode ser um círculo com sua potência, sua expressão. Não precisamos ter um olhar figurativo sobre o abstrato. Podemos nos deter na forma, na cor, na composição, identificando pontos de tensão, de harmonia, relaxamento, etc. Buscar as relações, os contrastes, o movimento e o não-movimento, etc. Creio ser um exercício importante para o arteterapeuta experimentar se deter nos elementos fundamentais e estruturais da imagem, antes de buscar uma figura ou até mesmo um símbolo, que muitas vezes se confunde na busca de uma figura.

Imagem: Malevich, 1915.

Nota: Cercle et Carré que inspira o título deste artigo, foi uma associação de artistas criada em Paris, 1929, pelo pintor uruguaio Joaquín Torres-García (1874-1949) e pelo artista e escritor belga Michel Seuphor (1901-1999), com o objetivo de divulgar a arte construtivista.
Referências:
ARGAN, Giulio. Arte Moderna. 5ª reimpressão. Companhia das Letras. 1998.
STIERLIN, Henri. Arquitetura Universal. Grécia. Editora Taschen. 2009.
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo38/cercle-et-carre

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Processo criativo

Em 2015, o blog não-palavra recebe convidados especiais que compartilham conosco sua visão sobre Criatividade e Arte, temas que consideramos fundamentais para pensar a Arteterapia.
Nossa primeira convidada é Martha Pires Ferreira, com uma longa trajetória nas artes visuais, no estudo da psicologia junguiana e no desenvolvimento da criatividade através das atividades plásticas como colaboradora na Casa das Palmeiras.
PROCESSO CRIATIVO
Por Martha Pires Ferreira / 2008
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Martha Pires. Formas no Espaço, 2013.

Todo ser humano é potencialmente um criador. A criatividade é essencial à natureza humana, à expansão da personalidade.
O processo criativo se dá por conexões; impulsos internos e desejos de expressão interagem intuitivamente com o mínimo da interferência lógica, racional. Assim, penso, deveria ser. Para outros, ocorre o inverso, é o domínio da racionalidade com um quantum de impulso instintivo.
O anseio imagístico procura dar forma, ao se deixar revelar, desvelar o que antes era invisível ao conhecimento. É o novo que brota genuíno e real. Arte é descobrir, é tornar visível o que não existia. Não se cogita beleza estética, e sim dar origem a. Os caminhos são complexos e, por vezes, paradoxais. A apreensão sensível de conteúdos expressivos nas artes plásticas, musical ou poética são experiências efetivas e diretas da sensibilidade criadora de cada pessoa, individualmente. A obra de arte não se limita ao objeto em si, é mais que representação pictórica.
Criatividade é processo inesgotável. As mãos engendram quase por magia; nas atividades plásticas desde o artesão das cavernas, passando por toda a história da arte antiga, clássica e moderna com Cézanne, Matisse, Picasso, Paul Klee ou à sofisticada cognição intelectual interagindo simultânea, sensitivo e emocional, nas obras de artistas contemporâneo ou não, brasileiros, como Lygia Clark, Tunga, Beatriz Milhazes, Marília Kranz, Teresa Miranda, Antônio Dias ou Cildo Meireles. Citando estes apenas. Os olhos, um telescópio; constata e contempla a obra realizada, indo além, num mergulho misterioso. A criatividade é a mola impulsionadora da essência da vida. A obra acabada, é quem fala, se faz real e presente. É mais que um objeto.
No meu caso pessoal, desenhar é um ato de liberdade que se faz incontinenti. É deixar mostrar o latente, revelação, espanto intelectual e emocional obedecendo ao que a intuição determina. Deixar o imprevisível acontecer, descobrir, tocando o abissal. A sensibilidade é o tom que contribui para a criação pictórica se tornar manifesta. O artista é, apenas, um instrumento ativo no processo.

Enlouquecida, aprendi com Hokusai (1760 - 1849) que no exercício de desenhar, no penetrar na essência de todas as coisas manifestas, pode-se chegar a um nível de consciência, de saber, mais elevado, impensável, onde tudo vive; cada ponto, gesto, linha, cor. Arte é celebração. O que a imaginação apreende como fogo criador, sopro e beleza, é verdade, é espiritualidade. Além disso, nada sei. 

Martha Pires Ferreira
Astrologia e Artes Visuais /colaboradora voluntária na Casa das Palmeiras e 
Coordenadora do Grupo de Estudos C. G. Jung (2006 - 2015) com Dr. Edgar Tavares.