Por Mercedes Duarte - RJ
Esse é mais um
texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô,
associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos.
Nesse artigo, trago o Arcano V, o Papa, em diálogo com o artista plástico Wassily
Kandinsky.
O Papa
O arquétipo do Papa nos fala de um elo entre Deus e a humanidade. Uma outra denominação desse papel social é a de Pontífice, exprimindo a ponte entre céu e terra. O Papa, por ser um comunicador, um mediador, representa também a comunicação entre aquilo que é interno e externo, entre o feminino e o masculino. Em geral, essa carta do Tarô, apresenta dois indivíduos, de costas e à frente do Pontífice, que são representados em uma escala menor que a do Papa. Esse fator nos indica a comunicação entre o arquétipo que representa a divindade, em escala maior, e a humanidade, em tamanho menor, a sua frente.
O Papa, ainda que seja o representante celeste de Deus, também é humano e está entronado na terra. Não por acaso está encarnado no arcano de número cinco que sintetiza o número Um, do espírito, e os quatro elementos da matéria. O número cinco também é o número da humanidade, pois temos cinco sentidos e cinco dedos em cada mão e pé (NICHOLS, p. 134).
Esse arquétipo simboliza o professor, ou instâncias da vida que nos apresentam problemas morais e filosóficos, estimulando o desenvolvimento da consciência humana. De acordo com Jung (apud NICHOLS, 1997, p.130) a interação entre o humano e o transcendente é necessária para a libertação dos caprichos cegos dos instintos, e amadurecimento da consciência e espírito humanos.
Wassily Kandinsky
O
essencial, na questão da forma, é saber se ela nasceu de uma necessidade
interior.
(Kandinsky,
2000, p. 145)
Kandinsky foi um artista plástico russo que viveu entre os anos de 1866 e 1944. Considerado o precursor do abstracionismo, pinta sua primeira obra abstrata em 1910. Em 1912 publica o livro “Do Espiritual na Arte”, numa busca por espiritualizar a arte. O artista também foi professor da escola alemã de design, arte e arquitetura, Bauhaus, até o ano de 1933.
Kandinsky defendia que toda produção artística deveria ser orientada por uma instância espiritual, pelo que chamou de “necessidade interior”. Portanto, o artista, antes de atuar, deveria primeiramente entrar em contato com sua alma para possibilitar uma profundidade artística, tornando desse modo necessária uma sacralização dos procedimentos da arte através de tal justificação interior.
A música, para o artista, teve papel preponderante para a busca da “necessidade interior”. Kandinsky percebeu que era possível fazer contato com imagens internas a partir da audição musical. Considera, portanto, que a música possui qualidades que ligam o indivíduo a sua alma, a seu universo interior. A abstração, portanto, tornou-se o caminho para exprimir aquilo que a música incitava internamente, ou mesmo para exprimir o “som interno”:
Rumo
à “necessidade interior”, seu objetivo tornou-se criar “paisagens sonoras”
(...) telas que permitissem ao espectador ouvir o “som interno” de uma cor.
Isso significou a eliminação de ainda mais referências do mundo real. Kandinsky
raciocinava que o “som interno” só podia ser ouvido quando uma pintura não
possuía um “significado convencional” para distrair o espectador-ouvinte.
(GOMPERTZ, 2013, p 173)
Abaixo está a obra
de Kandinsky, Impressão III (Concerto), de 1911, inspirada em um concerto de
música atonal do compositor vienense Arnold Schoenberg:
As formas e, sobretudo, as cores possuíam um papel de destaque em sua obra. Através delas buscava compor “paisagens sonoras”. Considerava que as cores continham a capacidade de atingir a alma através de suas vibrações, de um modo que nenhuma palavra é capaz de atingir.
De acordo com
Kandinsky, a arte, produzida a partir do contato com a “necessidade interior”,
viabilizaria o renascimento de uma arte espiritual, conteúdo esse, espiritual,
que somente a arte teria o poder de capturar e exprimir:
a partir do instante em que, da maneira que lhes é própria, da experiência íntima do artista e a força de emoção que a torna comunicável aos outros transparecem, a arte entra no caminho ao término do qual reencontrará o que perdeu, o que voltará a ser fermento espiritual de seu renascimento. O objeto de sua busca não é o objeto material concreto a que o artista se prendia exclusivamente na época precedente (...) mas será o próprio conteúdo da arte, sua essência, sua alma (...) Esse conteúdo, só a arte pode captá-lo, só ela pode exprimi-lo claramente com os meios que lhe pertencem. (KANDINSKY, 2000, p. 38-39)
Desse modo, de acordo com Kandinsky (2000), o artista que mergulhar “nas profundezas da sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual " (p.59). Assim, o artista e sua arte tornam-se meios de contato com aquilo que é da ordem do divino, possibilitando o desenvolvimento espiritual de toda uma sociedade.
O Papa e Kandinsky
Como podemos perceber, Kandinsky e o arquétipo do Papa dialogam no sentido de produzirem um elo entre céu e terra, entre humanidade e transcendência, com o intuito de possibilitarem um amadurecimento humano e espiritual.
Proposta Terapêutica
Como vimos, a contribuição de Kandinsky à arte pode ser considerada uma valiosa herança para Arteterapia, como discute Eliana Moraes em “Contribuições de Kandinsky ao arteterapeuta” (2019). Na vivência da Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô, inspirada no Papa em diálogo com Kandinsky, a proposta terapêutica, portanto, foi guiada pelas contribuições de Kandinsky para a elaboração de um trabalho artístico.
Lançamos mão do contato com a vibração das cores e da música para que as participantes acessassem um lugar mais profundo de sensibilidade. A proposta era de que deixassem a produção da arte ser guiada pelas emoções, formas, e cores que as músicas suscitassem. Selecionei algumas músicas, entre elas de Erik Satie, Yann Tiersen, Paul Desmond, Chopin e Duke Ellington, que embalaram a produção das participantes.
O que me chamou bastante atenção nas obras foi que sete dos nove trabalhos plásticos realizados possuíam uma linha transversal que atravessava a folha, o que se assemelha a uma obra específica de Kandinsky que não havia sido apresentada na oficina, cujo título é justamente “Linha Transversal” (1923):
Trago apenas dois exemplos dos trabalhos que apareceram com essa linha por questões de limites do texto:
Título: Sintonia
Título: Conexão
Todas perceberam
que a música pôde ser um elemento desencadeador de formas e cores. Mas aqui
ressalto a representação do que podemos chamar do que Jung denomina por
sincronicidade, que se define por elementos que convergem em significado no
tempo e espaço. Essa linha que atravessa o papel de cima a baixo, que conecta a
esquerda e a direita, como elaborado na partilha do grupo, estaria expressando esse
elemento mediador que conecta céu e terra, interior e exterior, que caracteriza
o próprio arquétipo do Papa, capturado pela maioria do grupo.
Referências Bibliográficas
DUARTE, Mercedes (2021). Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio. Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até
Hoje (2013). Editora Zahar: Rio de Janeiro.
JUNG, Carl G. (2005). Sincronicidade. 13ª Edição. Trad. Pe.
Dom Mateus Ramalho
Rocha. Editora Vozes: Petrópolis.
MORAES, Eliana (2019). Contribuições de Kandinsky ao arteterapeuta.
Trabalho de
Conclusão de Curso. Apresentado à
Pós-graduação em História da Arte. Universidade
Estácio de Sá – Rio de Janeiro.
NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica.
Trad. Laurens Van
Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.
KANDINSKY, Wassily (2000). Do Espiritual na Arte. Editora Martins
Fontes: São Paulo.
[1] DUARTE,
Mercedes. Diálogos
entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog
Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/
[2] A Jornada
Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas quinzenais, facilitadas por
mim, inspiradas nos arcanos maiores do tarô que são associados a determinados
aspectos da arte.
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Sobre a autora: Mercedes Duarte
Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos
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