segunda-feira, 20 de junho de 2022

LITERATURA E DIVERSIDADE – A FUNÇÃO SOCIAL DA BIBLIOTERAPIA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O DEBATE


Por Katia Santos - RJ

kreginapsi@gmail.com 

O presente artigo, através de pesquisa bibliográfica, objetiva mostrar que a Biblioterapia possui uma função social relevante e que através da Literatura, temas como o da diversidade, podem ser desenvolvidos a partir de encontros biblioterapêuticos, gerando conhecimento, empatia, escuta e afetuosidade, de maneira ética e respeitosa. Considerando que a Biblioterapia tem como base fundamental de seu trabalho, a utilização da palavra no universo literário, entendo que é relevante iniciar o texto, a partir do significado da palavra “diversidade”. Diversidade, diferença, variedade, pluralidade etc., é um conceito fundamental para o estabelecimento da vida, em seus variados e maravilhosos aspectos, em um mundo rico em estruturas e pessoas que se destacam, justamente por suas singularidades e especificidades.

A diversidade se caracteriza por registrar tudo aquilo que possui múltiplas facetas e que, em função desta multiplicidade, se diferenciam entre si. Assim, podemos pensar nas diferentes formas de diversidade, ou seja, a cultural, a biológica, a étnica, a linguística, a religiosa etc. Em função desta pluralidade de humanos e não-humanos, acabamos por vivenciar situações que, infelizmente, traduzem o que podemos chamar, na falta de um termo melhor, de preconceito, ou seja, um conceito julgado previamente, sobre algo ou alguém, que na concepção do outro, por ser diferente, não pode ser validado e confirmado como elemento de existência e/ou subjetividade, gerando muitas vezes, a discriminação.


Em termos conceituais, podemos distinguir ainda preconceito de discriminação. O preconceito está relacionado a questões afetivas, a uma preferência por um grupo em detrimento de outro. A discriminação, por sua vez, consiste em um comportamento. Na discriminação racial, portanto, pessoas que fazem parte de grupos raciais não dominantes (p. ex., pretos e pardos) são tratadas de forma distinta em virtude de sua cor da pele. (SACCO, COUTO, KOLLER, 2016)

 

Dentro deste contexto, podemos perceber uma categoria de preconceito caracterizada por ocorrer em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, as atitudes, práticas e comportamentos sociais etc., o que é o caso, entre outros, de pessoas deficientes, mulheres, pessoas obesas e a comunidade LGBTQIA+, ou seja, minorias que não se enquadram nas expectativas estéticas hegemônicas, em que padrões pré-estabelecidos caracterizam o outro como “diferente”. Em contrapartida, é verificada também. outra forma de preconceito, ou seja, quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para sofrer as suas consequências, como no caso da população preta, das comunidades indígenas, de grupos de imigrantes, quilombolas, refugiados, ciganos etc.

Há séculos, grupos sociais vistos como diferentes, sofrem exploração e são segregados, visto que passam a não constituir o universo do “nós”, mas sim do “eles”, numa atitude desumanizadora e excludente, em que lhes é imposta a distância de suas culturas e de suas ancestralidades. Em função desta realidade, podemos constatar o desrespeito e a humilhação de indivíduos pertencentes a esses grupos, que chegam a procurar a devida adequação social, para terem a sensação de serem inseridos e aceitos. É o caso, por exemplo, de algumas mulheres pretas, que insistem em alisar seus cabelos, para se sentirem valorizadas com os parâmetros estéticos determinados pela cultura ocidental branca. Em diferentes produções literárias, voltadas principalmente para o público infanto-juvenil, vários escritores já expressam suas preocupações e ideias a respeito deste assunto, em função das novas gerações. Podemos citar um trecho do livro O cabelo de Lelê, de Valéria Belém.


Puxado, armado, crescido, enfeitado, torcido, virado, batido, rodado, São tantos cabelos, tão lindos, tão belos! Lelê gosta do que vê! Vai à vida, vai ao vento. Brinca e solta o pensamento. Descobre a beleza de ser como é. Herança trocada no ventre da raça. Do pai, do avô, de além-mar, até. (BELÉM,2012)

 

A produção literária, se alicerça na narração do mundo vivido, empírico, isto é, a partir da ficção ou de narrativas reais, apresenta ao leitor a possibilidade de, através do partilhar de experiências, despertar emoções, sentimentos, memórias e reflexões. Desta forma, a prática da Biblioterapia, seja a Clínica ou a de Desenvolvimento, abre uma gama de possibilidades para a conexão com esse público, que necessita desta mediação para alcançar novos horizontes cognitivos, psicológicos e socioculturais próprios. É nesse contexto que o outro pode ser visto e valorizado em sua alteridade.

 

É preciso lembrar que é tarefa dos mediadores do livro permitir que todos tenham acesso a seus direitos culturais. E que entre estes direitos figura, certamente, o direito ao saber e à informação em todas as suas formas. Figura também o direito ao acesso à própria história e à cultura de origem. Também o direito a se descobrir ou se construir com a ajuda de palavras que talvez tenham sido escritas do outro lado do mundo ou em outras épocas; com a ajuda de textos capazes de satisfazer um desejo de pensar, uma exigência poética e uma necessidade de relatos que não são exclusividade de nenhuma classe social, de nenhuma etnia. (PETIT, 2013)

 

O público adulto pode ser apresentado à muitos autores nacionais e estrangeiros, que têm como foco de suas escritas, o tema da diversidade e consequentemente, dos entraves e consequências que surgem a partir de sua evidência. Poderíamos citar no Brasil, Aílton Krenak, Kaka Werá Jecupé, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Daniel Munduruku, como alguns dos representantes da literatura dos povos originários brasileiros; e Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Carolina Maria de Jesus, Ryane Leão, Ana Maria Gonçalves, Patrícia Melo, mulheres a escrever sobre suas vivências e realidades, pretas, brancas ou de outras etnias, tão necessárias ao conhecimento do público brasileiro. No universo estrangeiro, temos também, uma lista enorme de escritores que abordam temas referentes às variadas formas de diversidade, como é o caso de Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Valter Hugo Mãe, Chimamanda Ngozi Adichie, Maya Angelou, Angela Davis, Toni Morrison, entre tantos outros excelentes contadores de histórias escritas em livros ou não, como é o caso das narrativas orais, que nos oferecem uma riqueza oriunda das vivências pessoais e o estímulo à fantasia e à imaginação.


Já vi gente a sair de dentro dos livros. Gente atarefada até com mudar o mundo. Saem das histórias e vestem-se à pressa com roupas diversas e vão porta fora a explicar descobertas importantes. Muita gente que vive dentro dos livros tem assuntos importantes para tratar. Precisamos de estar sempre atentos. Às vezes, compete-nos dar apoio. Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes. (MÃE,2015)

 Oferecer poemas, fragmentos de romances, contos ou crônicas, destes ou outros escritores, a um público carente de informação, é função social da Biblioterapia. É no contato com textos que abordem o discriminado e o discriminador, que os sujeitos irão vivenciar as etapas do processo biblioterapêutico, ou seja, experienciarão suas catarses, se identificarão com o que o texto lhes apresenta e refletirão sobre o que lhes afetou sobre o tema. Assim, também podemos atuar com os públicos infantil, juvenil e idoso, uma vez que existem livros, ditos infanto-juvenis, que se adequam perfeitamente, a qualquer tipo de participantes dos encontros de Biblioterapia. Neste campo, encontramos desde autores consagrados, até escritores iniciantes, mas com talentos indiscutíveis, tanto no Brasil, como fora dele. Posso citar Lucimar Rosa Dias, Madu Costa, Ziraldo, Valéria Belém, Ana Maria Machado, Solange Cianni, Bell Hooks e Emicida. dentre vários escritores.

É fundamental que os mediadores leiam e pesquisem sobre temas que não conhecem, entendem ou que lhes incomoda, para que possam perceber o que o outro desperta neles. Assim como, devem se colocar em suspense, ignorando por alguns momentos, seus valores e crenças, para se permitirem viver as histórias do outro, sem julgamentos a priori. É preciso buscar entender uma realidade diversa, que pode ser diferente ou até impossível de se perceber, caso não se tenha experienciado algo semelhante. Jamais entenderemos como é ter características diferentes das nossas, como ter uma ancestralidade específica. Mas podemos e precisamos tentar entender, nos questionando: Como se vive isso? Como se sente isso? Como isso afeta uma realidade? Logo, a Biblioterapia tem uma função social relevante e pontual. Ela possui ética, escuta, afetuosidade e empatia.

Assim, é fundamental que o mediador de Biblioterapia, tenha um acervo lido e estudado, a respeito de temas tão relevantes. É preciso, dentro dos diferentes títulos deste repertório, que se possa oferecer e perceber aqueles que, antes de tudo, tocaram ao profissional que os vai levar ao público e que, em conjunto com outras possíveis dinamizações no encontro, tragam novas ideias, esclarecimentos e, acima de tudo, emoções e memórias, desencadeadoras de processos afirmativos e inovadores, para o enriquecimento da subjetividade dos participantes. A partir dos textos, dos silêncios, das narrativas orais e da interação dos envolvidos, começam a emergir histórias que se encontravam escondidas e vão dando lugar a sonhos, fantasias e esperanças, à grupos de pessoas que necessitam contar sua própria história ressignificada. Essa mudança de olhar oferecida pela Biblioterapia, aliada à empatia, ajuda o sujeito a se reaproximar de seu mundo, de sua essência, de sua arte e de suas origens, contribuindo para a transformação pessoal e fortalecendo os diferentes contatos e vivências.

 

Referências

BELÉM, V. O cabelo de Lelê. Rio de Janeiro, IBEP,2012.

MÃE, V. H. Contos de cães e maus lobos. Portugal, Porto Editora, 2015.

PETIT, M. Leituras: do espaço íntimo ao espaço público. São Paulo, Editora 34, 2013.

SACCO, A. M., COUTO, M. C. P. P., KOLLER, S. H. Revisão sistemática de estudos da psicologia brasileira sobre preconceito racial. Temas em Psicologia24(1), 233-250., 2016.

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Sobre a autora: Katia Regina dos Santos


Formação: Psicóloga Clínica com orientação em Gestalt Terapia, graduada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Pedagoga, Bióloga, possui Especialização em Psicopedagogia, Formação em Biblioterapia, Pós-Graduanda/Especialização em Biblioterapia e Mediação da Leitura Literária, cursando Formação de Casais e Famílias em Psicoterapia na Abordagem Gestáltica. Acredita que através da palavra, seja na psicoterapia ou na utilização da Literatura, o sujeito consegue se descobrir e encontrar a liberdade.

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