Por
Eliana Moraes MG/RJ
naopalavra@gmail.com
Parafraseando Manoel de
Barros: a criatividade caça jeito. E este é o mote do arteterapeuta atuante em
tempos de isolamento social. Quando recebemos a autorização da UBAAT para
atuarmos em atendimentos on line durante o período da pandemia, observei
que as primeiras perguntas surgidas nos debates giraram em torno dos materiais.
Como trabalhar como arteterapeutas com as possibilidades em materiais tão
comprometidas, restritas apenas ao que os experienciadores têm em casa?
Instigada por esta questão,
resgatei alguns textos que escrevi para este blog no ano de 2018 e compilados
no livro Pensando a Arteterapia Vol 2, ao qual eu já refletia sobre o trabalho
arteterapêutico com a escassez de materiais, a partir de demandas que surgiam
na minha clínica, mal sabendo o futuro que nos aguardava:
Seria a escassez de
material um impeditivo para o arteterapeuta trabalhar? Na verdade, muito pelo
contrário. Penso que essa efetivamente é a oportunidade para que, no campo do
simples, a mola mestra da Arteterapia possa emergir: a criatividade.
Criar a partir da
riqueza de possibilidades é muito interessante. Mas penso que criar diante do
pouco ou do quase nada é, de fato, o chão da vida. A realidade da clínica
mostra-nos que vivemos em tempos de crise financeira, perdas sucessivas de
poder aquisitivo, redução de possibilidades múltiplas narradas por nossos
pacientes com ar de frustração e derrota, sendo o discurso do “não posso” a
tônica.
Então eu pergunto aos
arteterapeutas, não seria justamente essa metáfora de vida que precisamos
remontar em nossos settings terapêuticos? Diante do (que parece) pouco, para
onde sua criatividade o leva? Ao que sua intuição o instiga? Quais
possibilidades você pode se levar a enxergar diante do que tem à frente?
(MORAES, 2019, p22-23)
Em
tempos de pesquisa sobre a criatividade, um livro que tem me orientado muito é
o “Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte” de Stephen
Nachmanovitch. No capítulo “O poder dos limites” o autor nos convida a fazer as
pazes com os limites, pois estes podem fazer o papel de contornos necessários
justamente para estimular a criatividade:
As vezes amaldiçoamos
os limites, mas sem eles a arte não é possível. Eles nos proporcionam algo com
que trabalhar e contra o que trabalhar. No exercício de nossa arte,
submetemo-nos, em grande medida, àquilo que os materiais nos determinam. A
viscosidade da tinta, a tensão das cordas de um violino, o ego dos atores – todos
esses pontos fracos e limitações podem ser encarados como a disciplina
necessária para o despertar da criatividade. A própria língua é um veículo
rico de obstáculos e resistências... (NACHMANOVITCH, p 81)
Vale
destacar que é uma especificidade da Arteterapia estudar as linguagens e
propriedades dos materiais, compreendendo justamente quais são os limites e as
possibilidades de cada um, para que possamos promover o encontro do experienciador
com o material que seja mais facilitador do seu processo. Neste sentido,
podemos compreender que já faz parte do nosso cotidiano conhecer e manejar
com destreza os “pontos fracos e limitações” dos materiais,
bem como a criatividade que pode ser despertada por cada um deles.
Seguindo
seu raciocínio:
Muitas vezes é mais
fácil produzir arte de boa qualidade dentro de um baixo orçamento do que de um
alto orçamento. Não
estou recomendando a pobreza como modus operandi; é lógico que necessitamos de
materiais para criar... Mas a necessidade nos obriga a improvisar com o
material que temos a mão, a recorrer a uma engenhosidade e uma inventividade
que talvez não emergissem se pudéssemos adquirir soluções prontas. (NACHMANOVITCH,
p 81)
Creio
que uma reflexão importante que o momento presente nos traz é que, durante
nossa formação em Arteterapia, temos a oportunidade de nos ser ofertado uma
infinidade de materiais a serem experimentados. É o tempo da “mesa farta”.
Acredito que este seja um período essencial para nossa construção uma vez que
somente no processo de profunda experimentação dos mais diversos materiais é
que poderemos criar intimidade com cada um deles e suas propriedades, para
enfim saber acessá-los singularmente a cada momento oportuno. Entretanto, é
necessário reconhecer, que ao adentrarmos a prática, muitas vezes a realidade
não é esta, mas o cenário que nos apresenta é o da escassez de materiais. Neste
sentido precisamos justamente acessar nossa criatividade, “recorrer a uma
engenhosidade e uma inventividade que talvez não emergissem se pudéssemos
adquirir...” bem logo um belo ateliê equipado com todos os materiais dos
nossos sonhos!
Em
minha jornada, o processo de descobertas sobre o reaproveitamento de materiais
tem sido uma grande oportunidade:
Uma das características
de nossa contemporaneidade faz-se em um modelo materialista e consumista.
Estamos acostumados aos “descartáveis” e todos os sentidos que esse termo
contém. Pensar dessa forma acarreta uma série de desdobramentos, desde
subjetivos, quando não investimos na “reutilização” e “reciclagem” de nossos
conteúdos psíquicos mais profundos, até materiais, quando objetivamente
entulhamos nosso planeta/casa de tudo que entendemos que já cumpriu sua função
em nossa vida.
O arteterapeuta, como
um administrador de materiais, pode investir em uma conscientização e
responsabilização daquilo que utiliza como recursos em seu setting
arteterapêutico... essa é uma prática que coopera com o próprio arteterapeuta,
que não deve entender que a Arteterapia só se faz com a riqueza de materiais
sobre a mesa. “O chão da vida” da prática arteterapêutica... dá-se na falta de
possibilidade de grandes investimentos financeiros em materiais... Na escassez
de material, não se faz Arteterapia? Ao contrário, muitas vezes a realidade
da vida não está na riqueza de materiais/possibilidades, e a verdadeira
criatividade está justamente em criar a partir do (quase) nada. (MORAES,
2019, p 32-33)
É
tempo de irmos a campo, “caçando jeito” de trabalhar com Arteterapia, abrindo
mão dos materiais que já compõem nosso primeiro repertório ou zona de conforto.
Para isso, é tempo de pesquisas, trocas, experimentações... e descobertas. Afinal, se trabalharemos com nossos pacientes para que eles enxerguem possibilidades diante de um cenário tão desafiador que o fenômeno da pandemia tem os imposto e desenvolvam um olhar criativo perante a vida, esta postura deve começar em nós arteterapeutas e nossa naturalidade em lidar com a escassez de materiais, na arte e na vida.
Em
próximos textos e conteúdos nas redes sociais do Não Palavra, compartilharei
algumas propostas práticas que têm funcionado em meu fazer arteterapêutico em tempos
de atendimentos on line.
Referências
Bibliográficas:
MORAES,
Eliana. Pensando a Arteterapia Vol 2. 2019
NACHMANOVITCH,
Stephen. Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2