Por Eliana Moraes - MG
naopalavra@gmail.com
No processo de formação da minha
identidade profissional como arteterapeuta, entendi que era necessário me
aprofundar nos estudos sobre as teorias da arte, dentre elas a História da
Arte, as teorias da criação e os elementos visuais. Sem dúvida, há um vasto
universo teórico no campo da arte, mas como terapeuta, minha (lenta e
cuidadosa) pesquisa e estudo continuado estão norteados pelas aplicabilidades
destas teorias na realidade, proposta e práticas da Arteterapia.
Ao longo deste caminho, percebi que os
elementos visuais fazem parte
dos estudos do arteterapeuta, para que possamos conhecê-los e nos
instrumentalizarmos de suas propriedades, para seu manejo consciente. Nas palavras
de Fayga Ostrower:
Há um dado
deveras interessante! Se fôssemos perguntar de quantos vocábulos se constitui a
linguagem visual, de quantos elementos expressivos, a resposta seria: de cinco.
São cinco apenas: a linha, a superfície, o volume, a luz e a cor. Com
tão poucos elementos, e nem sempre reunidos, formulam-se todas as obras de
arte, na imensa variedade de técnicas e estilos…
É verdade que
os significados dos elementos visuais ficam em aberto, mas deve haver alguma
coisa de definível nesses elementos para que possamos reconhecer identidades
expressivas diferentes. (OSTROWER, 1983, p 65)
É importante sinalizar que neste
trecho Fayga não menciona “o ponto”, outro elemento visual carregado de
simbolismos. De toda forma, a noção de que os elementos visuais carregam
“identidades expressivas” específicas nos chama atenção como arteterapeutas.
Venho escrevendo sobre o elemento cor
nos últimos anos, estando alguns destes textos compilados no livro “Pensando a
Arteterapia Volume 2”. Mas atualmente tenho direcionado minhas leituras,
reflexões e registros de aplicabilidades do elemento linha. Dentre a vasta
literatura disponível sobre o tema, no campo da arte, elegi dois teóricos que
já tenho uma relação de identificação: Fayga Ostrower e Wassily Kandinsky e no texto
de hoje trago o percurso construído até aqui.
A
linha
Se, porém, perguntarmos: o que vem a ser uma
linha?... Seria necessário perguntar: o que faz uma linha? E mais
especificamente: o que faz a linha em termos de estrutura espacial?... (OSTROWER,
1983, p 65)
Isso nos interessa muito, porque do tipo de
espaço que a linha pode caracterizar, dependem as qualificações
expressivas. (OSTROWER, 67)
A linha
possui qualificações expressivas específicas, o que fica mais claro quando a
comparamos com outros elementos visuais:
Se compararmos, por exemplo, linhas com cores,
sentimos de imediato, o clima expressivo diferente. Enquanto que a linha
evoca toda uma ambiência intelectual, a cor é antes de tudo sensual. (OSTROWER,
1983, p 68)
Acompanhando essas explicações, mostrei dois
desenhos e uma pintura. Todos datam aproximadamente da mesma época. Mas com
elementos visuais diferentes – linha no desenho e cores na pintura – definem
diferentes modos de ser e sentir. Comparando-as entre si, podemos observar
nessas obras... o quanto o sentido de refinamento torna-se mais intelectual
no desenho, muito menos sensual do que na pintura. (OSTROWER,
1983, p 68)
No aprofundamento
deste estudo, podemos teorizar em diálogo com a Psicologia Analítica junguiana
que o elemento cor traz como função auxiliar a função sensação, através da qual
é sentida sua vibração, alcançando sua função principal, o contato com os
sentimentos. Por outro lado, podemos dizer que o elemento linha, por sua
propriedade mais intelectual, racional, tem como função principal a função
pensamento.
Já em
comparação com o elemento ponto:
A linha... É o rasto do ponto em movimento, logo
seu produto. Ela nasceu do
movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema do ponto. Produz-se
aqui o salto do estático para o dinâmico... (KANDINSKY,2016, p 49)
Essas linhas são totalmente estranhas ao ponto
fixado no plano, nada mais tendo da calma inicial do ponto. (KANDINSKY, 2016, p
54)
Para Kandinsky, este é o ponto zero. Na linguagem, o lugar do
silêncio. É caracterizado por ser estático, imóvel. É também introvertido.
Porém, o ponto também é o lugar do impulso. Extremamente fecundo, é cheio de
possibilidades. Afinal, como nos diz o autor “Tudo começa num ponto.”
Ao nascer a
linha, algumas propriedades expressivas específicas são destacadas.
Movimento
Mas existe outra força, que nasce não no
ponto mas fora dele. Essa força se precipita sobre o ponto preso no
plano, arranca-o daí e empurra-o para uma direção qualquer.
Assim, a tensão concêntrica do ponto vê-se
destruída e o ponto desaparece, dele resultando um novo ser, dotado de uma vida
autônoma e submetido a outras leis.
É a linha. (KANDINSKY, 2016,
p 45)
[A
linha] ... nasceu do movimento...
Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico... A “tensão”
é a força viva do elemento. Ela constitui apenas uma parte do “movimento”
ativo. A outra parte é a “direção”, também ela definida pelo
“movimento”. (KANDINSKY, 2016, p 49-50)
No caso da linha: ela vai configurar um espaço
linear, de uma dimensão. Através dela apreendemos um espaço direcional...
Essas linhas funcionam como setas, dirigindo nossa atenção e dizendo:
siga nesta direção ou siga naquela. (OSTROWER, 1983, 66)
O que compreendemos através destes
trechos é que a linha nasce de uma tensão
que a torna viva e desta forma aciona uma força
que a coloca em movimento. Este
movimento admite uma direção, como
uma seta que gera e direciona possíveis caminhos.
Estes caminhos registrados pelo elemento linha podem se tornar subsídios para
riquíssimos experimentos arteterapêuticos.
Tempo,
Ritmo
Como uma das principais propriedades
da linha está no movimento, consequentemente, a dimensão temporal torna-se
parte do campo:
... em todos os casos em que aparece a linha,
configura-se o espaço de uma só dimensão. A essa dimensão única é acoplado o tempo,
pois qualquer elaboração formal que façamos com a linha terá, necessariamente, caráter
rítmico. Introduzindo-se pausas e modulando-se as velocidades das linhas,
modula-se o fluir do tempo. (OSTROWER, 1983, p 67)
O elemento tempo é, em geral, mais perceptível na
linha do que no ponto – o comprimento corresponde a uma noção de duração.
Em compensação, seguir uma linha reta ou uma linha curva requer uma duração
diferente, mesmo que o comprimento das duas seja semelhante, e, quanto mais uma
linha curva é movimentada, mais se alonga em duração. A linha oferece, pois,
quanto ao tempo, uma grande diversidade de expressão... Talvez se trate, na
verdade, de comprimentos diferentes, o que poderia se explicar
psicologicamente. O elemento tempo não deve, pois, ser subestimado numa
composição linear... (KANDINSKY, 2016, p 86)
Aqui se
apresenta o eixo tempo e espaço. E a linha colabora para
o registro do tempo no espaço. Em seus escritos, Kandinsky frequentemente busca
o diálogo entre as linguagens da arte, e aqui nos presenteia com o diálogo
entre o desenho e a dança:
Na dança todo o corpo e, na dança contemporânea, cada dedo desenham linhas
de expressões precisas... Todo o corpo do dançarino, até a ponta dos dedos,
constitui em todo instante uma composição linear ininterrupta... (KANDINSKY, 1983,
p 88)
Podemos nos
inspirar neste diálogo entre a dança e o desenho em momentos dentro do setting arteterapêutico em que o
terapeuta entenda ser interessante trazer para a imagem o ritmo
e movimento do corpo do paciente. É possível propor que ele faça contato
com seu ritmo corporal, que deixe este ritmo se apossar do seu corpo e deixe
que seu braço conduza o movimento do lápis, registrando-o em uma folha de
papel. Este registro do movimento corporal pode servir de valiosas elaborações
e processos de autopercepções.
Podemos
ainda nos inspirar no que diz Fayga Ostrower: “Existem
possibilidades de se modular o movimento da linha.” (OSTROWER,
1983, p 66). Assim, é possível intencionalmente promover o contato com determinado movimento em específico, como
por exemplo, a partir de um estímulo musical (ritmo, movimento, vibração) ou
acesso a sentimentos e memórias afetivas, e a partir do ritmo corporal por eles
gerados, permitir que a linha registre este movimento tornando-o visível.
Gera forma
Outra das
grandes propriedades da linha, nas palavras de Kandinsky: “Estamos tratando
aqui de uma das características específicas da linha – seu poder de criar
superfícies.” (KANDINSKY, 1983, p 53), o que chamamos também de formas.
Como
exemplo, em Arteterapia, temos em nosso repertório cotidiano o desenho
cego ou desenho espontâneo, que André Masson, artista surrealista chamava de
desenho automático. Esta é uma prática a qual através de um emaranhado de
linhas espontâneas, propõe-se a busca de imagens, formas, superfícies.
Esta é uma prática através da qual
trabalhamos o fenômeno da projeção, pois o olhar do espectador fatalmente
encontrará símbolos que o pertencem: vale destacar, símbolos espontâneos, não
escolhidos, não planejados, não racionalizados, consequentemente advindos de
conteúdos inconscientes riquíssimos para a leitura e escuta simbólica dentro do
setting arteterapêutico.
Limites
Mas sem dúvida, em minha experiência
clínica a propriedade da linha mais atualizada dentro de um setting terapêutico se dá ao encontro de
demandas terapêuticas sobre os limites, sejam eles entre o sujeito e o outro ou
os limites internos de cada indivíduo. É possível utilizá-las como metáfora no
diálogo terapêutico, mas também como experimentos criativos e produção de
imagens, a partir do repertório do arteterapeuta.
As queixas terapêuticas recorrentes giram em torno de invasões,
transbordamentos, excessos, dificuldade de dizer não e impor limites (a si e ao
outro), dificuldade de delimitar o que pertence a um e ao outro. Neste
contexto, como palavras chave para o
elemento linha, podemos destacar: limites, contornos, bordas,
fronteiras. Delinear, circunscrever, separar, discriminar (um e outro).
Para compreensão da analogia, podemos
trabalhar com nossos pacientes que a
linha simboliza seus contornos, suas bordas, aquilo que faz o limite entre um
elemento e outro, entre o que está dentro e o que está fora. É análogo à nossa pele:
ela nos protege para que o que está dentro não vaze para fora e o que está fora
não penetre no que está dentro. A linha muitas vezes é protetora de
invasões, nos resguarda e preserva também de transbordamentos e exposições de
nossos conteúdos. Na tradução para a imagem, utilizando lápis de cor ou tintas,
o experienciador poderá trabalhar o preenchimento de espaços gerados pelas
linhas, respeitando os limites por ele mesmo gerado.
Em síntese, através de experimentos
com a linha podemos trabalhar a compreensão de que o limite é estruturante e
também um ato de amor, ao outro e a si mesmo.
O estudo sobre os elementos visuais
seguem seu curso. Ainda inspirada em Fayga:
Deveríamos poder chegar diante de um quadro e, ao
olhá-lo, apreender de pronto – assim como se distinguem as palavras ouvidas
numa frase – quais os principais elementos que foram elaborados pelo
artista. (OSTROWER, 1983, p 69)
Que possamos desenvolver nossa escuta
terapêutica, nas linguagens da palavra ou da imagem, na arte e na Arteterapia,
nas imagens já expressadas ou naquelas que buscam expressão.
Bibliografia:
KANDINSKY, WASSILY. “Ponto e linha
sobre plano”. Editora WMF Martins Fontes, SP. 2012.
OSTROWER, FAYGA. “Universo da Arte”.
Editora Campus, 1983.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"