Por Tania Salete
taniasalete@gmail.com
“O Brasil é o maior mercado mundial do crack e o segundo maior de cocaína, conforme revelou o Instituto Nacional de Pesquisa de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os dados do estudo – que ouviu 4,6 mil pessoas com mais de 14 anos em 149 municípios do País – foram apresentados nesta quarta-feira na capital paulista.
( Fonte: Revista Isto é - 05.09.12 )
“Um dos principais problemas de saúde pública no mundo, o uso de drogas, incluindo álcool e nicotina, altera significativamente o Sistema Nervo Central – SNC e, apesar do perigo que essas substâncias podem ocasionar à saúde, o seu consumo só tem aumentado.”
Desde a antiguidade há relatos
dos diversos usos de substâncias ou drogas com finalidades terapêuticas para
tratamento de doenças e alívio de dores físicas. Entretanto, a ênfase
geralmente estava mais associada aos rituais religiosos onde a ingestão da
droga facilitaria o acesso aos deuses, a um estado de êxtase e transcendência.
Em muitas culturas primitivas, era esta a função primordial, a busca pela
divindade.
A sociedade passou por grandes
e profundas transformações nos últimos séculos. Uma verdadeira revolução de
valores, padrões culturais, tecnológicos e sobretudo sociais, imprimiram neste
homem moderno um perfil totalmente diferenciado e em muitos aspectos,
descaracterizado.
O psicólogo junguiano Luigi
Zoja, em seu livro “Nascer não basta”,
ressalta e associa o consumo de drogas a abolição dos rituais iniciativos que
durante milênios organizaram de certa forma a vida psíquica e social dos povos:
“As passagens de uma etapa para outra são
caracterizadas por situações de crises de transformação, nas quais a pessoa
sente-se em geral perdida, desorientada, como se ficasse temporariamente
desprovida da sua identidade anterior, e ainda sem a posse de uma nova
identidade. Durante muitos milênios esses rituais organizaram a vida psíquica e
social dos povos.” (ZOJA)
Persiste no indivíduo o desejo de mudança, de transcendência, de busca pelo preenchimento existencial porém, imerso na cultura consumista e acelerada de hoje, o ter em detrimento do ser, a banalização e até deterioração dos processos e valores basilares para o mínimo de equilíbrio mental e social, a droga surge como mais um objeto de consumo desenfreado e descontrolado para suprir as carências latentes. Como consequência, em muitos casos, observa-se um processo de adoecimento que termina em adicção.
Adiccção vem do termo latino-romano, Addicctus, que significa "escravo por dívida" e era utilizado para expressar o fato de um homem, por não dispor de recursos, aceitar ser escravo para saldar a dívida contraída.
A definição descreve bem a situação do indivíduo, pois trata-se de uma doença crônica, com características progressivas, com diagnóstico, até o momento, incurável e em muitos casos letal ou com danos irreparáveis. Na esmagadora maioria dos casos, envolve perda da família, bens, emprego, profissão, amigos, relacionamentos, dignidade. Afeta o indivíduo em todas as áreas: física, mental, social e espiritual em uma espiral descendente e rápida. A reversão do quadro dependerá dos efeitos dos produtos químicos consumidos e das consequências destes, além de uma séria conduta e escolha de tratamento adequado.
Arteterapia colorindo vidas: Relato de caso
A Arteterapia é um processo
terapêutico que utiliza a arte como espaço de criatividade, experimentação,
transformação e facilitação de experiências simbólicas, expressão de emoções e
sentimentos humanos mais íntimos.
Iniciamos em fevereiro de 2013, em uma casa de recuperação para homens
egressos de rua, um grupo de arteterapia a título de estágio, na época. Tínhamos
disponível uma sala com equipamento necessário, local, hora marcada para os
encontros e um grupo inicial de 13 homens. As idades variáveis entre 19 a 58
anos, todos adictos (substâncias entorpecentes variadas – cocaína, álcool,
maconha, crack, cigarro, etc). Alguns com antecedentes criminais diversos e
outros já haviam cumprido pena em regime fechado por vários anos, mas ainda não
estavam reinseridos ou totalmente livres do vicio o que ocasionava repetidas
recaídas e retorno às ruas e em condições de vulnerabilidade social.
Deste grupo, destaco o caso de E., 57 anos, alcoolista desde
adolescência, sem registro de vínculo familiar, reincidente na instituição e
reiniciando o processo dos passos propostos pela casa para recuperação. Desde o
primeiro encontro, E. demonstrava pouco interesse nas atividades, falava pouco
e interagia menos ainda com o grupo.
Com a evolução do trabalho, o contato com materiais diversos, foi provocando
uma resistência maior em E., verbalizado pelo desejo de desistir do grupo. Nos
momentos de compartilhamento, suas frases eram basicamente as mesmas: “Fiz
qualquer coisa para ocupar a mente”!
Na observação e escuta
espontânea durante as sessões seguintes, alguns comportamentos eram comuns e
bem característicos deste público: impulsividade, dificuldade de enfrentar os
problemas, baixa tolerância à frustração, pouca persistência na atividade,
agitação ou apatia (dependendo do grau de comprometimento ou tempo na casa),
oscilação de humor, imediatismo, acentuada baixa estima, vitimização, ansiedade,
manipulação e carência afetiva e insegurança, além de uma identidade bem
fragilizada.
Em alguns, percebia-se também
déficit cognitivo e outros comprometimentos neurológicos associados a
degeneração causada pela drogadição. Muitas vezes, era preciso explicar a
atividade com calma e relativa simplicidade para que fosse possível a todos
acompanharem ou mesmo sentirem-se mobilizados em participar da proposta.
No caso especifico de E., a resistência deu lugar a participação mais
intensificada, sobretudo quando já na fase final do trabalho, foi proposto que
o grupo escolhesse uma forma de artística para se expressar. E. já tinha feito um desenho de paisagem
muito bonito com lápis de cor e resolveu transferir este desenho para uma peça
em tecido, tamanho de uma tela. Sentia-se
mais fortalecido, aceito, acolhido em sua produção, mais seguro para expandir sua
criatividade sem preocupação com as opiniões externas.
“Fortalecendo o EGO, a Arteterapia
direciona a subjetividade, cada vez mais estruturada, no caminho da autonomia
ou da autoria de pensamento. Por sua vez, a cada passo no sentido da valorização
e do reconhecimento pessoais, aumenta o grau de motivação, de orientação e
disposição para expressão de novas ideias, buscas de ideais, novas escolhas,
favorecendo a vivência da liberdade.” (URRUTIGARAY)
O trabalho arteterapêutico propicia mais esperança e confiança no
próprio potencial para superar as dificuldades do tratamento, a luta constante
contra a doença e um posicionamento mais firme diante dos desafios no
dia-a-dia. Tem muita efetividade para o
adicto auxiliando na mudança de postura do isolamento afetivo e social, podendo
ativar e conectar algumas de suas potencialidades adormecidas, aumentando sua
autovalorização, autoestima, ajudando-o a perceber e identificar novas
alternativas, que promovam, acrescente e
colaborem em sua recuperação e reconstrução enquanto indivíduo e
cidadão.
Nosso grupo
terminou com 9 componentes, a maioria apresentando melhoras significativas e alguns
reinseridos no mercado de trabalho, porém mantendo o vínculo com a instituição.
Quanto à E., após
o término do quadro, revelou-nos que na juventude e antes de perder “tudo como
ser humano”, era pintor profissional, mas que nunca mais havia se permitido
pegar em um pincel, pois para ele aquela atividade o havia “jogado no mundo da
bebida e das drogas e depois na rua”. Relatou que se sustentava na rua pintando
o “retrato” das pessoas na praia e com o dinheiro que ganhava, comprava algum
material e depois consumia as drogas. Até que não foi mais possível pintar.
A Arteterapia foi como um instrumento de resgate e reconciliação com a sua arte, de maneira agora mais saudável e equilibrada, com possibilidade de reencontro com o artista adormecido. Algum tempo depois, soubemos que o quadro de E. foi doado à casa de recuperação e posteriormente representou a mesma em uma exposição que aconteceu numa conferência sobre Recuperação de Egressos de Rua em Londres. CLIQUE AQUI
Conclusão:
A recuperação de adictos é um processo longo, contínuo e permanente que dura a vida toda, mas que é conquistado um dia de cada vez, um passo por vez, e a Arteterapia pode ser uma ferramenta fundamental nesta conquista.
Referências Bibliográficas:
- PHILIPPINI, Angela – Cartografias da coragem – 4ª edição – Wak Editora, 2008
- UTTUTIGARAY, M C- Arteterapia – A transformação pessoal pelas Imagens – Rio de janeiro, Wak Editora, 2011
- ZOJA, Luigi, Nascer não basta, Axis Mundi Editora, 1992
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
_______________________________________________________________________
Sobre a autora: Tania Salete
Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.