segunda-feira, 29 de maio de 2017

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇAO



Por Tania Salete
taniasalete@gmail.com


“O Brasil é o maior mercado mundial do crack e o segundo maior de cocaína, conforme revelou o Instituto Nacional de Pesquisa de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os dados do estudo – que ouviu 4,6 mil pessoas com mais de 14 anos em 149 municípios do País – foram apresentados nesta quarta-feira na capital paulista.

 ( Fonte: Revista Isto é - 05.09.12 )

“Um dos principais problemas de saúde pública no mundo, o uso de drogas, incluindo álcool e nicotina, altera significativamente o Sistema Nervo Central – SNC e, apesar do perigo que essas substâncias podem ocasionar à saúde, o seu consumo só tem aumentado.”
 (Fonte: http://www.unasus.ufma.br – Universidade Federal do Maranhão)
Desde a antiguidade há relatos dos diversos usos de substâncias ou drogas com finalidades terapêuticas para tratamento de doenças e alívio de dores físicas. Entretanto, a ênfase geralmente estava mais associada aos rituais religiosos onde a ingestão da droga facilitaria o acesso aos deuses, a um estado de êxtase e transcendência. Em muitas culturas primitivas, era esta a função primordial, a busca pela divindade.

A sociedade passou por grandes e profundas transformações nos últimos séculos. Uma verdadeira revolução de valores, padrões culturais, tecnológicos e sobretudo sociais, imprimiram neste homem moderno um perfil totalmente diferenciado e em muitos aspectos, descaracterizado.
O psicólogo junguiano Luigi Zoja, em seu livro “Nascer não basta”, ressalta e associa o consumo de drogas a abolição dos rituais iniciativos que durante milênios organizaram de certa forma a vida psíquica e social dos povos:
“As passagens de uma etapa para outra são caracterizadas por situações de crises de transformação, nas quais a pessoa sente-se em geral perdida, desorientada, como se ficasse temporariamente desprovida da sua identidade anterior, e ainda sem a posse de uma nova identidade. Durante muitos milênios esses rituais organizaram a vida psíquica e social dos povos.” (ZOJA)

Persiste no indivíduo o desejo de mudança, de transcendência, de busca pelo preenchimento existencial porém, imerso na cultura consumista e acelerada de hoje, o ter em detrimento do ser, a banalização e até deterioração dos processos e valores basilares para o mínimo de equilíbrio mental e social, a droga surge como mais um objeto de consumo desenfreado e descontrolado para suprir as carências latentes. Como consequência, em muitos casos, observa-se um processo de adoecimento que termina em adicção. 
Adiccção vem do termo latino-romano, Addicctus, que significa "escravo por dívida" e era utilizado para expressar o fato de um homem, por não dispor de recursos, aceitar ser escravo para saldar a dívida contraída.
A definição descreve bem a situação do indivíduo, pois trata-se de uma doença crônica, com características progressivas, com diagnóstico, até o momento, incurável e em muitos casos letal ou com danos irreparáveis. Na esmagadora maioria dos casos, envolve perda da família, bens, emprego, profissão, amigos, relacionamentos, dignidade. Afeta o indivíduo em todas as áreas: física, mental, social e espiritual em uma espiral descendente e rápida. A reversão do quadro dependerá dos efeitos dos produtos químicos consumidos e das consequências destes, além de uma séria conduta e escolha de tratamento adequado.

Arteterapia colorindo vidas: Relato de caso

A Arteterapia é um processo terapêutico que utiliza a arte como espaço de criatividade, experimentação, transformação e facilitação de experiências simbólicas, expressão de emoções e sentimentos humanos mais íntimos.   
Iniciamos em fevereiro de 2013, em uma casa de recuperação para homens egressos de rua, um grupo de arteterapia a título de estágio, na época. Tínhamos disponível uma sala com equipamento necessário, local, hora marcada para os encontros e um grupo inicial de 13 homens. As idades variáveis entre 19 a 58 anos, todos adictos (substâncias entorpecentes variadas – cocaína, álcool, maconha, crack, cigarro, etc). Alguns com antecedentes criminais diversos e outros já haviam cumprido pena em regime fechado por vários anos, mas ainda não estavam reinseridos ou totalmente livres do vicio o que ocasionava repetidas recaídas e retorno às ruas e em condições de vulnerabilidade social.
Deste grupo, destaco o caso de E., 57 anos, alcoolista desde adolescência, sem registro de vínculo familiar, reincidente na instituição e reiniciando o processo dos passos propostos pela casa para recuperação. Desde o primeiro encontro, E. demonstrava pouco interesse nas atividades, falava pouco e interagia menos ainda com o grupo.
Com a evolução do trabalho, o contato com materiais diversos, foi provocando uma resistência maior em E., verbalizado pelo desejo de desistir do grupo. Nos momentos de compartilhamento, suas frases eram basicamente as mesmas: “Fiz qualquer coisa para ocupar a mente”!
Na observação e escuta espontânea durante as sessões seguintes, alguns comportamentos eram comuns e bem característicos deste público: impulsividade, dificuldade de enfrentar os problemas, baixa tolerância à frustração, pouca persistência na atividade, agitação ou apatia (dependendo do grau de comprometimento ou tempo na casa), oscilação de humor, imediatismo, acentuada baixa estima, vitimização, ansiedade, manipulação e carência afetiva e insegurança, além de uma identidade bem fragilizada.
Em alguns, percebia-se também déficit cognitivo e outros comprometimentos neurológicos associados a degeneração causada pela drogadição. Muitas vezes, era preciso explicar a atividade com calma e relativa simplicidade para que fosse possível a todos acompanharem ou mesmo sentirem-se mobilizados em participar da proposta.
No caso especifico de E., a resistência deu lugar a participação mais intensificada, sobretudo quando já na fase final do trabalho, foi proposto que o grupo escolhesse uma forma de artística para se expressar.  E. já tinha feito um desenho de paisagem muito bonito com lápis de cor e resolveu transferir este desenho para uma peça em tecido, tamanho de uma tela.  Sentia-se mais fortalecido, aceito, acolhido em sua produção, mais seguro para expandir sua criatividade sem preocupação com as opiniões externas.
Fortalecendo o EGO, a Arteterapia direciona a subjetividade, cada vez mais estruturada, no caminho da autonomia ou da autoria de pensamento. Por sua vez, a cada passo no sentido da valorização e do reconhecimento pessoais, aumenta o grau de motivação, de orientação e disposição para expressão de novas ideias, buscas de ideais, novas escolhas, favorecendo a vivência da liberdade.” (URRUTIGARAY)

O trabalho arteterapêutico propicia mais esperança e confiança no próprio potencial para superar as dificuldades do tratamento, a luta constante contra a doença e um posicionamento mais firme diante dos desafios no dia-a-dia.  Tem muita efetividade para o adicto auxiliando na mudança de postura do isolamento afetivo e social, podendo ativar e conectar algumas de suas potencialidades adormecidas, aumentando sua autovalorização, autoestima, ajudando-o a perceber e identificar novas alternativas, que promovam, acrescente e  colaborem em sua recuperação e reconstrução enquanto indivíduo e cidadão.
Nosso grupo terminou com 9 componentes, a maioria apresentando melhoras significativas e alguns reinseridos no mercado de trabalho, porém mantendo o vínculo com a instituição.
Quanto à E., após o término do quadro, revelou-nos que na juventude e antes de perder “tudo como ser humano”, era pintor profissional, mas que nunca mais havia se permitido pegar em um pincel, pois para ele aquela atividade o havia “jogado no mundo da bebida e das drogas e depois na rua”. Relatou que se sustentava na rua pintando o “retrato” das pessoas na praia e com o dinheiro que ganhava, comprava algum material e depois consumia as drogas. Até que não foi mais possível pintar.
A Arteterapia foi como um instrumento de resgate e reconciliação com a sua arte, de maneira agora mais saudável e equilibrada, com possibilidade de reencontro com o artista adormecido. Algum tempo depois, soubemos que o quadro de E. foi doado à casa de recuperação e posteriormente representou a mesma em uma exposição que aconteceu numa conferência sobre Recuperação de Egressos de Rua em Londres. CLIQUE AQUI

Conclusão:
A recuperação de adictos é um processo longo, contínuo e permanente  que dura a vida toda, mas que é conquistado um dia de cada vez, um passo por vez, e a Arteterapia pode  ser uma ferramenta fundamental nesta conquista.
Referências Bibliográficas:
- PHILIPPINI, Angela – Cartografias da coragem – 4ª edição – Wak Editora, 2008
- UTTUTIGARAY, M C- Arteterapia – A transformação pessoal pelas Imagens – Rio de janeiro, Wak Editora, 2011
- ZOJA, Luigi, Nascer não basta, Axis Mundi Editora, 1992

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Sobre a autora: Tania Salete


Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.


segunda-feira, 22 de maio de 2017

GRANDES ARTISTAS NA PRÁTICA DA ARTETERAPIA: ABRAHAM PALATNIK


Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com 

Há algum tempo pensar sobre os artistas tem me instigado. Penso que dentre a pluralidade humana, os artistas são seres que possuem uma sensibilidade singular às questões mais profundas da alma. Possuem o dom de perceber, sentir e expressar através das mais variadas linguagens da arte, emoções que todos sentimos, mas não sabemos nomear ou traduzir.  

A sensibilidade do artista pode se manifestar nas esferas coletiva/social/cultural ou individual. Quanto à primeira, podemos pensar na História da Arte como a história da humanidade registrada ao olhar não dos historiadores ou jornalistas, mas a partir do olhar tão sensível do artista. Como exemplo podemos citar os dadaístas, aos quais as expressões artísticas estavam altamente atravessadas pelo contexto social da época, a Primeira Guerra Mundial.  

Na esfera individual, quantos artistas podemos trazer à memória aos quais a arte serviu como expressão e instrumento de elaboração de emoções tão profundas, despertadas a partir de suas histórias, mas para além da singularidade de cada biografia, sentimentos que pertencem ao ser humano. Como exemplo, Frica Kahlo, que não esconde o quanto a arte lhe fez suplência para o atravessamento de uma biografia tão intensa. Suas telas nos impactam, tamanha potência das emoções ali expressadas. Naturalmente nos impactam porque, de alguma forma, também nos pertencem.  

Nise da Silveira considera o artista como: 

 “‘um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da humanidade’. No mistério do ato criador, o artista mergulha até as funduras imensas do inconsciente. Ele dá forma e traduz na linguagem de seu tempo as intuições primordiais e assim, fazendo, torna acessíveis a todos as fontes profundas da vida.” (SILVEIRA, 2007)

Assim, vejo como essencial que o arteterapeuta se dedique a conhecer sobre os mais variados artistas em seus mais variados contextos: suas biografias, obras, processos criativos e movimentos artísticos. Primeiramente porque tornar-se íntimo dos artistas exercita a sensibilidade para expressão e escuta através da arte. Além disto, oferece subsídios para a prática da Arteterapia em sua riqueza de possibilidades!

Hoje o protagonista: Abraham Palatnik

Uma obra de arte não deve transmitir mensagens, mas ter vida própria. Não pode ser mero suporte de uma mensagem como um telegrama, que depois de ser lido jogamos fora.” Palatnik





Uma das formas de se conhecer grandes artistas está em frequentar exposições de arte oferecidas pela cidade. E foi assim que conheci Abraham Palatnik. No período entre 1º de fevereio a 24 de abril de 2017 o Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro manteve em cartaz a exposição “Abraham Palatnik: A reinvenção da pintura”. Palatnik, um artista brasileiro ainda vivo, nascido em natal em 1928. Uma das formas de se conhecer grandes artistas está em frequentar exposições de artes oferecidas pela cidade. E foi assim que conheci Abraham Palatnik e desde então venho pensando e escrevendo sobre este inspirador artista brasileiro, ainda vivo, pioneiro da arte cinética. No período entre 1o de fevereiro a 24 de abril de 2017, o Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro manteve em cartaz a exposição "Abraham Palatnik: a reinvenção da pintura". Nesta riquíssima exposição, tive a oportunidade de conhecer várias fases do artista aos quais aos poucos, venho me aprofundando e pensando sobre possibilidades de diálogos com a Arteterapia, em seus estímulos e práticas. Neste texto compartilho minhas reflexões até o momento.


Minha primeira surpresa na exposição se deu quando descobri que o artista viveu parte da sua infância e adolescência na Palestina, onde teve a oportunidade de estudar arte. Retornou ao Brasil e ao final dos anos 40 foi convidado a visitar o Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde conheceu o trabalho da dra Nisa da Silveira. Palatnik fica profundamente impactado com as obras dos pacientes, sobretudo de Raphael Domingues e Emygdio de Barros. Perguntava-se como aquelas pessoas produziam imagens tão densas sem jamais terem passado por uma escola de artes ou objetivarem qual o significado da expressão “arte”. Assim o artista entrou em crise com a pintura e concluiu: “Pensava que eu era um artista formado. Resolvi começar de novo. A disciplina escolar, de ateliê, não servia para mais nada.” E foi assim que começou o seu processo de reinventar a pintura.

Seguindo sua intuição e desenvolvendo um estilo muito próprio, Palatnik acabou por flexibilizar as fronteiras entre a pintura e a escultura. O artista não abre mão da artesania,  o que podemos perceber pelo uso de materiais como o vidro, barbante, cartão e hastes metálicas, elementos baratos e abundantes no comércio varejista e popular. Naturalmente, seu processo criativo como artista e inventor, refletia em seu ateliê, que poderia ser confundido com uma oficina, “lugar de concepção do novo”, que continha materiais industriais e cotidianos, parafusos, pregos além de aparatos eletrônicos criados pelo próprio artista.
(foto da exposição no CCBB-RJ)


Aqui, vale destacar que Palatnik e seu processo criativo nos inspira como arteterapeutas a medida em que ampliamos nosso olhar para a riqueza de possibilidades em materiais que podem ser utilizados no ato de criar. A expressão em arte se dá à medida da (liberdade) criatividade. Sendo assim, o ateliê/consultório do arteterapeuta deve conter materiais muito atém dos clássicos de desenho ou pintura, mas tudo aquilo que possa servir de subsídio para o despertar da intuição do cliente/paciente em seu singular processo criativo.


Rompendo as fronteiras das categorias estabelecidas:

“Eu me considero um pintor embora ao longo do tempo eu tenha mudado radicalmente a forma como a pintura aparece [...] Gosto de experimentar várias técnicas, realizar trabalhos com motores e articulações. Não considerei a pintura especificamente como uma finalidade absoluta.” Palatnik

Palatnik segue seu caminho, sempre aberto ao novo e ao diálogo com tudo aquilo que poderia compor sua expressão, sua arte. Segue agregando a tecnologia, mecânica, luzes, movimentos, motores, até que em 1951 marcou a arte cinética no mundo quando trouxe o primeiro “Aparelho Cinecromático”. Utilizando motores e luzes em sua estrutura (e a primeira obra desta série ainda possuía barbante em seu interior), o aparelho ampliava o termo “escultura” na história da arte e ainda mantinha um diálogo profundo com a pintura.

Conta-se que esta obra foi julgada para participação na 1ª Bienal de São Paulo, mas decidiu-se que não faria parte da exposição porque “não era pintura, nem escultura, não dava para encaixar”. Porém, devido à ausência da delegação japonesa, seu “Cinecromático azul e roxo em primeiro movimento” foi incluído na Bienal e por fim recebeu menção honrosa do júri internacional.

Esta passagem na história de Palatnik me tocou de forma particular pois ilustra momentos em que há uma demanda externa para o “encaixe” naquilo que é tradicional. Palatnik em seu processo criativo nos ensina sobre a liberdade no criar, para além de categorias pré estabelecidas, mantendo-se comprometido e fiel ao que há de mais essencial: sua arte.

Palatnik nos inspira como arteterapeutas que buscam seu estilo próprio de trabalho a partir das mais variadas influências teóricas. Inspira também aos clientes/pacientes de Arteterapia, que vão utilizar como matéria prima do ato criativo sua mais profunda intuição.


"Minha função como artista é disciplinar o caos." Palatnik

Se por um lado Palatnik nos inspira quanto à liberdade no ato de criar, por outro, nos lembra que muitas vezes a criação funcionará como um processo organizador. O artista trás como reflexão os inúmeros estímulos sensoriais puros que vamos captando no dia a dia - o caos - e o processo de torna-las percepções a partir da ação cerebral, transformando "o complicado em simples", buscando "... alguma coisa derivada do caos que atinja um certo ritmo..."  

Esta citação me impressiona e inspira para a prática da Arteterapia, pois muitas vezes os clientes/pacientes que recebemos no setting arteterapêutico apresentam-se em forma de caos, das mais diversas ordens. Desta forma, a função da arte e o despertar do artista naquele sujeito será justamente para a organização do caos.


Para visualizar e saber mais sobre a obra de Palatnik, recomendo o documentário "Disciplina no caos: Ocupação de Abraham Palatnik", disponível no youtube.
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A Equipe Não Palavra te aguarda!

* As citações e referências deste post foram extraídas de legendas da exposição “Abraham Palatnik: A Reinvenção da Pintura” e do documentário "Disciplina no caos: Ocupação de Abraham Palatnik"
No período entre 1º de fevereio a 24 de abril de 2017 o Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro manteve em cartaz a exposição “Abraham Palatnik: A reinvenção da pintura”. Palatnik, um artista brasileiro ainda vivo, nascido em natal em 1928.
Referências Bibliográficas:
Silveira, Nise. Jung Vida e Obra

segunda-feira, 15 de maio de 2017

ARTE, ATUALIDADE E INDIVIDUAÇÃO



Hoje, mais uma vez, o Não Palavra abre as portas para Mércia Maciel, estudante de Arteterapia no Rio de Janeiro. (Veja seu primeiro  texto AQUI )

Neste segundo momento Mércia compartilha conosco um fragmento de seu estudo fazendo a resenha de um vídeo que a tocou: uma entrevista com o analista junguiano Dr. Carlos Byington.

Aproveito a oportunidade para encorajar outros estudantes de Arteterapia que tenham o desejo de participar do projeto "Não Palavra abre as portas", ao qual uma das linhas de pesquisa é "Resenhas de literatura em Arteterapia e/ou saberes relacionados". Ela tem como objetivo a sugestão de literaturas ou referências que possam colaborar para a formação do profissional de Arteterapia. Aqui, a proposta é fazer uma resenha apresentando um livro ou outras referências como vídeo, filme, exposição ou espetáculo que tenha contribuído para seu estudo, pesquisa e prática em Arteterapia.

Mércia aceitou este convite. E sendo este um espaço colaborativo, você estudante, também será bem vindo. 

Eliana Moraes 

"Criança geopolítica assistindo ao nascimento de um
novo homem", Salvador Dali.



Por Mércia Maciel
mercia.m@terra.com.br

Ao  longo da minha história, sempre me fascinaram aqueles que aproveitam seu tempo de vida para adquirir sabedoria, para além do próprio conhecimento.
Talvez isso seja resultado do privilégio de ter tido um pai idoso, que me concebeu já aos 55 anos de idade. A maior herança que deixou para mim e meus irmãos foi a sabedoria que se dedicou a adquirir. Fez desse seu objetivo de  vida e caminhada.
Hoje, buscando me aprofundar no estudo da Teoria Junguiana como base para o meu exercício da Arteterapia, encontro essa pessoa que cativa com seu modo de ser amoroso, profundo e generoso. Refiro-me  ao analista junguiano Dr. Carlos Amadeu Botelho Byington.
Médico psiquiatra, nascido em São Paulo, mas crescido no Rio de Janeiro, Dr. Carlos Byington especializou-se em Psicanálise e, em 1965 graduou-se pelo Instituto Jung, em Zurique. Ao retornar ao Brasil, fundou juntamente com colegas a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.
Além de ministrar cursos e palestras por todo o Brasil e exterior, Dr. Carlos Byington desenvolveu conceitos próprios que originaram a Psicologia Simbólica Junguiana.
Nesta entrevista ao André Rodrigues, do site Jung Na Prática (CLIQUE AQUI) , especialista em Psicologia Junguiana e Arteterapia, o Dr. Carlos fala sobre a importância do estilo da personalidade, que já nasce com a pessoa, como raiz de toda arte. Diz ele: “A arte é a maneira de viver, dentro da estética.” A arte de viver, a arte como Obra, as obras de arte da natureza.
Fala também sobre seu pensamento a respeito da educação, expresso em seu livro “A Construção Amorosa do Saber”. Defende a importância de um ensino criativo, que trabalhe também o aspecto matriarcal e não apenas o patriarcal, estimulando o exercício da criatividade na aprendizagem junto com afetividade, com carinho e com amor, e finaliza falando da capacidade de individuação, que todos nós temos, como direito a ser exercido numa sociedade que se pretende democrática. Nesse aspecto, demonstra a amplitude de seu pensamento, que alcança o sujeito inclusive enquanto cidadão.
Na entrevista abaixo, apesar do curto tempo de menos de 15 minutos, você poderá aproveitar um exemplo vivo do que propõe Carl Jung com sua teoria, voltada principalmente para a segunda metade da vida: alguém que fez e faz de sua vida uma busca constante pelo processo de individuação , que propõe o encontro do particular com o geral, do singular em si mesmo com o numinoso em  integração com o Todo.
Espero que aproveite, como eu, esse querido exemplo de sabedoria.


Para assistir a entrevista completa CLIQUE AQUI .




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A Equipe Não Palavra te aguarda!

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Sobre a autora:

Mércia Maciel

Assistente Social pela UFF (1994), pós-graduanda em Arteterapia e Processos de Criação pela UVA.
Experiência como assistente social: atendimento de família, dependência química, e crianças em situação de abuso.


sábado, 6 de maio de 2017

“13 RAZÕES PORQUE”: Precisamos falar sobre o suicídio


Há algumas semanas um(a) jovem paciente veio para sua consulta em meu consultório bastante impactado(a) com uma série que acabara de assistir. Chamou-me a atenção a maneira tão real ao qual narrou as cenas, mas também por contar o que assistiu como “óbvio” que sua terapeuta também havia assistido e que sabia da intensidade das cenas. Tratava-se de uma série em que uma moça havia entendido que só havia uma saída: o suicídio. Mas antes disso, deixou 13 fitas endereçadas àqueles que haviam sido as razões para tomada daquela decisão. 

Tenho pensado que em alguns contextos as séries têm ocupado um lugar que antigamente pertencia às novelas: a dramaturgia com grande alcance compondo o cotidiano e oferecendo ao social as questões a serem discutida nas “rodas de amigos”. Neste contexto, hoje o Não Palavra convida Yann Rodrigues, criador do interessantíssimo blog “Além do Roteiro” (CLIQUE AQUI). Yann escreve sobre temas da atualidade, dentre eles análises de séries.

Sabemos que a arte em suas mais variadas linguagens, muitas vezes age como estímulo projetivo, e assim não são raras as vezes em que um paciente chega para sua terapia impactado com uma música, uma poesia, uma imagem. Considerando o cinema como uma das linguagens da arte e as séries como uma de suas ramificações, penso que é essencial que o terapeuta esteja atento ao que há de mais atual estimulando o social neste seguimento.

Hoje tratamos de um tema extremamente atual, sobretudo porque, sincronicamente, no Brasil, vivemos o reaparecimento do jogo “Baleia Azul”. Assim, consideramos que este texto fala aos terapeutas de forma geral que se propõem a trabalhar com adolescentes (e outros públicos) que podem esbarrar no tema suicídio.
Bem vindo Yann e obrigada pela disponibilidade e generosidade de partilhar com o Não Palavra!
Eliana Moraes

Por Yann Rodrigues
"Oi, é a Hannah. Hannah Baker. Não ajuste seu… seja lá o que estiver usando para ouvir isso. Sou eu, ao vivo e em estéreo. Sem promessa de retorno, sem bis e, dessa vez, sem atender a pedidos. Pegue um lanche. Acomode-se. Porque eu vou contar a história da minha vida. Mais especificamente, por que minha vida terminou. E se você está ouvindo essa fita, você é um dos porquês."

Toda boa história tem dois elementos fortemente conectados e embutidos pela equipe que a produz. Uma promessa e uma ou mais visões de mundo.

A promessa vem do questionamento ou efeito que essa equipe deseja provocar. Seja a pessoa autora do livro "Os Treze Porquês", que dá origem à série "13 Reasons Why", da Netflix, seja pelas responsáveis por roteiro, direção e produção da última.

No seriado House of Cards, também da Netflix, a promessa vem na forma da primeira quebra de quarta parede da série. Acompanharemos um caminho de tomada inescrupulosa de poder, mas não como meros espectadores. Sentiremos o desconforto de sermos cúmplices.


Em "Os Treze Porquês", Hannah Baker é a jovem que, com um caminho extremamente sofrido, decide pelo suicídio. Escutamos as 13 fitas que ela grava, elencando as pessoas e razões que a levaram ao suicídio, através do co-protagonista da série, Clay. Ele é uma das razões.

Porém, não é com ele que escutamos o início da primeira fita. Assim como fiz na introdução do texto, a narração de Hannah é a primeira cena. "Seja lá o que estiver usando para ouvir isso" (o celular, o computador, a televisão ou videogame), o espectador é chamado para a narrativa como se fosse ele uma das razões.

Essa é a promessa da série: discutir o suicídio do ponto em que você, eu, qualquer espectador, pode ser uma razão para o ato. Um dos porquês. É o momento em que a série aciona o seu primeiro de muitos possíveis gatilhos: o desconforto de que podemos causar uma tragédia como o suicídio. Gatilho suficiente para nos fazer assistir até o final, ávidos a negar tal destino.

Embutida nessa promessa já temos clara uma visão de mundo. A de que há culpados para um suicídio.

Partindo da promessa, acompanhamos duas linhas narrativas junto a Clay. O presente, onde ele escuta as fitas e lida (junto ou contra os outros jovens) com as consequências, e o passado, à medida que Clay visita e lembra os locais e eventos narrados pela adolescente.

Em praticamente todos os episódios, alguém, seja Clay ou a "protagonista da fita", percebe um momento-chave em que "Se eu não tivesse feito X com ela, talvez ela estivesse aqui conosco".

É, talvez. Mas, à medida em que os eventos se desenrolam, fica claro que a visão de mundo envolvendo essa colocação não desenvolve a possibilidade de ajuda a alguém que precisa. Desenvolve apenas o "se", a tortura da culpa que sentem os que ficaram.


Poderia ficar uma dúvida, ao assistirmos à produção, se a mesma acredita que podemos contribuir para evitar um suicídio, ou se na verdade podemos apenas tentar não contribuir para causar um. Episódio a episódio na maratona Netflix, se fortalece a última opção, confirmando a primeira visão de mundo, embutida na promessa.

Além de lidar com o luto, vemos todos os envolvidos em estado de negação, desespero e até alucinações.



“Por que uma garota morta mentiria? / Você não conseguiu me salvar / Você é tão doce, certo? Errado / Você só quis ver se os rumores eram verdadeiros? / Como você vive com você mesma? / Você foi o começo do fim”

Alex, personagem da terceira fita, toma nota do dano que causou ao criar uma lista que objetificava sexualmente as colegas de escola. Seu caminho se torna uma espiral de ações em que perde o sentido da própria vida, até o ponto de também tentar o suicídio, no final do seriado.


Clay escuta sua fita transtornado pela ideia de que pode ter causado a morte de Hannah. Chega a perguntar a Tony, o melhor amigo e uma espécie de anjo da guarda do plano de Hannah (de distribuir as fitas para seus "alvos" ouvirem), se causara a sua morte.

Tony responde que sim — resposta que seria racionalizada pelo próprio depois com algo como "todos a matamos".

As 13 fitas são criadas traçando uma cronologia de como a garota enxergou chegar à decisão do suicídio. Elas passam por: uma foto vazada da garota com calcinha aparecendo; uma lista de nomes objetificando as garotas, que estremeceu duas amizades de Hannah; o medo de um stalker e uma foto de um beijo ocasional com outra menina; uma fofoca escolar sobre a sexualidade da protagonista devido à foto; uma tentativa abusiva de um garoto de ficar com Hannah acreditando que ela era fácil; um "castigo" de um garoto que retira os bilhetes amáveis que ela recebia diariamente (sem saber que eram de Clay); o vazamento deliberado por um colega de uma poesia extremamente íntima; um estupro à sua ex-amiga, a que Hannah assiste paralisada; a culpa pela morte de um colega no trânsito, com influência de uma placa de rua derrubada por sua amiga minutos antes, enquanto a dava carona; um segundo estupro, dessa vez sofrido por ela, pelo mesmo estuprador.


Se bateu cansaço ou aflição ao ler, imagine Hannah. Nenhum item pode ser chamado de mínimo, irrelevante. É evidente, no entanto, que há uma tentativa de crescimento do peso, do impacto esperado de cada evento, culminando nos estupros.

Por outro lado, cada episódio/fita dura o mesmo tempo, um episódio. O que aproxima as situações, dá um peso narrativo semelhante a elas.


Esse parelhamento é perigoso pois facilita que Jessica (que estremece a amizade na 2ª fita), Alex ou Clay se sintam tão culpados quanto Bryce, o estuprador — na verdade, eles se sentem muito mais culpados; Bryce não sente qualquer remorso.

Logo, facilita que quem se identifica com personagens como Jessica sintam medo de serem culpadas em suas vidas reais, como produto da identificação.


Os últimos episódios (entre 11 e 13) condensam essa narrativa da culpa de algumas formas:

1- Através da visão de Clay, somada às falas de Tony, que sobrepondo a própria posição de Hannah sobre o garoto. A fita de Clay o inocenta, mas ele, e todos, racionalizam a culpa.

2- Resultado? Clay quase se joga de um penhasco pensando no que poderia ter falado que poderia ter feito alguma diferença.

3- Através do caminho de Alex, o único envolvido no grupo que tentava afastar Clay das fitas que realmente reflete sobre o papel de cada um ali no suicídio de Hannah.

4- Na própria tentativa de suicídio de Alex, que se considera culpado não só por ridicularizar e afastar Hannah, como por perder Jessica como namorada, devido a um desejo de transar.

O reforço massivo da ideia de culpa em todos leva a uma lógica de que para Hannah, não há solução, não havia saída, que não o suicídio.


Essa suposição expõe mais duas visões de mundo: a de que o suicídio é a única saída para alguém na situação de Hannah; e a sinistra conclusão de que o suicídio funciona como vingança.

A forma mais evidente de captarmos a visão ou tese de autores de uma história é percebendo os diálogos, pensamentos e ações de suas personagens. No caso da série, três momentos são marcantes para termos essa conclusão.


Quando Clay confronta Jessica sobre o estupro que esta sofreu de Bryce, a menina responde desesperançosa: "você viu que Hannah pediu ajuda e não adiantou nada".

Frases como essa, que estabelecem uma ideia, podem ter duas razões: elas são a tese, ou necessárias para a comprovação da tese.


Por exemplo, se "13 Reasons Why" desejasse mostrar que vale a pena buscar ajuda, a frase seria perfeita como uma isca. Sua utilidade estaria em ser a hipótese a que o roteiro visa contradizer. Criar uma personagem ou um fluxo narrativo para uma personagem existente (Alex ou a própria Jessica seriam bons exemplos), em que uma pessoa busca ajuda pós-estupro ou pré-suicídio e a ajuda funciona. A frase inicial da menina estaria contraposta, revelando a intenção da história.

Seria uma prova de que a ajuda é, no mínimo, uma possibilidade. Porém, a série não contrapõe a frase de Jessica em nenhum momento. Mais forte que isso, como segundo elemento, a série mostra o próprio insucesso de Hannah na busca por ajuda, com o conselheiro da escola — que não tinha formação em psicologia ou outra área associada.


A ajuda não funciona, o que é possível na vida real. Contudo, a cena é a única demonstração de qualquer tentativa de pedido de ajuda. O contexto criado na narrativa, como a falta de formação do conselheiro, ou a ligação que o impede de ir atrás de Hannah após esta sair de sua sala, são escolhas narrativas que servem para permitir que ela cometa o ato, que a história siga para onde deseja.

Mais uma vez, tudo possível, mas e as alternativas?

Como terceiro momento, há uma cena de relance com Tyler, o stalker.


A cena mostra Tyler guardando um baú de armamentos para que os pais não vejam. O stalker que é isolado e considerado uma aberração planeja um tiroteio escolar, o famoso "mass shooting" americano. Em seguida, aparece seu estúdio de fotografia com fotos de seus alvos. São praticamente as mesmas personagens que já conhecemos, incluindo Clay. Basicamente, a garota que sofreu todo tipo de bullying à coisa pior se suicidou. O garoto que sofreu todo tipo de bullying planeja um suicídio - com extra de assassinato em massa.

Considerações Finais:



Conhecendo as visões de mundo expostas na série, e a forma como ela fisga seus espectadores, fica evidente a importância de trabalhá-la. Para mim, alguém sem histórico depressivo ou de pensamentos suicidas, houve muito aprendizado sobre a situação. Para muita gente, ficaram os perigosos gatilhos. Em especial com a força do último episódio, que mostra a cena de suicídio de forma explícita. A cena chega a ensinar, além de ser graficamente impactante.

Alguns textos traçam perfis das personagens (CLIQUE AQUI), outros revelam o que sente quem está suscetível aos gatilhos (CLIQUE AQUI). Uma mãe escreveu (em inglês) sobre o efeito imediato da série em seu filho (CLIQUE AQUI) suscetível aos gatilhos.


Mesmo que a série não tenha continuação (duvido) e caia no esquecimento, é perigoso perdermos a oportunidade que o assunto apresenta. Todas essas discussões partem de uma narrativa onde ninguém, ninguém sai ileso. Uma narrativa onde não há saída além do suicídio.



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