Eliana Moraes - MG
naopalavra@gmail.com
Em 22 de abril comemoramos o dia
do arteterapeuta. Considero este um dia importante para estabelecimento da
profissão Arteterapia, uma homenagem aos profissionais que de forma tão
engajada se dedicam em sua formação continuada e exercício de uma prática cada
vez mais consistente, mas também, um dia para a conscientização da importância
que a Arteterapia tem como prática, teoria e profissão na atualidade.
Neste ano, para contribuir com
esta reflexão, no mês de abril ministrei a palestra “Contribuições do
arteterapeuta frente à sociedade do cansaço” em parceria com o Espaço
Crisântemo, e hoje trago uma resenha deste encontro tão reflexivo quanto potente.
Como base e estímulo disparador,
parti do livro “Sociedade do Cansaço” de Byung-Chul Han, um clássico sobre
a sociedade contemporânea e seus excessos, a relação com o trabalho na
atualidade e seu potencial de adoecimentos e esgotamento. É possível encontrar
também, no youtube, um documentário de mesmo nome, pelo qual o autor
reflete sobre os conceitos do livro aplicados, principalmente, mas não apenas,
na cultura coreana.
Han nasceu em 1959, na Coreia do Sul, mas migrou para a Alemanha,
onde estudou Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e
Teologia na Universidade de Munique. Desde 2012 Han é professor de Filosofia e
de Estudos Culturais na Faculdade de Artes da Universidade de Berlim e autor de
inúmeros livros sobre a sociedade atual.
O autor parte da reflexão sobre as patologias de nossos tempos:
Visto
a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é
definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal. Doenças neuronais como
a depressão, transtorno de déficit
de atenção com Síndrome de Hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade
limítrofe (TPL) ou Síndrome de Burnout (SB) determinam a paisagem
patológica do começo do século XXI. Não são infecções, mas infartos, provocados
não pela negatividade de algo
imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade. (HAN, 2017,
7-8)
Han irá desenvolver ao longo do texto sua definição para
negatividade e positividade, advindas de uma leitura histórica sobre a
sociedade:
A
sociedade disciplinar de Foucault, feita de
hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de
hoje. Em seu lugar, há muito tempo,
entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness,
prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e
laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a
sociedade disciplinar, mas uma sociedade do desempenho. Também seus
habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos
de desempenho e produção. São empresários de si mesmos... (HAN, 2017,
23-25)
Este é o caminho denunciado por Han: passamos de uma “sociedade
disciplinar” descrita por Foucault em seu tempo, para uma “sociedade do
desempenho” descrita pelo autor. Desta forma, não somos mais “sujeitos da
obediência” e sim “sujeitos do desempenho e produção”. E assim, os conceitos de
negatividade e positividade nos faz mais sentido:
A
sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela
negatividade da proibição... [Na]
sociedade de desempenho... O poder ilimitado é o verbo modal positivo da
sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa
precisamente o caráter de positividade... No lugar da proibição, mandamento ou
lei, entram projeto, iniciativa, motivação. A sociedade disciplinar ainda
está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes.
A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados.
(HAN, 2017, 23-25)
Em outras palavras, antes o que nos norteava era a negatividade da
proibição, hoje migramos para a positividade de um poder ilimitado. Assim,
também deslocamos as produções de sujeitos marginalizados: dos loucos
delinquentes (tão bem descritos com Foucault em sua vasta literatura) para os
depressivos e “fracassados” de nossos tempos.
Ao estudar esta parte do texto, uma fala tão atual e recorrente na
minha escuta de pacientes e alunos me saltou à memória: “Não me sinto
pronto, ainda não aprendi o suficiente.”
O coração do livro está na descrição da “liberdade paradoxal” que
que o sujeito do desempenho se encontra, sem dela ter consciência:
O
sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a
trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim,
não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele
se distingue do sujeito da obediência. A queda da instância dominadora não leva
à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam.
Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre
coerção de maximizar o desempenho. O
excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais
eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o
sentimento de liberdade. O explorador é o ao mesmo tempo o explorado.
Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade
gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe
são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da
sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa
liberdade paradoxal. (HAN, 2017,
29-30)
É neste contexto que o autor localiza as patologias da Depressão e
da Síndrome de Burnout, sintomas da atualidade que devem ser fonte de
profundos estudos para terapeutas que os recebem em seu setting:
Alain
Ehrenberg localiza a depressão na passagem da sociedade disciplinar para
a sociedade de desempenho... O que nos torna depressivos seria o imperativo
de obedecer apenas a nós mesmos. Para ele, a depressão é a expressão
patológica do fracasso do homem pós-moderno em ser ele mesmo... a sociedade de
desempenho, que produz infartos psíquicos... A Síndrome de Burnout não
expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida... O que o torna
doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo
do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna
do trabalho. (HAN, 2017, 26-27)
Cabe destacar aqui que a descrição desta forma de “trabalho” não
se aplica apenas no campo profissional. O imperativo do desempenho se aplica na
perspectiva do trabalho mas muito além dela. A demanda por excelência ou
“vontade de 100%” (Frankl) pode acontecer em qualquer atividade que o sujeito
pode se dedicar, seja um aprendizado, uma atividade física, um hobby, inclusive
seu período de férias ou entretenimento.
Han nos alerta que este excesso de positividade tem um efeito
direto em nossa capacidade de atenção:
O
excesso de positividade se manifesta também como excesso de estímulos,
informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e
economia da atenção. Com isso se fragmenta e destrói a atenção. Também a
crescente sobrecarga de trabalho torna necessária uma técnica específica
relacionada ao tempo e à atenção... A técnica temporal e de atenção multitasking
(multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório... Trata-se antes
de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em
estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para
sobreviver na vida selvagem...
Essa
atenção dispersa se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas
atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância
bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa
de ser importante para um processo criativo. (HAN, 2017, 31-33)
Apesar de nos descrever um cenário um tanto pessimista, Han também
nos apresenta um caminho de esperança. Esse caminho se dá através da
contemplação:
...
[O] aprofundamento contemplativo... Os desempenhos culturais da
humanidade, dos quais faz parte também a filosofia, [e a arte], devem-se a uma atenção
profunda, contemplativa. A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível
uma atenção profunda...
Com
o desaparecimento do descanso, teriam se perdido os “dons do escutar
espreitando” e desapareceria a “comunidade dos espreitadores”... O “dom de
escutar espreitando” radica-se precisamente na capacidade para a atenção
profunda, contemplativa, a qual o ego hiperativo não tem acesso. (HAN, 2017,
32-34)
Espreitar significa observar atenta e ocultamente, espiar,
perscrutar, esquadrinhar, intuir, prever, adivinhar. Para Han, o “escutar
espreitando” é um hábito que vem se perdendo. Mas extraímos de seu texto que um
caminho possível no meio deste cenário coletivo seria o “elemento
contemplativo”:
Só
o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas
ou estados de duração escapam à hiperatividade. Paul Cézanne, esse mestre da
atenção profunda, contemplativa, observou certa vez que podia ver
inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção
profunda. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos,
mergulhando nas coisas...
Sem
esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá pra lá e não
traz nada a se manifestar, mas a arte é uma “ação expressiva”. O próprio
Nietzsche... Sabe que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela
for expulso todo elemento contemplativo: “Por falta de repouso, nossa
civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos,
isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções
necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer
em grande medida o elemento contemplativo.” (HAN, 2017, 36-37)
Em um capítulo do livro chamado “A pedagogia do ver”, Han nos revela
que:
A
vita contemplativa pressupõe uma pedagogia específica do ver. No Crepúsculo
dos ídolos, Nietzsche formula três tarefas, em vista das quais a gente
precisa de educadores... Aprender a ver significa “habituar o olho ao
descanso, à paciência, ao deixar-aproximar-se-de-si”, isto é, capacitar o olho
a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento. Esse
aprender-a-ver seria a “primeira pré-escolarização para o caráter do
espírito”. (HAN, 2017, 51)
Contribuições da Arteterapia frente à
Sociedade do Cansaço
Contemplar significa o ato de concentrar longamente a vista, a
atenção em algo. É uma profunda aplicação da mente em abstrações. Uma admiração,
meditação, reflexão.
É possível entrarmos em estado de contemplação através da
natureza, da espiritualidade e... da arte. E aqui está o fio de ligação entre o
cenário atual descrito por Han e os potenciais arteterapêuticos. Já em um
primeiro momento a Arteterapia nos promove a aproximação com a arte como
fruidores, o “aprender a ver”, a contemplar.
Mas em especial, ela nos promove a aproximação com a experiência
do fazer arte, o contato íntimo e pessoal com os materiais, o processo criativo
e formação de imagens. O fazer criativo nos promove um convite ao demorar-se,
ao aprofundamento, à experiência estética, além do autoconhecimento e a
ressignificação de comportamentos e hábitos coletivos que, sem a devida
crítica, nos levam a adoecimentos psíquicos. O “elemento contemplativo” oferecido
e sustentado cotidianamente pela Arteterapia, eis sua contribuição frente à
Sociedade do Cansaço.
Para concluir esta reflexão, trago uma expressão artística me
soprada ao ouvido por uma terapeuta, participante assídua dos eventos do Não
Palavra. Entendo que esta música descreve a pausa necessária aos “sujeitos do desempenho”
e que tais reflexões podem ser geradas e estimuladas no contato com a arte e
com a Arteterapia.
Pausa
5 a seco
Onde eu possa descansar daquilo tudo que já
sei
De todo ouro que busquei
Do vício de me reinventar
Onde eu possa resgatar a dádiva de ser ninguém
De nunca mais falar de mim
Procuro esse lugar
Pausa para respirar no permanente vir a ser
Do desamparo de não ter
Do desespero de esperar
Pausa para repensar o que merece me mover
E esse lugar, se um dia houver
Eu chamarei de lar
E quando um dia voltar a perceber
A pulsação se acelerar
Eu voltarei a percorrer
O mar aberto do querer
Sem nunca esquecer pr'onde posso voltar
Bibliografia:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, RJ.
2017.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"