Por Tania Salete – RJ, atualmente
residindo em Fortaleza CE
taniasalete@gmail.com
“Os loucos são como
beija-flores:
nunca pousam, ficam a mais de
dois metros do chão”.
Bispo do Rosário
INTRODUÇÃO:
No mundo
midiático em que estamos imersos, a sede pela última notícia é real e constante.
Todos buscam novas e, de preferência, boas notícias. “Boas novas” ou “boas notícias” é o que
significa a palavra Evangelho, derivada do grego, euangelion (eu,
bom, -angelion, mensagem). Toda obra do Bispo do Rosário na verdade
representava a sua boa notícia para humanidade.
Artur Bispo do
Rosário foi classificado como “esquizofrênico-paranoico” em dezembro de 1938,
aos 29 anos, depois de peregrinar pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, com
destino à Igreja da Candelária, antes, porém, passando por todas as igrejas da Rua
Primeiro de Março, terminando no Mosteiro de São Bento, para apresentar-se
aos monges seu “Evangelho, as boas novas” da qual foi incumbido, pelas “vozes”,
pois proclamava-se Jesus Cristo, tendo em vista que ambos possuíam “a
mesma missão na terra”.
Bispo foi
chamado “pelas vozes” para reconstruir um mundo em miniatura com as próprias mãos,
(uma espécie de inventário do mundo) antes do terrível dia do juízo. Era uma
missão urgente e demandaria muita dedicação, tenacidade, persistência e resistência.
E foi assim que este homem extraordinário concebeu sua vasta e riquíssima obra
durante os 50 anos de “aprisionamento” na Colônia Juliano Moreira, em
Jacarepaguá, Rio de Janeiro, onde atualmente abriga o Museu Bispo do Rosário de
Arte Contemporânea.
A vida e obra
do Bispo do Rosário já foi amplamente estudada, resultando em teses de
mestrados, doutorado, peças de teatro, inúmeras exposições, documentários,
filmes e livros, debates, e tantas outras discussões, devido ao impacto que
causa e pela importância para a Arte Contemporânea.
Dentre a vastidão
e diversidade da obra do Bispo, desejo realçar o protagonismo do bordado, como recurso
e ferramenta de arraigamento à vida e preservação de alguma forma de saúde
mental.
BREVE
BIOGRAFIA:
Bispo
nasceu em Japaratuba, Sergipe, e foi adotado
por uma família de fazendeiros de cacau (possivelmente os donos da plantação
onde seus pais trabalhavam), onde aprendeu a ler e escrever.
Em 1925,
matriculou-se na Escola Aprendizes Marinheiros de Sergipe, servindo por nove
anos. Em 1928 também atuou como pugilista, chamando atenção da imprensa tanto
pela violência quanto pela capacidade de suportar golpes por tempo maior. Foi dispensado
por indisciplina.
Em 1933 foi contratado pela Light
& Power como lavador. Ainda lutava boxe, mas sofreu uma lesão no pé,
impedindo-o de continuar carreira.
Em 1937 foi
demitido da empresa por desobediência e por ameaçar seu superior. Nesta época,
conheceu o advogado José Maria Leone, que o representou judicialmente e conseguiu
um acordo com a empresa. Bispo foi acolhido pela família de Leone e passou a
ser um empregado doméstico, encarregado de todo tipo de serviço, embora não
quisesse ser remunerado em espécie. Preferia só a alimentação e moradia como
pagamento. Foi guarda-costas do José Maria, durante seu breve período na
carreira política e esteve com a família até seu primeiro surto psicótico ou “sua
visão da missão”.
Tendo fracassado na tentativa de ser “reconhecido” pelos padres da
Igreja São José, Bispo foi levado para hospital psiquiátrico da Praia Vermelha,
Botafogo/RJ e recebeu o diagnóstico de esquizofrenia-paranoide. Algumas semanas
depois, foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, onde passou maior parte
da sua vida.
INÍCIO DAS PRODUÇÕES
Antes
de sua reclusão definitiva na Colônia Juliano Moreira, Bispo prestou serviços
na Assistência Médica Infantil de Urgência (AMIU), onde sua arte chamou atenção
do pediatra Avany Bonfim que relata:
“Espantei–me com o sem–número de miniaturas que ele fabricara em seu
isolamento esquizofrênico. Eram
navios de guerra, automóveis, galardões, mantos, estes em veludo,
policromicamente bordados à mão. Vi também dois ou três caixotes cheios de
plaquetas de flandres, que ele recortava das latas de leite em pó. Tais
plaquetas eram picotadas a prego, contendo os nomes das pessoas que ele
conhecia. (…) Nos
caibros ele armazenava os carretéis e demais apetrechos do seu artesanato
misterioso que ele exerceu na clínica por quatro anos”.
Nesta época, já com 50 anos, como alguns episódios
relacionados a “religiosidade” se intensificaram e foi necessária uma nova
internação. O médico relata que foi preciso uma certa logística em relação a
mudança do “acervo” artístico que já existia: “Tivemos que fretar um caminhão para transportar toda a produção
armazenada no sótão”.
Bispo
foi “etiquetado” como paciente número 01662, do pavilhão 10, destinado aos
doentes “perigosos”. Dono de um temperamento forte, Bispo foi nomeado “xerife”
do pavilhão. Um dia, por excesso de truculência para controlar um paciente, foi
punido com período de três meses no confinamento. Justamente durante este
tempo, ele escutou uma voz que ordenou que ele se isolasse a fim de realizar a
sua tarefa: “representar” os materiais existentes na Terra para o uso do homem.
Ele obedeceu e ficou confinado durante sete anos construindo a maior parte de
seu acervo.
Interessante
destacar que de seus ofícios anteriores, Bispo foi dispensado justamente por
desobediência, insubordinação aos superiores, entretanto foi bastante cordato
às vozes que ordenara tão difícil tarefa, exigindo dele grande submissão.
Nos primeiros
trabalhos, Bispo utilizou geralmente utensílios do cotidiano da Colônia, como
canecas, botões, colheres, caixas de madeira, garrafas plásticas, calçados,
pentes, objetos de cozinha e uma infinidade de outros materiais, tidos como
lixo ou refugo. Interessante perceber que havia uma organização, uma
preocupação em catalogar, ordenar, organizar por função, cores ou semelhança.
“Sua obra consiste numa
grande coleção de objetos que ele reuniu, teceu, organizou, classificou, como
um grande arquivista que coletava pedaços da vida cotidiana para levá-los à
luz, no reino dos céus. Muitos dos objetos que colecionava e organizava
criam grupos tipológicos da vida cotidiana - que ele chamava de
"vitrinas" -, como se realmente quisesse mostrar para alguém que não
nos conhecesse o que usamos para beber, vestir, comer, construir, celebrar”. Frederico Morais, crítico e curador de arte.
Segundo
Frederico Morais, renomado crítico e curador de arte, “descobridor de Bispo”: “Enquanto viveu, Bispo do Rosário protegeu sua obra como quem protege um
bem precioso, um tesouro, dificultando ao máximo o acesso a ela e recusando-se
a exibi-la”.
Além dos médicos e da equipe de funcionários, Frederico Morais e Hugo
Denizart foram alguns dos poucos a terem contato com a obra de Bispo do Rosário
no seu contexto de produção (seu atelier-cela). Aliás, havia uma espécie de
senha, uma pergunta curiosa feita por ele aos que desejavam penetrar em seu
espaço: “Qual a cor do meu semblante?”. Se gostasse da resposta, tudo certo,
caso contrário, encerrava a visita.
Tinha muito cuidado com suas obras e não
gostava de se separar das mesmas. Certa vez, Morais se ofereceu para organizar
uma exposição, mas Bispo recusou sua proposta. Não se via como artista e recusa
este título. Frequentemente dizia: “Não
sou artista. Eu escuto as vozes e as vozes me obrigam a fazer tudo isso. Se eu
pudesse não fazer nada, eu não fazia nada disso. Eu recebo ordens e sou
obrigado a fazer”.
Havia um
sentimento de obrigação e responsabilidade para além de algum prazer, pois em
seu confinamento voluntário trabalhava incessantemente por 12 a 16 horas.
Alimentava-se pouco, dormia pouco e fazia constantes jejuns.
ARTE E RESISTÊNCIA
Inusitada é a palavra
que vem à mente ao entrar em contato com os bordados do Bispo do Rosário, não
só pela singularidade de suas séries de estandartes e faixas, mas também pela
maneira como foram confeccionadas. Uma das características marcantes do bordado
é a possibilidade de desfazer, refazer, descoser as estruturas que aparentemente
estão prontas, rígidas e inflexíveis. É furar e deixar uma marca da imagem
desejada.
Na absoluta precariedade
e escassez de materiais, Bispo desfiava os uniformes azuis dos internos e, de
posse destas linhas azuis, bordava suas obras e que, segundo Flávia Corpa, esta
funcionava, também, como uma sustentação e ponte de vínculo social com
pacientes e funcionários que de alguma forma, o ajudavam a viabilizar sua produção.
Por outro lado, não se
pode ignorar que Bispo do Rosário, através de seu fazer artístico, principalmente
dos bordados, propôs uma espécie de “luta simbólica” contra o confinamento e as
limitações institucionais as quais estava sujeito, como ressalta Frederico Morais: “Arthur Bispo do Rosário (…) desconstruíra dois emblemas
poderosos da instituição manicomial – o uniforme azul do qual arrancava o fio
com que teceria sua obra, e as celas da prisão, transformadas em seu ateliê de
artista”.
E sobre esta espécie de resistência à sua situação manicomial, Cabañas diz: “Bispo, ao mesmo tempo em que
não coincidia com aquilo que a sociedade esperava dos insanos, também não se
adequou às demandas normativas das instituições psiquiátricas”.
Por assim dizer, Bispo do
Rosário encontrou na sua arte uma forma de driblar as práticas desumanas como
os choques elétricos e lobotomia, tão violentamente rechaçado pela Dra. Nise da
Silveira, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, também no Rio de
Janeiro. Segundo Carneiro, Bispo do Rosário:
“criou um universo lúdico de
bordados, assemblages, estandartes e objetos durante um período em que a
psiquiatria utilizava amplamente lobotomia, eletroconvulsoterapia e outros
tratamentos enérgicos para tentar controlar os surtos psicóticos. Bispo soube
contornar os mecanismos de poder no hospital e utilizou para criar suas obras
todos os materiais que podia encontrar”. Kaira Cabañas, professora de História da Arte
Global, Moderna e Contemporânea na Universidade da Flórida
SÍNTESE DE SUA OBRA:
O “Manto da Apresentação”
é considerado por Morais como sua “obra prima, a síntese mental e visual de sua
obra”, coberto por inúmeros bordados e representações do universo do Bispo do
Rosário. Embora para o Bispo este manto tivesse o propósito de estar bem
adequado para se apresentar a Deus no dia da sua “passagem”, também o usava nas
raras entrevistas, filmagens ou quando era fotografado. Não apenas esta peça,
mas os demais trajes que também bordou, como o “Fardão Azul”.
O “Manto da Apresentação”
é um aglomerado de suas obras, um entrelaçamento de suas criações. Sua
superfície é marrom, com inúmeras miniaturas de objetos bordados, franjas
amarelas nos ombros, utilizadas em uniformes militares, cruzadas por diversos
cordões coloridos na frente e nas costas. No interior da vestimenta, nomes de
mulheres que ele julgava serem merecedoras de subir aos céus ou que aceitaram
acompanhá-lo em sua jornada. A maioria dos nomes eram bordados em fios azuis
sobre um tecido branco formando uma espiral em direção à gola. Afinal, nomear é
também uma forma de se apropriar, de chamar ao pertencimento, de não esquecer.
Bordado são pontinhos de resistência.
Segundo Cruz, “...o modelo de bordado utilizado
no Manto é fortemente marcado pela tipologia usada em Japaratuba, na época das
Festas de Reis, quando as bordadeiras usavam a técnica para enfeitar
estandartes, mantos e trajes”.
Parte externa e interna do Manto da Apresentação
CONCLUSÃO
Artur Bispo do Rosário marcou definitivamente a
história da arte ao ser identificado como artista, mesmo jamais tendo
reivindicado este título. Marcou as instituições psiquiátricas porque depois de
sua aparição na mídia através de uma reportagem sobre as péssimas e precárias
condições destas instituições, intensificaram-se os debates e o clamor por uma
grande reforma na conduta e tratamento dos doentes institucionalizados. Sobre sua própria situação e a de seus pares,
Bispo tinha opiniões muito pessoais: “Os
doentes mentais são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do
chão”.
Nas palavras de Morais: “A doença mental para Bispo era circunstancial, pois sua arte
transbordava para ‘além da loucura’, mas apenas para quem vê”.
Sobre esta habilidade de enxergar além do
convencional, do que está posto, Flávia Corpas menciona: “Poderia ter sido o caso da “barafunda de objetos” que cercava Bispo do
Rosário ser vista apenas desta forma, não fosse a habilidade de Morais e outras
pessoas sensíveis que ajudaram a inserir definitivamente o Bispo na história da
arte”. Continua afirmando:
“...Não
é de se surpreender, então, que Morais tenha visto em Bispo do Rosário aquilo
que antes ninguém havia enxergado: seus objetos como obras de arte. Não posso,
diante da frase que acabei de escrever, deixar de pensar nas palavras do
próprio Bispo do Rosário: ‘Mas pra quem enxerga. Pra quem não enxerga, não dá
pé.'”
Estátua em tamanho natural de Artur
Bispo do Rosário em sua cidade natal, Japaratuba, em Sergipe, onde estão seus
restos mortais sobre uma base em mosaico com cacos de cerâmica.
BIBLIOGRAFIA
1 - MORAIS, Frederico, CORPAS, Flavia. Artur Bispo do Rosário – Arte além da
loucura - 1ª edição, 2013
2- Dossiê Arthur Bispo do Rosário – Setembro,
2012. Disponível em <http://www.bienal.org.br/post/351>
5 - CABAÑAS, Kaira Marie. A Contemporaneidade de Bispo. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202018000100047&script=sci_abstract&tlng=pt>
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Sobre a autora: Tania Salete
Graduação em fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia. Especialização em Arteterapia pela POMAR, Rio de Janeiro, atuando com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Atualmente residindo em Fortaleza.
Instagram: .instagram.com/caminhartes.arteterapia/
Blog: caminhartesarteterapia.blogspot.com/