segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O MUNDO NECESSITA DE ARTE



Por Eliana Moraes
elianapsiarte@gmail.com



“O mundo necessita de poesia,
cantemos, poetas, para a humanidade;
...
Nosso destino, poetas, é o destino
das cigarras e dos pássaros:
- cantar diante da vida,
cantar
para animar
o labor do Universo,
cantar para acordar,
ideias e emoções;
porque no nosso canto
há um trigo louro,
um pão estranho que impulsiona
o braço humano,
e os cérebros orienta,
uma hóstia
em que os espíritos encontram,
na comunhão da beleza,
a sublimação da existência.
O mundo necessita de poesia,
cantemos alto, poetas, cantemos!”
Gilka Machado em Poesias Completas


O ano de 2016 começa a caminhar para o fim deixando alguns rastros de seus efeitos. Recentemente ouvi uma “brincadeira inocente” que me causou impacto: “Esse ano, a ‘Retrospectiva 2016’ vai ter que durar cinco horas!” 

Que ano! Particularmente, 2016 foi um dos anos mais desafiadores da minha biografia, e tenho apurado a minha escuta para não poucas pessoas reconhecendo o quão difícil foi. Ampliando nosso olhar para o social, não faltaram movimentações surpreendentes e notícias estarrecedoras na cidade/estado em que resido, Rio de Janeiro (e penso que os leitores de outros estados não fogem à regra), no nosso país, no mundo... Hipnotizados pela contemplação, poderíamos passar horas e horas mencionando os eventos que nos estarreceram. E em mim,  uma sensação tem sido constante nos últimos tempos: “Está estranho.” 

Nas esferas coletiva e pessoal, 2016 quebrou muitas das minhas certezas, seguranças e zonas de conforto e com ele um convite ao desfazer-me do que não cabe mais... ao vazio... e ao início de movimentos intuitivos àquilo que realmente me faz sentido   

Neste texto, alguns sentidos que me responderam.

Comecei a estudar História da Arte em 2009 com a Flávia Hargreaves, sem ter a menor ideia da proporção que este estudo tomaria em minha vida. Em 2016 experimentei a convicção de que estudar a História da Arte me faz sentido, pois ela contribui para minha compreensão sobre o mundo em que vivo e minhas articulações sobre o estar neste mundo 

Lembrei-me de Pablo Picasso que ao descrever seu processo criativo sobre a colagem disse: 

“... se um pedaço de jornal pode converter-se numa garrafa, isso também nos dá algo para pensar a respeito de jornais e garrafas. Esse objeto deslocado ingressou num universo para o qual não foi feito e onde em certa medida, conserva sua estranheza. E foi justamente sobre esta estranheza que quisemos fazer com que as pessoas pensassem, pois tínhamos perfeita consciência que o nosso mundo estava ficando muito estranho e não exatamente tranquilizador.”     

Ao longo da história a arte desempenhou muitas funções, e no século XX a expressão política através da arte teve papel fundamental. Exemplo disto foram os dadaístas que assaltados pelo horror da Primeira Guerra Mundial, buscavam através da arte chamar a atenção daqueles que pudessem ouvir:  

“Em Zurique, em 1915, tendo perdido o interesse pelos matadouros da guerra mundial, voltamo-nos para as Belas Artes. Enquanto o troar da artilharia se escutava a distância, colávamos, recitávamos, versejávamos, cantávamos com toda nossa alma. Buscávamos uma arte elementar que pensávamos, salvasse a espécie humana da loucura destes tempos.” (STANGOS) 

Neste contexto, pensar sobre meu ofício como arteterapeuta neste mundo que caminha para a estranheza foi uma segunda experiência. Tenho colocado nas aulas e supervisões para arteterpeutas que cada vez mais tenho a convicção de que nosso trabalho é micropolítica, aquela que fazemos a cada ato. Ao proporcionarmos ao nosso paciente/cliente um encontro com a arte – em qualquer formato dentre a riqueza de possibilidades que a Arteterapia nos oferece – somos agentes transformadores, de vidas e do social. Promover a arte mobiliza consciência, senso crítico, pensamentos, emoções, expressões, ações e movimentos individuais e coletivos.  

Ser arteterapeuta faz sentido, pois este ofício compõe meu estar no mundo. Através dele exerço a minha micropolítica disponibilizando a arte para sujeitos que intuitivamente buscam saúde em um mundo adoecido. 

Desde 2013, com o nascimento do blog Não Palavra, a escrita vem ganhando espaço no meu caminho profissional. Inicialmente com o objetivo de registrar o dia a dia de estudo e prática, hoje o blog tem conquistado seu espaço como um veículo de troca de conteúdo sobre a Arteterapia, em teoria, práticas e profissão. Vejo que este espaço tem ampliado seu alcance e contribuído para o estudo, articulações, e descobertas de arteterapeutas, estudantes e curiosos. Perceber a evolução deste trabalho me estimula a continuar.  

A escrita me motiva e compartilhar aquilo que aprendo com quem partilha da jornada comigo, tem um sentido especial para mim. Este é um sentido tão profundo que registrei-o no meu corpo: aspas nos punhos, que dentre outros significados, simbolizam minha escrita e minha motivação em compartilhar o conhecimento.  

2016 caminhando para o fim, deixando rastros de pensamentos e reflexões costurados pelo fio da arte, pois ela faz sentido. Gilka Machado, grande poetisa brasileira, nos diz que o mundo necessita de poesia e convoca aos poetas que cantem. Eu tomo a liberdade de ampliar esta ideia, afirmando que o  mundo necessita de arte e aceito o convite. De minha parte, o que estiver ao alcance das minhas mãos... será feito.  


Referências Bibliográficas:

MACHADO, Gilka. Poesias Completas.
STANGOS, Nikos. Conceitos da Arte Moderna.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

ENTRE A BAGUNÇA E A ARTE NOS DEPARAMOS COM A VIDA

por Flávia Hargreaves
contato: fmharates@gmail.com

Mesa de trabalho no curso "Conhecendo os materiais e aprendendo a usá-los". Foto: Flávia Hargreaves. 2016.

Há poucas semanas (06/11/16) tive a oportunidade de participar do evento em homenagem ao artista TUNGA (1952/2016) promovido pela AARJ (Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro). A proposta de trazer este nome para um evento de arteterapia partiu da arteterapeuta Marise Piloto e quero compartilhar com vocês que mais uma vez a arteterapia me aproximou de um artista contemporâneo. Não que fosse meu primeiro contato, mas a arteterapia afeta o modo como se dá esta aproximação, são outros olhos, outros ouvidos, outras mãos, outras relações.

Tunga está entre os artistas que mais marcaram a minha visita a Inhotim em 2012, ao lado de Lygia Pape (1927/2004), Helio Oiticica (1937/1980), Cildo Meireles (1948) e Adriana Varejão (1964), todos brasileiros [QUE BOM!!!]. Em Inhotim vi pela primeira vez uma obra da japonesa Yayoi Kusama (Japão. 1929), no ano seguinte sua exposição "Obsessão Infinita" estava no CCBB e talvez tenha sido uma das mais fotografadas e postadas nas redes sociais, uma festa.



Evento "[...] o mundo que a gente constrói e o mundo que a gente vive [...]". Foto: Flávia Hargreaves. 2016.

Mas voltando ao evento em homenagem a Tunga, cujo título é uma citação do artista, "[...] o mundo que a gente constrói e o mundo que a gente vive [...]", o fato de estar envolvida com este projeto me fez mergulhar em um novo universo de possibilidades, frases inspiradoras, novos olhares sobre a bagunça e, claro, sobre o fazer Arte na Arteterapia. E, novamente me vejo diante dos temas das minhas palestras do II Ciclo Não Palavra: "Buscando potenciais na Arte Contemporânea para práticas na Arteterapia" (18/07/16), que foi reapresentada no evento da AARJ (06/11/16) e o da palestra de hoje "O arteterapeuta e a Arte" (21/11/16). 

Deixo aqui registrado meu agradecimento à Ligia Diniz e à AARJ pela oportunidade e, em especial, às minhas companheiras neste passeio pela obra de Tunga Marise Piloto e as "Lucianas" Pellegrini e Menz.


Palestra de Flávia Hargreaves no evento  "[...] o mundo que a gente constrói e o mundo que a gente vive [...]". 
Foto enviada por Marise Piloto via facebook. 2016.

Nas palavras de Tunga:
“Não gosto da palavra performance, eu diria fenômeno. Nesta ocasião precisa, não se trata sequer de um fenômeno. É um pouco mais do que isso. Trata-se de fazer bagunça. E o que é bagunça? O mundo…é uma bagunça e a gente trata de dar ordem a essa bagunça. Dar ordem é achar as coisas. Então no meio de uma coisa confusa você acha, descobre, depois essa coisa volta a essa confusão. Quando você toma de novo, você redescobre essa coisa.” fonte: transcrição de entrevista disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=F6sofs_fEcY> acesso em 05/11/16.
"Tudo é capaz de ser repositório de sentido e de ter depositado um sentido novo. A arte tenta tornar a vida um pouco mais intensa, divertida e cheia de sentido. Dar sentido às coisas é a atividade de um poeta e um artista. O convite que a arte faz é que você pode fazer. Você também é artista.” fonte: citação postada no facebook por Luciana Menz em 05/11/16.
"A disciplina de fazer arte, poesia, pensar por essa via é exatamente a disciplina de saber quem sou eu. Você desenha para descobrir o que está pensando. Muitas vezes, faz uma obra achando que sabe o que está fazendo e depois vai ver que ela está lhe ensinando e lhe narrando dentro dela, o que está implícito nela - episódios da sua vida, da sua experiência, da sua existência. Episódios de vida que você não viveu, ou acha que viveu e não percebeu. Então, muitas vezes, são pequenas experiências que as pessoas podem não se dar conta e numa obra se revela. É essa tensão em relação à experiência de qualquer ordem, que faz com que a vida seja mais interessante.“  fonte: citação postada no facebook por Luciana Menz em 05/11/16.
Se você acha que estas citações são reveladoras para a Arteterapia está na hora de refletir sobre o papel da Arte na Arteterapia. Então, ARTETERAPEUTAS, arregassem as mangas porque VOCÊ também é um ARTISTA, FAÇA BAGUNÇA, DESCUBRA E REDESCUBRA COISAS, DESENHE PARA DESCOBRIR O QUE ESTÁ PENSANDO E SENTINDO, MERGULHE NA EXPERIÊNCIA E AGUARDE QUE A OBRA SE REVELE.

HOJE 21/11/16 ás 18:30h. Copacabana. Rio de Janeiro.
II Ciclo de palestras Não Palavra. O Arteterapeuta e a Arte
com Flávia Hargreaves. Inscrições: naopalavra@gmail.com

Caso tenha dificuldades em postar seu comentário, nos envie por e-mail que nós publicaremos no blog: naopalavra@gmail.com

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

OBSERVAÇÕES DA CLÍNICA – QUANDO O QUINTO ELEMENTO APARECE!

Por Maria Cristina de Resende
crisilha@hotmail.com

É muito comum na prática da Arteterapia usarmos os 4 elementos como disparador de processos alquímicos/psíquicos ou como pacificador de um momento de muita raiva – fogo – ou de muita emoção – água, por exemplo. Em agosto deste ano compartilhei um texto com vocês, caros leitores, acerca da origem, do uso e das associações terapêuticas com os 4 elementos.

Entretanto, na minha caminhada fui apresentada ao quinto elemento – o éter, que para muitos pode parecer estranho, ou ser associado ao elemento químico éter, mas aqui no nosso contexto ele será tratado como a manifestação cósmica do vazio. No corpo ele se manifesta em todos os espaços vazios, como narinas, boca, cavidade auricular, tubo gastro-intestinal, vagina, veias, útero, espaços entre células e na mente como o vazio psíquico em que nos deparamos em alguns momentos da vida e até mesmo como um desdobramento da depressão, de acordo com minha experiência no tratamento de pessoas com este diagnóstico.

É um elemento de extrema importância, pois sem esses espaços vazios em nosso corpo não é possível que aconteça o fluxo do sangue, que a comida percorra o caminho necessário para se transformada em energia e nos manter vivos, não haverá um espaço onde a nova vida se formará, crescerá e virá à luz.

Sem vazio não há movimento.

E como essa explanação nos ajuda na prática terapêutica da Arteterapia?

Quando um paciente vem até nós buscando terapia é comum que venha com a cabeça cheia de questionamentos, confuso, sem saber qual pensamento priorizar, não sabe responder o que o faz feliz nem tampouco reconhece seus desejos mais profundos. Isso nos mostra que há um monte de coisas amontoadas ocupando todos os espaços, como aquele quarto de serviço que temos em casa, que sem saber o que fazer com ele o ocupamos com tudo que não queremos ver, nem dar fim em nossa casa. Assim acontece com nossa mente, ocupamos com padrões, certos e errados, formatos sociais, culturais ou familiares que muitas vezes não nos cabem mais em determinados momentos de nossa vida, e não conseguimos esvaziar esses espaços, pois o Nada possui sua angustia.

É preciso aprender a se esvaziar para que o éter se manifeste e é esse o processo doloroso, não o vazio em si, pois para se esvaziar é preciso olhar de frente para tudo aquilo que fomos “entulhando” em nossa mente e em nossas emoções, vasculhar nos cantos de nossa alma o que quisemos esquecer – ou fingir que – para não dar conta, não elaborar, não digerir. E nesse processo tornamos presente tudo aquilo que achávamos que estava no passado. Entretanto só assim é possível atualizar as imagens, as cenas, a memória afetiva contida em cada lembrança, e então, ao olharmos, ao falarmos, ao coagularmos nos materiais podemos aos poucos nos esvaziar.

Conforme esse processo de esvaziar vai acontecendo, aos poucos brechas de luz vão entrando nos lugares antes trevosos e podemos ver que pequenos espaços vazios vão surgindo e dele todo o potencial de criação é renovado e potencializado. Em outro texto compartilhado aqui neste Blog, falei sobre os mitos de criação e do quanto nossa mente e nosso capacidade criativa está diretamente ligada ao reviver esse mito a cada dia em nossa mente mais profunda. Sendo assim, devemos lembrar que Gaia, Urano, Eros e Tártaro, na mitologia grega, vieram do Kaos, o vazio, o abismo de amplo espectro. Ou seja, tudo vem do vazio, sem ele não há possibilidade de renovação, de criação, nem fora de nós, nem dentro de nós.


Caso 1: O reflexo vazio, ainda que a primeira vista pareça uma carência de determinada imagem, é na verdade a possibilidade de ser qualquer imagem, exigindo do individuo uma pesquisa dentro de si mesmo do melhor e do pior a ser criado desse vazio, e assim, criar em si mesmo a imagem possível dentro de todas as experiências vividas e idealizadas.


Caso 2: Foi pedido para o cliente desenhar um disco e, dentro dele, distribuir os aspectos que vivencia na vida. Diante dessa possibilidade de perceber a área de atuação de cada aspecto em sua vida, escapa um não selecionado conscientemente, ou seja, um grande espaço em branco "sobra", e nele não há nome, forma, direção nem tampouco clareza de que aspecto ele estaria representando. Aqui o vazio se expressa de forma mais forte, como um "ato falho", onde, para surpresa do autor, não há forma, não há sentido nem direção, apenas pura potência.

Assim é o vazio, a pura potência, que despida de formas e pré-conceitos se expressa apenas como a possibilidade infinita de criar, seja a si mesmo ou ao mundo ao seu redor.


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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

MONDRIAN E ARTETERAPIA – Um diálogo para um estilo



Por Eliana Moraes
elianapsiarte@gmail.com
No último dia 24 de outubro, no II Ciclo de Palestras Não Palavra, apresentei o tema “Arteterapia: reflexões sobre a clínica”. Nesta ocasião, dentre outros pontos, abordei a importância de cada profissional buscar e desenvolver o seu estilo como arteterapeuta clínico.
Apurando minha escuta sobre os textos do grupo Não Palavra neste ano e a troca com outras arteterapeutas que frequentam nosso espaço nos cursos, grupo de estudos e supervisões, percebi que a clínica da arteterapia é um tema que tem nos atravessado, cada uma em sua singularidade. Partindo do princípio que a riqueza da Arteterapia está em sua pluralidade, cabe ao arteterapeuta buscar aquelas referências que lhe respondem em suas interrogações e aplicá-las em sua prática.
Quanto ao desenvolvimento do meu próprio estilo, compartilho que cada vez mais tenho me amparado na teoria da psicanálise para embasar a minha escuta sobre o paciente e o manejo clínico, e nas teorias e história da arte para me fornecerem instrumentalização teórica e prática quanto ao ato de criar no recorte da clínica arteterapêutica. A construção do estilo é por definição um caminho individual, porém acredito que da mesma forma que ouvir sobre o estilo de alguém que autorizo colabora para a minha construção, aqui compartilho um fragmento do meu percurso, caso possa colaborar para o desenvolvimento do estilo de outros. 
Hoje trago a experiência que vivi ao visitar a exposição “Mondrian e o movimento De Stijl: arte, arquitetura e design da Holanda no início do século XX” em cartaz no CCBB-RJ até 9 de janeiro de 2017. Exposição tão rica de conteúdos históricos e artísticos, que conta o quão é extensa a influência de Mondrian, também se revela muito inspiradora para nossa prática como arteterapeutas. Recomendo àqueles que residem no Rio de Janeiro que não percam esta oportunidade. Eu mesma pretendo voltar, pois penso que apenas uma visita não é suficiente para absorver tanta riqueza!
Mondrian e o Movimento “Stijl”



Piet Mondrian nasceu em 1872 na Holanda. Seus primeiros trabalhos se configuram como pinturas figurativas um tanto tradicionais, sob a influência de pintores pós-impressionistas como Vincent Van Gogh, Jan Toorop, Georges Seurat e Paul Cézanne. Entre 1912 e 1914 Mondrian residiu em Paris, aproximando-se de Pablo Picasso e do Cubismo, impulsionando-o em direção à abstração completa em 1917 até chegar em seu inconfundível estilo geométrico, o “neoplasticismo":


“... sua ênfase recaiu sobre   linhas verticais, horizontais e planos coloridos. Por meio de tais relações efêmeras, Mondrian reinterpretou as formas esféricas em termos de um jogo dinâmico entre forças interiores e exteriores, percebendo analogias mais profundas com oposições entre energia e matéria, espaço e tempo.” (texto extraído do folder da exposição) 


“De Stijl” (que, não por acaso significa estilo), revista fundada em 1917, tornou-se um movimento artístico e a mais importante contribuição da Holanda para a cultura do século XX. Fundada pelo escritor, crítico de arte, poeta e artista plástico Theo van Doesburg, propunha reunir o que havia de mais moderno em termos de arte, arquitetura, ofícios, música e literatura a cada mês.


Século XX, um século tão marcado pelas duas grandes guerras mundiais, deixou a humanidade estarrecida se perguntando sobre o que o homem era capaz de produzir para si.  Em meio ao caos, a destruição e o horror, muitos dos movimentos artísticos desta época buscavam na arte alguma forma de expressão, orientação e possíveis respostas sobre novos caminhos para a humanidade. Não diferente disto, De Stijl se mostraria em sua filosofia como o antídoto para o individualismo daquela época. A abstração radical revelaria o modelo e transformaria a vida em arte. As pinturas abstratas de Mondrian se mostravam como o modelo de uma nova consciência.


A exposição mostra como Mondrian e seus companheiros da revista De Stijl criavam a partir de uma visão de mundo e de uma arte que seria revolucionária.  Defendiam:
“... uma arte moderna que pretendia transcender divisões culturais e se transformar numa linguagem universal, baseada na pureza das cores primárias, na superfície plana das formas e na tensão dinâmica característica das telas mais conhecidas de Mondrian.”
“Em suas composições, o artista buscou realizar um equilíbrio e uma harmonia que se estenderiam a todo o espaço da área de uma construção e se firmariam como um modelo para as relações harmoniosas que imaginava para a vida dos povos num futuro utópico.” (texto extraído das legendas da exposição, grifos meus)
Em 2017 completa-se cem anos do lançamento da revista De Stijl, por artistas que chegaram às linhas retas e as cores primárias na busca de uma linguagem visual de aplicação mais universal, menos individualista. Podemos pensar que estes artistas eram movidos  por um desejo utópico de que assim o ser humano poderia se comunicar e se relacionar harmoniosamente apesar de tanta diversidade e pluralidade.

Não nos parece um desejo tão atual?
Arteterapia: História da Arte para quê?
Desde 2009 Flávia Hargreaves e eu nos dedicamos ao estudo da História da Arte e suas possíveis aplicações na prática da Arteterapia, dentre movimentos artísticos, artistas, suas biografias e processos criativos. Denominamos nossa pesquisa como “Arteterapia: História da Arte para quê?” e  a aplicamos em nossa prática, escrevemos e compartilhamos em palestras e cursos diversos.
A partir da inspiração em Mondrian e seu processo criativo, hoje destaco três possibilidades que levei para minha clínica. As imagens que ilustram este texto foram produzidas em atendimentos arteterapêuticos e sua publicação foi autorizada por seus autores.
Percebo que Mondrian dialoga em vários aspectos com a estrutura histérica a partir da teoria psicanalítica. Não cabe neste texto me aprofundar nesta relação pois demanda uma profunda articulação teórica. Mas em linhas gerais, Mondrian e seu intenso investimento para o “simplificar” e chegar aos elementos mais básicos como as linhas, as cores primárias e as relações entre elas, traz respostas à esta estrutura psíquica que muitas vezes apresenta questões terapêuticas como os excessos, a falta de limite, os transbordamentos e invasões, oscilações, misturas e falta de contorno, equilíbrio e organização. Neste trabalho a paciente produziu esta imagem enquanto refletia sobre suas questões terapêuticas: limites e prioridades.

A exposição também me inspirou para uma proposta que foi feita ao grupo arteterapêutico, a partir de uma das legendas sobre o processo de Mondrian até chegar às suas obras tão características:
“A esta altura, suas pinturas não faziam mais nenhuma referência à realidade e seus escritos também deixavam claro que o artista não desejava mais ‘expressar intenções’, mas apenas ‘evidenciar relações’. Fez experimentos em seu ateliê com pedaços de papel colorido que montava na parede, ficando muito satisfeito com o efeito de sua obra.” (Grifos meus)
Partindo do princípio que é objeto de um grupo terapêutico o pensar sobre as relações, inspirei-me em Mondrian ao propor que o grupo vivenciasse esta experimentação com pedaços de papeis coloridos que inicialmente seriam produzidos de forma coletiva e em seguida relacionados e organizados em uma composição individual. Foi interessantíssimo perceber como as questões levantadas pelas participantes estavam diretamente ligadas à suas biografias e desafios pessoais.

A exposição também aborda a ligação do neoplasticismo com a arquitetura e traz maquetes criadas por Theo Van Doesburg. Em sua filosofia:
“... os artistas da De Stijl não buscavam a padronização. Eles se empenhavam em encontrar soluções específicas e desafiadoras para determinadas pessoas, espaços ou circunstâncias, tanto na arquitetura como no mobiliário ou na pintura.” (texto extraído do folder da exposição, grifos meus) 
Para uma paciente que está se pensando sobre novas possibilidades e outras construções que lhe tragam mais satisfação profissional e pessoal, propus um trabalho com inspiração nas maquetes de Van Doesburg, pois neste contexto o processo criativo que desafia a saída do bidimensional para o tridimensional mostra-se disparador de grandes reflexões, além de mobilizador de movimentos físicos, cognitivos e psíquicos. 
 Maquete de Van Doesburg


Considerações Finais
Na última semana mergulhei em um profundo diálogo com Mondrian, um artista que olhos mais desatentos podem vê-lo como "sem graça" ou "bobo". Mas o processo de gestação deste texto, que se estende desde a minha primeira visita à exposição até esta publicação, foi um grande desafio para mim. Pude me ouvir o quão difícil foi selecionar e sintetizar em um breve texto tudo que Mondrian tem me tocado e me provocado a pensar. Percebi que este fato nada mais é do que o reflexo de uma das grandes lições que o artista me trouxe até o momento, que também coopera para meu estilo: quanta coisa é possível criar e influenciar a partir do que há de mais simples! Mondrian nos ensina que simplificar não é empobrecer, mas um processo (que sim, demanda muito trabalho) de limpeza de ruídos e excessos para a abertura do novo e quantas possibilidades couberem em nossas mãos!