segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

SÉRIE DO IMPRESSIONISMO A ARTETERAPIA: A amizade entre a fotografia e a pintura



"A aula da dança" Edgar Degas

Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra

“Nada acontece quando você fica em casa. Eu sempre faço disso uma razão para carregar a câmera comigo o tempo todo... Eu só fotografo o que me interessa naquele momento.” Elliot Erwitt *

Carregar a “câmera” consigo o tempo todo, este é um hábito que todos nós, imersos na cibercultura, adquirimos nos últimos tempos. “Sair de casa” simboliza o olhar para fora, ou seja, o movimento de extroversão. Eis o cenário perfeito para que grandes experiências aconteçam aos olhares interessados naquele instante.

No texto de hoje, vamos pensar sobre a relação histórica da fotografia com a pintura, o diálogo dos impressionistas com a fotografia e possíveis aplicabilidades desta amizade para a prática da Arteterapia. 

O Impressionismo 

“A fotografia é uma forma de ficção. É ao mesmo tempo um registro da realidade e um autorretrato, porque só o fotógrafo vê aquilo daquela maneira.” Gerard Castello Lopes *

A invenção da fotografia (1839) e seu rápido processo técnico gerou um problema entre as técnicas artísticas e as novas técnicas industriais, especialmente para a pintura. Com a difusão da fotografia, que reduz os tempos de exposição e permite alcançar o máximo de precisão, muitos serviços sociais passam do pintor para o fotógrafo. A crise atinge sobretudo os pintores de ofício, que se ocupavam dos retratos, vistas de cidades e campos, reportagens, ilustrações, etc. (ARGAN)

A utilização generalizada da fotografia promoveu na segunda metade do século XIX, uma profunda influência sobre o direcionamento da pintura e o desenvolvimento das correntes artísticas (como por exemplo a abertura do caminho para as pinturas abstratas mais a diante). 

O impressionismo está estreitamente ligado à divulgação social da fotografia. O ponto em comum, o interesse pela pesquisa óptica para aquele instante. De fato, é difícil dizer se era maior o interesse do fotógrafo por aqueles pintores ou dos pintores pela fotografia. O que é certo é que uma das motivações para a reformulação da pintura foi a necessidade de redefinir sua essência e finalidade diante do novo instrumento de apreensão da realidade. 

Apesar desta “inimizade”, os impressionistas utilizavam sem problema algum, materiais de imagens fornecidas pela fotografia. Esta torna visíveis inúmeras coisas que o olho humano, mais lento e menos preciso, não consegue captar, passando a fazer parte do visível muitas outras coisas: por exemplo os movimentos das pernas de uma dançarina ou um cavalo a galope, como também os universos do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, revelados pelo microscópio e pelo telescópio, objetos que passam a fazer parte da experiência visual e, portanto da “competência” do pintor.  

Assim, podemos afirmar que a fotografia contribuiu para aumentar o interesse dos pintores pelo espetáculo social. Os fotógrafos por sua vez, mesmo se deixando guiar de bom grado pelo gosto dos pintores na escolha e preparação dos objetos, jamais pretenderam concorrer com a pesquisa da pintura. Nadar, um grande fotógrafo, foi amigo dos impressionistas, tendo acolhido a primeira exposição deles em seu próprio estúdio em 1874, mas nunca tentou fazer fotografias impressionistas. Ele percebia que a estrutura de sua técnica era profundamente diferente da que é própria da pintura.  

Edgar Degas não gostava de pintar paisagens, mas tinha interesse pelo mundo presente. Por muitas vezes recorreu sem preconceitos ao auxílio da fotografia, que revela aspectos ou momentos verdadeiros que escapam à vista.  Para o  artista, como a fotografia, a pintura devia ver e tornar visíveis coisas que o olho não vê. Mas a fotografia apresenta um instante, e a pintura uma síntese do movimento; por isso, a pintura não poderia ser substituída pela fotografia. (ARGAN)

Do Impressionismo à Arteterapia 

“A câmera é um instrumento que ensina a gente a ver sem a câmera.” Dorothea Lange *

O ato de fotografar demanda que nossos olhos estejam abertos para o mundo externo. Que sejam impressionados pelos detalhes, as sutilezas, os encantos, os “interessantismos”, o inusitado. O que você vê? O que lhe desperta? O que te toca?

Retomando o contexto do primeiro texto desta série, aos pacientes introvertidos faz-se grande estímulo quando propomos que tente fotografar aquilo que lhes chama a atenção em seu cotidiano, por “menor” detalhe que seja. Certa vez uma paciente fotografou e me mostrou seu prato de comida, chamando a atenção para as cores e formas, além de me descrever seus sabores. De fato, para alguém tão embotado, uma experiência sensorial que a convidava para a vida.

Este despertar do olhar também pode ser feito na companhia do terapeuta em atendimentos externos, podendo estimular a partir da relação transferencial a exploração de diversas paisagens, imagens do cotidiano, pessoas, objetos, etc

Dentro do setting arteterapêutico, é possível enriquecer as percepções quando propomos ao paciente que fotografe seus trabalhos. Algumas surpresas se mostram quando observamos a imagem original e comparamos com a imagem na fotografia. Novas projeções podem surgir e serem trabalhadas. Este recurso torna-se mais profundo e eficaz com os trabalhos tridimensionais. Estes, por definição, constituídos de diversas perspectivas, podem ser exploradas ao olhar atento do autor/fotógrafo em seus diversos ângulos e possibilidades. escolhendo assim aquele(s) que mais lhe impressiona(m). 

Fotografar algo que nos chama a atenção tornou-se um hábito em nossa cultura e como arteterapeutas podemos fazer bom uso deste instrumento. Há algum tempo uma paciente chegou para a sua consulta impactada com um objeto que havia capturado seu olhar durante seu trajeto. Uma imagem de Nossa Senhora, virada de costas em cima de um taco. Ainda sob o efeito deste encontro, ela rapidamente fotografou a cena e trouxe para sua sessão impressionada com a força da sincronicidade: ela estava justamente trabalhando em sua terapia a necessidade de dizer não para seu filho e colocar-lhe um limite. Sua sensação era que estava, como uma mãe, virando as costas para um filho. 



Muito haveria para falarmos com base na fotografia trazida pela paciente, mas embasada nos impressionistas, sugeri que não ficássemos apenas com a fotografia, mas que ela a usasse para criar a própria imagem, que fizesse um desenho a partir daquela cena que rapidamente fotografou. 

A experiência aprofundou-se sobremaneira, pois ao transportar a imagem da fotografia para o desenho a paciente visualizou algumas carrancas na barra do manto de Nossa Senhora. Carranca, imagem simbólica: uma escultura de madeira a princípio utilizadas nas proas das embarcações, compostas como expressões endurecidas de homens ou animais, que tinham como objetivo espantar os maus espíritos, por isso utilizada como um amuleto de sorte. Assim acolhemos as expressões endurecidas para espantar os “maus espíritos” do caminho da relação entre mãe e filho, buscando o retorno de sua sorte.  
  


Estudar História da Arte no diálogo com a Arteterapia é uma fascinante jornada. Descobrimos verdadeiras riquezas teóricas e possibilidades práticas. Do Impressionismo, podemos extrair como alguma das inspirações, o convite ao deixar-nos impressionar com o externo, com a natureza, com as cores. Somos estimulados a verdadeiras experiências de vida.   


* “20 frases essenciais sobre fotografia”

Disponível em: https://iphotochannel.com.br/inspiracao-em-fotografia/20-frases-essenciais-sobre-fotografia

Referências Bibliográficas: 

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Ed Companhia das Letras, SP. 1988.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga. 

Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI





segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

SÉRIE DO IMPRESSIONISMO À ARTETERAPIA: Da cor à vida


Claude Monet "Por do sol no Sena"

Por Eliana Moraes (MG) RJ 
naopalavra@gmail.com
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“A franja da encosta cor de laranja, capim rosa chá
O mel desses olhos luz, mel de cor ímpar
O ouro ainda não bem verde da serra, a prata do trem
A lua e a estrela, anel de turquesa
Os átomos todos dançam, madruga, reluz neblina
Crianças cor de romã entram no vagão
O oliva da nuvem chumbo ficando pra trás da manhã
E a seda azul do papel que envolve a maçã
As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela
E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há
Azul que é pura memória de algum lugar
Teu cabelo preto, explícito objeto, castanhos lábios
Ou pra ser exato, lábios cor de açaí
E aqui, trem das cores, sábios projetos: Tocar na central
E o céu de um azul celeste celestial”

“Trem das Cores” de Caetano Veloso

A música de Caetano Veloso nos ilustra em versos um olhar impressionista. A impressão que nos passa é que ele passeia pela cidade com os canais perceptivos aguçados sobre os objetos e suas cores. A partir deste aquecimento, hoje damos seguimento à série de textos que aborda possíveis inspirações que o movimento impressionista pode proporcionar ao arteterapeuta. 
O impressionismo
As motivações iniciais do grupo de pintores impressionistas se davam em realizar um estudo ao vivo, direto e experimental, trabalhando de preferência às margens do Rio Sena. A ideia era representar da maneira mais imediata, com uma técnica rápida e sem retoques, a “impressão luminosa e a transparência da atmosfera da água” (ARGAN). Estavam fixados assim, na absoluta pureza da sensação visual, inaugurando toda uma nova pesquisa baseada na percepção:
“Se o artista se propõe a exprimir a sensação em estado puro, antes de ser elaborada e corrigida pelo intelecto, é porque ele julga que a sensação é uma experiência autêntica, e a noção intelectual uma experiência não autêntica, viciada por preconceitos ou convenções. A sensação, portanto, não é um dado, mas um estado de consciência; ademais, a consciência não se realiza na experiência vivida e refletida, e sim na experiência que se vive. Identifica-se, pois com a própria existência.” (ARGAN, 1993, p 97)  
Nesta proposta de uma experiência sensorial, apresentou-se uma questão. Monet propunha a eliminação de todos os intermediários entre ele e o objeto: não apenas as convenções de ateliê, mas também deixou de lado o sentimento e a sensibilidade. Seu foco era tão somente a percepção: “a pintura não deve representar o que está diante dos olhos, e sim o que está na retina do pintor”. (ARGAN)
Mas esta perspectiva não era um senso comum dentre os impressionistas. Sisley por exemplo, não conseguia se afastar inteiramente do sentimento da natureza para colocar unicamente a questão visual. Este pintor se concedia tempo para reconhecer a espécie das árvores, nas casas a disposição das paredes, do teto... Detinha-se assim na sensibilidade. 
Já Edgar Degas entendia que não é possível existir um novo jeito de ver sem um novo jeito de pensar, sendo o artista um ser empenhado em captar a realidade, em se apropriar do espaço. Para Degas:
“Não é apenas uma questão da vista, como declarava Monet: o impulso da inteligência que quer ver e captar é também um gesto da mão, de todo o ser físico e psíquico. Não é contemplação... Não é estático, mas dinâmico; como a existência é um todo, não há separação entre o sujeito que vê e o objeto visto.” (ARGAN, 1993, p  106)
Independente das diferentes visões, na imagem impressionista a forma era de certa maneira negligenciada e tudo se apresentava à vista dos artistas através da cor. Isso se dava porque ao observarem as paisagens, a quantidade de luz se identificava com a quantidade de cores. Acreditavam que “O pintor trabalha com as cores, assim como o poeta trabalha com as palavras.” (ARGAN)
Paul Cézanne "Natureza morta com cesta de maças"

 Kandinsky ao falar de Cézanne, dizia que este:
“Elevou a ‘natureza morta’ ao nível de objeto exteriormente ‘morto’ e interiormente vivo. Tratou os objetos como tratou o homem, pois tinha o dom de descobrir a vida interior em tudo. Captura-os e entrega-os à cor. Recebem dela a vida – uma vida interior.” (KANDINSKY, 1990, pag 50)

Em resumo, os impressionistas fizeram história quanto ao uso das cores:

“Hoje, um século depois do grande cisma que mudou a história da arte... tendemos a não perceber esse dado fundamental: a descoberta da cor como matéria autônoma da pintura. Antes, a cor da pintura era a cor das coisas, das roupas, das casas, das pessoas – e por isso ela aparecia no quadro conforme as características dos objetos e da luz ambiente. A libertação começa com os impressionistas e chega à sua plenitude com Matisse que, em alguns de seus quadros, a despoja de toda e qualquer dependência naturalista.” (GULLAR, 2012, p 39)
Do Impressionismo à Arteterapia 
Do que apreendemos da história dos impressionistas, nossa primeira inspiração se dá em estimular que o experimentador da Arteterapia invista em abrir seus canais perceptivos para aquilo que os cerca. Acredito que, como terapeutas, não nos interessa fazer uma diferenciação da percepção visual  dentro experiência humana de forma ampla. Ainda assim, a ampliação do olhar e o deixar-se impressionar com a “natureza”, promove uma ação de ampliação de perspectivas da visão sobre a vida como um todo.  

"Vaso de planta, pote de ouro" Trabalho de Arteterapia 

O despertar sobre as cores dos objetos e transpô-las para trabalhos plásticos tem a ação, conforme Kandinsky, de trazer vida. Cor é energia psíquica, emoções, afetos. Investir em cores é trazer vida para que pacientes exteriormente mortos reencontrem uma vida interior.

Outra inspiração bastante interessante se dá no fato de que os impressionistas tinham uma relação muito próxima com a cidade. Ao transporem as quatro paredes da academia, se deslocaram inicialmente para as margens do Rio Sena e dali partiram para outras paisagem de Paris e da França em geral. 


Neste contexto, podemos trazer como estímulo gerador, a relação do experimentador da Arteterapia com a sua cidade. Este tema foi vivenciado por um grupo arteterapêutico de idosos que coordenei em setembro de 2018. Neste dia refletimos sobre nossas impressões, percepções e relações com o Rio de Janeiro. Pensamos sobre as cores da cidade, aquecidos por fotografias de pontos turísticos. Pudemos  observar que cada fotografia trazia uma cor predominante: verde, azul, amarelo, lilás...

Levei ao grupo imagens com traços minimalistas de pontos turísticos da cidade, pedindo que eles trouxessem as cores do Rio de Janeiro para cada um deles, não necessariamente as cores literais, mas cores a partir de suas experiências com o lugar onde vivem. O material foi lápis aquarelável, para facilitar a experiência da pintura e mistura de cores em tons e degradês. 


Sem dúvida, este foi um encontro riquíssimo em que cada um pôde se experimentar como um impressionista do Rio de Janeiro. 

O ideal para esta atividade seria, naturalmente, que estivéssemos às margens dos pontos turísticos. Porém, não havendo esta oportunidade, trabalhamos sem prejuízo da técnica, com a fotografia destes pontos. 

Aliás, a amizade entre a fotografia e a pintura para a prática da Arteterapia é o tema do próximo texto. Até lá!


Referências Bibliográficas: 
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Ed Companhia das Letras, SP. 1993

GULLAR, Ferreira. Arte Contemporânea Brasileira. Ed Lazuli, SP. 2012

KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. Ed Martins Fontes, SP. 1990
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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga. 

Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

SÉRIE DO IMPRESSIONISMO À ARTETERAPIA: Um convite à extroversão


Paul Cézanne "Mount Sainte Victoire"

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No percurso do grupo de estudos “Teorias da Arte e Arteterapia” em algum momento nos deparamos com o movimento impressionista e nele mergulhamos por alguns meses. Impulsionada por este estudo, hoje inicio uma série de três textos pelos quais compartilho possíveis contribuições do movimento impressionista para a prática do arteterapeuta. 

O Impressionismo

O Impressionismo foi um movimento artístico que iniciou-se na França, entre 1860 e 1870. Nasceu com a ligação de Monet e Renoir e, como movimento, apresentou-se pela primeira vez ao publico em 1874, com uma exposição de “artistas independentes” no estúdio do fotografo Nadar. 

Estes artistas tinham em comum a aversão a arte acadêmica e a recusa dos hábitos e métodos de ateliê, sendo assim, realizavam um estudo ao vivo, direto e experimental. Rompendo as quatro paredes da academia, trabalhavam de preferência às margens do Rio Sena, propondo-se a exprimir a sensação visual e representar da maneira mais imediata e flagrante a impressão luminosa e a transparência da atmosfera e da água. De fato, o termo “Impressionismo” nasceu de um comentário irônico atribuído a uma pintura de Monet chamada “Impressão, nascer do sol”, mas no fim das contas, o nome foi adotado pelo  grupo de artistas. 


Claude Monet "Impressão, nascer do sol"

Os impressionistas ocupavam-se exclusivamente da sensação visual, e defendiam que a experiência da realidade que se realiza com a pintura é uma experiencia plena e legitima.   

Este movimento que rompeu decididamente as pontes com o passado, abriu caminho para a pesquisa da arte moderna. Neste momento de conversão histórica, o pensamento analítico do artista estava sendo substituído pela sua visão. Conhecida como uma pintura “retiniana” os pintores impressionistas eram verdadeiros pesquisadores da impressão óptica do que era luminoso e transitório, no instante daquela impressão, e como resultado na imagem, a cor era exaltada e a forma, de certa maneira, negligenciada.    

Do Impressionismo a Arteterapia


"Nascer do sol" Trabalho de Arteterapia 

A articulação entre a História da Arte e a Arteterapia tem sido uma das minhas grandes paixões. Através da História da Arte instrumentalizamos nossa escuta para a cultura, o social que nos compõe e para o indivíduo que nele está inserido e nos procura “em dor”. 

A clínica da Arteterapia me apresenta um perfil de pacientes que são um grande desafio para a clínica da psicologia, uma vez que esta se sustenta prioritariamente a partir da linguagem verbal: pacientes que demonstram um grande esvaziamento, empobrecimento, embotamento, como em quadros depressivos graves. Ou de forma mais ampla, pacientes que fizeram um extremo investimento de energia psíquica para dentro, qual seja, um movimento de introversão. Este esvaziamento se faz apenas de forma aparente, pois no mundo interno são sujeitos em ebulição, mergulhados em seus conteúdos psíquicos e pensamentos obsessivos. Desta forma, o mundo externo se mostra ameaçador. Segundo Jung: 

“Quanto maior a multidão, maior se torna a resistência. Não está de modo algum ‘com ela’ e não tem nenhum prazer no ajuntamento entusiasmado. Não se mistura bem. Tudo o que faz, o faz a seu modo, pondo barricadas contra a influência de fora... Sob condições normais, é pessimista e preocupado, porque o mundo e os seres humanos não são nem um pouco bondosos, e sim o esmagam...

Estes esforços vêem-se constantemente frustrados pelas impressões avassaladoras recebidas do objeto; este continuamente impõe-se a ele contra a sua vontade, fazendo surgir nele os mais desagradáveis e intratáveis efeitos, perseguindo-o a cada passo. Uma tremenda luta interior se faz necessária a cada passo para ‘continuar em frente’. (JUNG in SHARP, 1991, p 100 -101)

No trabalho com este perfil de pacientes, podemos tomar como inspiração a história dos pintores impressionistas, que não se contentaram com os interiores da academia e em um ato simbólico, se deslocaram para fora e se lançaram às experiências com a natureza. Seus olhares curiosos não estavam mais para os modelos, objetos e técnicas acadêmicas, mas passaram a buscar suas impressões ao olhar para o exterior. 

"Paisagem" Trabalho de Arteterapia 

A primeira possibilidade que aqui visualizamos, quando for possível ao paciente, se dá ao estimularmos que ele  exercite seu olhar para fora. Atendimentos externos, seja no pátio da instituição, aos arredores do consultório ou até mesmo abrindo a janela: um olhar para além das “quatro paredes”. Vale ressaltar que em nossa contemporaneidade, o excesso de informações e a aceleração da vida cotidiana também nos rouba a capacidade de contemplação, a oportunidade de demorar-se em observar a natureza e os acontecimentos ao redor. Interessante destacar também, que em tempos de hiperinvestimento em “realidades virtuais” em uma contemporaneidade atravessada pela cibercultura, o investimento em deixar-se impressionar pelas percepções sensoriais trazem experiências de vida.  Exercitar um olhar impressionista a cada dia é um desafio para todos nós. 

Voltando ao cenário da introversão, a clínica nos mostra a verdadeira luta interior travada pelo sujeito no eixo “para dentro” e “para fora”. A relação com o próprio terapeuta e a formação do vínculo, já se configura um grande desafio. O diálogo então, um penoso trabalho. A arte, assim, se apresenta como um elemento terceiro, amenizador deste enfrentamento. O olhar e as forças projetivas são divididas, o que facilita ao sujeito baixar as resistências e em meio ao criar, se expressar.

Além disto, o criar naturalmente fará uma força contrária, um empuxo de conteúdos psíquicos “para fora”, ganhando forma, cores, concretude, matéria, contribuindo para um movimento de energia na direção do mundo exterior:

“A extroversão caracteriza-se pelo interesse pelo objeto externo, pela responsabilidade e pela pronta aceitação dos acontecimentos externos, pelo desejo de influenciar e ser influenciado pelos acontecimentos, pela necessidade de aderir e de ‘estar com’...” (JUNG in SHARP, 1991, p 63)

Cada trabalho produzido no setting arteterapêutico é efetivamente “um trabalho” para aquele sujeito com investimento de energia tão reduzida para os objetos. Aquele resultado, que muitas vezes se mostra empobrecido imageticamente, já demandou grande esforço e neste está nosso estímulo como arteterapeutas. A nós, cabe o desafio de ter paciência e empatia com este processo de reinvestimento de energia psíquica para o mundo externo. 

O diálogo com os pintores impressionistas nos convida à extroversão, nos inspira à experiências de vida e à nos deixarmos afetar e impressionar com aquilo que nos cerca. Nos próximos textos seguirei compartilhando aspectos deste riquíssimo movimento da História da Arte e suas possíveis aplicabilidades às práticas da Arteterapia. 




SHARP, Daryl. Léxico Junguiano, Ed Cultrix, SP. 1991.

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Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga. 


Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

PARA 2019, “A FÚRIA DA BELEZA”




Beatriz Milhazes

Por Eliana Moraes (MG) RJ
Instagram @naopalavra



“... Então, por favor,
É melhor não mexer nessa dor!
Parece descaso mas é um estrago
passar essa tarde mexendo no horror.
Parece loucura mas é uma tortura
matar essa tarde lembrando o terror.
É melhor não mexer com essa dor!
Com o dia rolando assim lindo e calado,
com as notas musicais de um teclado,
em meio à cidade do ofício e do riso,
do afeto e do lixo, não acho difícil
a gente pescar – a beleza
a gente sacar – a beleza
a gente firmar – a beleza
a gente espiar – a beleza
a gente se amar – na beleza,
pra gente gozar.
Então, por favor,
é melhor não mexer com essa dor!
Parece mentira mas dá ziquizira
roer esta tarde com ódio e bolor.
Parece bobagem mas é sacanagem
perder esta tarde brindando o rancor.
É melhor não mexer com essa dor,
que a tarde é linda, que a tarde é boa
e, antes que seja tarde, boa tarde, amor!”

Em “Boa tarde, amor”

Iniciei o período sabático vivido na passagem de 2018 para 2019 buscando um esvaziamento. Após um ano de muita atividade, faz-se necessário um desacelerar e silenciamento. Silêncio. Este é essencial como pausa, mas também como abertura de espaço para o novo. 

Em silêncio tentei ouvir o que o novo ciclo teria a me dizer e são em momentos como estes que as (memórias das) sincronicidades começam a aparecer. Lembrei-me que ao longo do ano, recorrentemente me impactavam algumas publicações do professor Marcos Quintaes que trazia como legenda “Só a beleza nos salvará”. Lembrei-me também que estudar sobre o conceito de Estética para a arte me tocou sobre aquilo que não é da ordem da futilidade, mas da experiência do Belo. No segundo semestre, me dediquei ao estudo sobre a artista brasileira Beatriz Milhazes, tida por alguns críticos como “um oásis do Belo na arte contemporânea”. Por fim, absolutamente não por acaso, no meu aniversário fui presenteada por uma pessoa tão querida, com o livro “A fúria da Beleza” de Elisa Lucinda (suas poesias ilustram este texto) e assim compreendi: meu coração está na busca pelo Belo. 

Hoje retomo um fragmento de meu primeiro texto de 2018 ao qual percebo que nele permaneço:
“Há algum tempo tenho investido na percepção dos fenômenos sociais da atualidade e estimulado arteterapeutas que me cercam para que exercitem seu olhar para os movimentos coletivos de seu tempo e do seu campo de influência, e assim orientem seu trabalho e propostas em Arteterapia. Emprestar seu corpo, sensações e intuições para a captação e tradução para a esfera objetiva os movimentos da humanidade, compõe a função do artista ao longo da história. Conscientizando-se desta função, podem os arteterapeutas imbuídos desta sensibilidade, orientar suas práticas arteterapêuticas, em propostas estruturadas ou semi-estruturadas, para não oferecerem temáticas a partir de seus próprios desejos, mas oferecer os materiais e linguagens expressivas que as pessoas estão tão  carentes e nos pedem intuitivamente.” (MORAES, 2018)

Este caminho de desenvolvimento da sensibilidade artística é absolutamente íntimo e pessoal. E aqui reforço meu incentivo para que cada arteterapeuta participe deste esvaziamento de si e (se) ouça como pode exercer seu ofício, oferecendo os materiais e estímulos que o social nos pede. Neste texto compartilho minha experiência pessoal, que não é “a verdade” ou “a solução”, mas a minha contribuição: a experiência do Belo. 

A beleza como resistência 



“Estupidamente bela
a beleza dessa maria-sem-vergonha rosa
soca meu peito esta manhã!
Estupendamente funda,
a beleza, quando é linda demais,
dá uma imagem feita só de sensações,
de modo que, apesar de não se ter a consciência desse todo,
naquele instante não nos falta nada.
É um pá. Um tapa, um golpe.
Um bote que nos paralisa, organiza,
dispersa, conecta e completa!
Estonteantemente linda
a beleza doeu profundo no peito essa manhã.
Doeu tanto que eu dei de chorar, 
por causa de uma flor comum e misteriosa do caminho...
Me tirou a roupa, o rumo, o prumo
e me pôs a mesa...
é  a porrada da beleza!...

Acontece as vezes e não avisa.
A coisa estarrece e abre-se um portal.
É uma dobradura do real, uma dimensão dele,
uma mágica à queima-roupa sem truque nenhum.
Porque é real...

Penso, as vezes que vivo para esse momento
indefinível, sagrado, material, cósmico,
quase molecular.
Posto que é mistério,
descrevê-lo exato perambula ermo
dentro da palavra impronunciável.
Sei que é dessa flechada de luz
que nasce o acontecimento poético...

Violenta, às vezes, de tão bela, a beleza é!”

Em “A fúria da Beleza”

Não há dúvidas, temos um ano bastante desafiador pela frente. Como terapeutas, somos convocados a atuar junto à indivíduos afogados em suas dores pessoais e coletivas. Como arteterapeutas, somos portadores de instrumentos expressivos, organizadores, orientadores e criativos através da arte. É necessário resistência, firmeza, tônus, atitude. Foi neste sentido que o título do livro de Elisa me capturou: “a fúria da Beleza”, com a força tal qual uma “porrada”. 
Beleza, reencontrei-me com esta palavra, tão desgastada e desconfigurada pelo senso comum – assim como a palavra “estética” para o campo da arte – como algo exterior, fútil, banal ou vulgar. 

No campo da filosofia, o termo estética se refere à uma dimensão da experiência e da ação humana, que possibilita caracterizar algo como belo, agradável, sublime, grandioso, alegre, gracioso, poético, ou então como feio, desagradável, inferior, desgracioso, trágico. Num sentido psicológico, refere-se às experiências e aos comportamentos emocionais que as coisas belas provocam nas pessoas, como sensação de enlevo, sensibilidade, afetividade, profundidade, “eternidade”.

Neste sentido, as vivências arteterapêuticas são grandes promotoras de experiências com a beleza. Através delas proporcionamos aquilo que é sensível, sublime, poético, profundas emoções e sensação de enlevo – que penso eu, hoje tão escassos em solo brasileiro. Quando repetimos o bordão “em Arteterapia a estética não é importante”, estamos usando esta palavra em um sentido comum. Como arteterapeuta, gosto de trabalhar com a perspectiva de Kandinsky, que fala do “Belo Interior” e é com este conceito que oriento meu paciente sobre a estética em Arteterapia.   

No livro “A arte como terapia” os autores abordam o receio recorrente quanto àqueles que buscam o “gracioso” na arte, como se significasse uma falta de envolvimento com a complexidade e os problemas sociais. Mais ainda, o medo de que o gracioso nos deixe entorpecidos e fiquemos pouco críticos e atentos às injustiças à nossa volta. Porém, defendem:
“A preocupação é que a gente se sinta alegre e contente com excessiva facilidade, com uma visão francamente otimista da vida e do mundo. Em suma, que nos sintamos esperançosos sem justificativa. 
No entanto... longe de termos uma visão cor-de-rosa e sentimental demais, durante a maior parte do tempo sofremos de excesso de melancolia. Temos grande consciência dos problemas e das injustiças do mundo – só que nos sentimos muito fracos e pequenos diante deles. 
A alegria é uma grande proeza, e a esperança merece celebração... Os problemas atuais, raramente são criados por gente com uma visão muito cor-de-rosa das coisas; os problemas do mundo nos são apresentados com tanta frequência que precisamos de instrumentos para preservar o ânimo.” (BOTTON & ARMSTRONG 13-16) 

No romance “O idiota” de Dostoiévski, o protagonista, moço tomado como um bobo, afirma que “somente a beleza salvará o mundo”. Sendo tolice ou não, minha oração em 2019 também vem em forma de poesia: 
“Deus salve as belezas corajosas!
Elas esparramam a atitude e
no seu jeito explícito
o seu Van Gogh.
Estilhaçam as pinceladas a tela da vida,
pintam ousadas, como um Dalí enlouquecido,
seu teor, seu clamor, seu alarido.

Deus salve as belezas corajosas
e proteja o coração de seus vencidos.”

Em “Reza forte” 


Referências Bibliográficas: 

BOTTON, Alain de & ARMSTRONG, John. Arte como terapia. Editora Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014.

LUCINDA, Elisa. A fúria da Beleza. Editora Afiliada, Rio de Janeiro, 2006.

MORAES, Eliana. Para 2018, olhos de sementes: diálogos com a argila. Blog Não Palavra, 2017

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga. 


Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".

Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 

Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
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