segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O CONTO DE FADA COMO INSTRUMENTO TERAPÊUTICO


"A redenção das irmãs da cinderela"

Por Janaína de Almeida Sérvulo - MG
janainaservulo@gmail.com


 “Há um significado mais profundo nos contos de fada que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina.” (Schiller, poeta alemão)
“Contar histórias é um jeito de amparar as crianças em suas angústias e ajudá-las a nomear o que não pode ser dito. A ficção acaba sendo uma saída para que certas verdades se imponham.” (CORSO, 2006, p.18)
Os primeiros contos de fada escritos datam do século XVII, na França, são atribuídos a Charles Perrault e estão presentes na coletânea: “Contos da Mamãe Ganso”. Criados inicialmente para entreter adultos, com o passar do tempo, os contos de fada foram transformados e adequados à linguagem infantil.
Além dessa função de entretenimento, ouvir e narrar histórias pode ser um instrumento terapêutico na medida em que nos possibilita lidar com os conflitos internos e buscar soluções, assim como fazem os personagens fictícios. Nos contos, os locais mais estranhos e distantes são, ao mesmo tempo, familiares e nos levam para dentro de nós mesmos, suscitando questões existenciais importantes, como: o amor pela vida, o medo da morte, a inveja ou a necessidade de ser amado. Através deles, podemos experimentar os sentimentos de compreensão, esperança ou angústia, sem que tenham sido explorados racionalmente. Caminhando pela narrativa, percebemos que bruxas e monstros representam nossos próprios temores e dificuldades. O herói, muitas vezes frágil no início, deve passar por provas e desafios e enfrentar o mundo, assim como o ego necessita de várias experiências para integrar a personalidade.
As histórias desenvolvem o potencial criativo e estimulam a solução de problemas, uma vez que os heróis sofrem, lutam e triunfam, passando a mensagem que qualquer pessoa pode alcançar seu objetivo. Através da identificação com os personagens, é possível se reconhecer, ao mesmo tempo, pequeno e indefeso, mas também corajoso e destemido, pronto para superar os obstáculos e perdas da vida. Por isso, os contos antigos, sem autor determinado e que não especificam diretamente qual o tempo, o lugar ou quem são os personagens devem ser preferidos em relação aos que apresentam detalhes excessivos: “Era uma vez, num reino muito distante, uma princesa que tinha um segredo...”. A ausência de detalhes específicos abre espaço para a subjetividade de quem escuta a história. Cada um vai imaginar os detalhes e preenchê-la com características e angústias próprias, permitindo que questões pessoais sejam trabalhadas.



"Encenando o personagem favorito"
Na prática, podemos utilizar os contos de fada de maneiras diversas: apresentando vários contos e pedindo à pessoa que escolha aquele com o qual se identifica, ou trabalhando o conto preferido da infância, por exemplo. Outra alternativa seria observar o conflito que a pessoa esteja vivenciando e sugerir um conto cujo personagem esteja passando por conflito semelhante. A partir da história, propõe-se uma forma de expressão que seja adequada para trabalhar o conflito identificado. Isso pode ser feito através de desenho, pintura, modelagem, dramatização, entre outras: por exemplo, desenhar o personagem com que mais se identificou. Desta forma, é possível observar como a pessoa se sente na própria história: como o vilão que é temido por todos, a princesa indefesa que aguarda a chegada do príncipe ou o herói destemido, que sai do isolamento para enfrentar seus obstáculos? Podemos também sugerir que seja representada uma cena marcante da história a qual, muitas vezes, tende a ser semelhante ao conflito vivenciado pela pessoa no momento. No conto “O Patinho Feio”, por exemplo, é possível trabalhar sentimentos de inadequação e abandono e promover o resgate da autoestima. No conto “Cinderela”, pode-se observar questões relacionadas à rivalidade fraterna, ao rompimento com a mãe para vivenciar seu processo de individuação, e à transcendência, a partir da autoaceitação.
Certa vez, atendi um garotinho que sofria com a separação dos pais e demonstrava um profundo sentimento de abandono, que procurava negar. Através do conto “João e Maria”, experimentou a sensação de ser deixado para trás, entrou em contato com as diferenças percebidas entre os pais (um mais permissivo e o outro mais exigente) e pôde experimentar seu lado herói, na medida em que precisava encontrar uma saída para fugir da “casa da bruxa”. Sugeri que, a partir desse conto, ele pudesse construir sua própria casa e depois confeccionar fantoches para representar sua família. Assim, ele pôde experimentar o sentimento de abandono, num ambiente protegido e seguro, e reconstruir-se no símbolo da casa, trabalhando a segurança e a confiança que seriam necessárias para seguir em frente. Ao representar sua família e, posteriormente, dramatizar cenas cotidianas a partir das emoções suscitadas pelo conto, ele pode ressignificar e elaborar questões que, até então, só conseguia negar.

"A casa de João e Maria" 
Isso tudo é possível porque os contos nos auxiliam a resgatar nossa própria história. Nós, como terapeutas, escutamos muitas histórias... E, à medida que apresentamos outras, com as quais as pessoas possam se identificar, possibilitamos a elas que se observem pela perspectiva dos personagens escolhidos e vivenciem o conflito de outra forma, conseguindo assim narrar suas próprias dores...
 Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.
A Equipe Não Palavra te aguarda!
Referências Bibliográficas
CORSO, Diana Lichtenstein. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
SOUZA, Suzana Maria Ortiz de. Os Contos de fadas e o processo de individuação nas crianças. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: http://www.arteterapia.org.br/pdfs/oscontosdefadaseoprocessodeindividuacao.pdf


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Sobre a autora: Janaína de Almeida Sérvulo

Graduada em Psicologia pela UFMG, com especialização em Arteterapia pela FAVI, em convênio com o INTEGRARTE.

Atua como psicóloga e arteterapeuta em clínica particular em Belo Horizonte-MG e na rede pública da região metropolitana. Experiência de mais de 15 anos com atendimento individual e em grupo a crianças, adolescentes e adultos.
Para conhecer mais sobre seu trabalho, visite a página do facebook: @artisticamente7
Este é o quarto texto de Janaína para o blog Não Palavra. 
Não deixe de conferir os anteriores!


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

GRANDES ARTISTAS NA PRÁTICA DA ARTETETERAPIA: EDWARD HOPPER



Por Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com

A prática da Arteterapia pode ser bastante enriquecida quando acionamos como estímulos projetivos as obras de grandes artistas nas mais variadas linguagens da arte. Isso se dá porque o artista é:


“‘um homem coletivo que exprime a alma inconsciente e ativa da humanidade’. No mistério do ato criador, o artista mergulha até as funduras imensas do inconsciente. Ele dá forma e traduz na linguagem de seu tempo as intuições primordiais e assim, fazendo, torna acessíveis a todos as fontes profundas da vida.” (SILVEIRA, 2007)

Sendo suas obras a forma traduzida pelo artista de conteúdos da alma inconsciente e ativa da humanidade, estas imagens possuem um grande potencial projetivo e na prática se mostram estímulos bastante acessíveis aos que chegam para a clínica da Arteterapia, sobretudo aqueles que chamo de “pacientes leigos”. 

Neste pensamento tenho me dedicado à pesquisa de artistas e suas expressões de conteúdos que fazem eco àquilo que escuto em minha clínica. Este repertório me compõe como arteterapeuta, acionando-o quando entendo que um artista possa servir como uma espécie de “interlocutor”, aquecendo o diálogo do paciente consigo mesmo em seu processo de autoconhecimento. 

Tenho me dedicado também à produção de conteúdos para o Não Palavra, em ambientes virtuais ou presenciais, que possam colaborar e instrumentalizar arteterapeutas a explorarem este estilo de trabalho. 

O protagonista de hoje é Edward Hopper, que me foi apresentado na escola de psicanálise que frequento e desde então tem atravessado minhas reflexões. 

Hopper: o pintor da solidão 


Edward Hopper (EUA, 1882-1967), foi um pintor, artista gráfico e ilustrador que ficou bastante conhecido por suas misteriosas pinturas de representações realistas da solidão na contemporaneidade. Em cenários rurais e urbanos, suas obras refletem sua visão pessoal sobre a vida moderna americana, em meados do século XX. Hopper viveu os tempos da Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão Americana de 1929 e a Segunda Grande Guerra, e naturalmente este contexto histórico influenciou grande parte de sua obra, que em geral mostra pessoas em cenários da vida cotidiana. 



“... Hopper traçou insistentemente em sua pintura a solidão do sujeito situado na margem, na beira, no umbral, no limiar em relação ao real. Um poderoso silêncio pode ser escutado em suas telas...

Precursoras do hiper-realismo norte-americano, suas telas são muito conhecidas e algumas se tornaram verdadeiros ícones da arte norte-americana... Hopper pinta o mundo humano com uma acentuada frieza, e seus personagens parecem estar absortos por uma espécie de falta de sentido... 


Em suas telas, não se vê vestígio de amor ou sexo. Entre os diferentes personagens há apenas convívio, e todos parecem estar diante de um supremo impacto. Além disso, todos parecem estar profundamente sós, mesmo quando partilham alguma atividade. Em seu livro sobre o pintor, Maria Constantino afirma que ‘as figuras solitárias que habitam as pinturas de Hopper parecem estar perdidas em pensamento’. Não há troca de olhares entre eles, nem de sorrisos.” (JORGE)

Embora Hopper tenha pintado cenas de seu cotidiano, sua obra nos impacta por  retratarem cenas extremamente atuais de um mundo contemporâneo em crise. Aqui me lembro de Kandinsky que se refere à sensibilidade e intuição singular do artista, tornando-o uma espécie de profeta da humanidade: 

“Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele. Ele vê o que será e o faz ver. Por vezes desejaria libertar-se desse dom sublime, dessa pesada cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das zombarias e do ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-la das pedras que a retêm e, com todas as suas forças, impele-a para a frente.... Aquele que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um profeta para os que o cercam.” KANDINSKY



Hopper faleceu em 1967 e não pôde acompanhar a evolução tecnológica e sociocultural que se deu nas últimas décadas e hoje podemos identificar. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, pensador da modernidade líquida, diz que “Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”, o que nos faz pensar a obra de Hopper de forma extremamente atual ao retratar pessoas alienadas em si mesmas, sem ligações afetivas, que mesmo na presença de outros mostram-se distraídas, desinteressadas por quem está ao seu lado, vazias, transparecendo em suas feições um enorme sentimento de solidão. 

Quantos de nós não podemos observar cenas como estas em nosso próprio cotidiano?


O arteterapeuta e a solidão nos tempos atuais 


“A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.” Vinícius de Moraes

A solidão, direta ou indiretamente, é um tema recorrente na clínica, sendo assim essencial que o terapeuta busque embasamentos históricos e coletivos que orientem sua escuta individual perante um cliente/paciente. Afinal somos todos sujeitos inseridos na cultura.

A arte, em suas mais variadas linguagens, e o artista em sua capacidade de ver além do óbvio, cumprem a função de perceber, dar forma, traduzir na linguagem de seu tempo e denunciar aquilo que o ser humano tem produzido para si, lançando o convite para a sua conscientização e responsabilização. 

Na clínica da Arteterapia,  o arteterapeuta pode ter como recurso a utilização destas imagens como espelhamento (estímulos projetivos) àqueles que se apresentam com a queixa de solidão. O artista e a obra servem como “interlocutores” no fluxo de pensamentos daquele sujeito, estimulando sua reflexão e elaboração. Mas sobretudo lançando o convite à conscientização do que Vinícius tão bem nomeou: a pior solidão é a do ser que se ausenta, se defende, se recusa e se encerra em si mesmo. Em seguida, o convite à responsabilização, por si, suas emoções e pelas relações que lhe compõem. 

Penso que o sair de si e oferecer afeto é um ato de resistência nesta contemporaneidade. Oferecer um espaço terapêutico em que os sujeitos possam levantar o olhar do estabelecido socialmente para enxergar outros possíveis, faz parte desta micropolítica. Promover e sustentar encontros entre pessoas, sobretudo estimulados pela arte, é ser agente de uma contracultura.  

Concluo registrando minha escuta para a fala de arteterapeutas da minha rede de interlocução que (se) perceberam o quão solitário pode ser o ofício do terapeuta se não buscar seus pares para trocas, debates, estudos e construção de conhecimento. Agradeço a companhia destas parceiras que tanto me compõem e deixo aqui o convite aos terapeutas que não encerrem-se em si mesmos e busquem em outros aquele suporte que todo terapeuta necessita para a sustentação de seu ofício.

Para saber mais sobre conteúdos como este, escreva para naopalavra@gmail.com e se inscreva em nossa mala direta. 


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Referências Bibliográficas:

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise: de Freud a Lacan. Volume 2: A clínica da fantasia.

KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte.

SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

RESGATANDO A SINGULARIDADE NO ENCONTRO DA ARTE E GESTALT





Por Rosangela Nery - RJ
rosanery1975@hotmail.com


O desafio

Mais do que um convite, encarei como desafio escrever para o blog “Não Palavra”. Eliana Moraes, idealizadora do blog e coordenadora do mesmo, alguém que admiro demais, e que me inspira muito, por falar com propriedade sempre que se propõe a isso e alguém que compartilho princípios de vida para além da profissão de Psicóloga.

A proposta


Embora não tenha a formação de arteterapeuta, fui e sou atravessada cotidianamente pela arte e pelas técnicas expressivas, que comecei a usar de forma intuitiva no meu trabalho com usuários do Instituto Phillipe Phinel, hospital psiquiátrico que embora ainda tenha uma estrutura hospitalar,  caminha para um serviço territorial, uma das propostas da reforma psiquiátrica, a partir da lei n@ 10.216/01. Com a ideia de regionalização, o instituto localizado em Botafogo, no Rio de Janeiro, funciona 24h como um serviço de porta aberta, atendendo demandas de vários lugares da cidade e ainda outros estados. Conta com profissionais de diversos saberes,  alocados em diferentes setores do Instituto que se reúnem, e juntos pensam na melhor forma de intervir com o paciente em tratamento: no ambiente familiar, social, ou através da inserção em oficinas de renda, de arte e outros. O objetivo dessa nova política de organização é não só amenizar o sofrimento agudo de um paciente internado, em crise, mas também possibilitar que ele volte ao seu círculo social, à sua vida.


Neste contexto me dediquei ao Box de Atividades, presente no pátio de convivência. Um lugar pequeno, simples, mas, de grande potência e expressão de subjetividade. A abordagem que trago para dialogar com a Arte é a Gestalt Terapia, que entendo como uma permissão para ser criativo e que traz como ferramenta metodológica básica o “experimento”.

Durante a internação o paciente experimenta diversas sensações que parecem banais, mas que são extremamente limitantes para que o mesmo possa lidar com situações da vida cotidiana. O medo e a angústia os atormentam de uma forma que os deixam paralisados.

Caso clínico: da compulsão à criação - a arte ressignificando


“O que tem pra fazer hoje?” era a fala constante de Laura*, enquanto olhava para os lados a procura de  diversas possibilidades já apresentadas anteriormente no espaço do Box de Atividades. Ela apresentava um quadro compulsivo, movido por impulsos, que a fez internar em julho de 2014, e a fazia sentir-se sempre prejudicando sua vida por agir dessa forma. Ao chegar ao Box vivenciava um ciclo de perdas e ganhos, que insistia em se repetir fazendo-a não acreditar mais em si mesma. Diante da atividade sugerida ela dizia: “ vou fazer o mais fácil “ , “quero fazer uma casa, mas é difícil” “não consigo”, e penso o quanto realmente deve ser difícil, pois Laura é designer de produtos, o que a torna mais exigente com suas possibilidades. Nesse momento pensava e falava de suas escolhas, e que o caminho que vinha escolhendo não era o caminho que deseja pra si. Percebi que Laura está “sem contorno”, então apresentei à ela as mandalas para colorir, algumas com grau de dificuldade mais avançados, (como por eles é assim denominado) , por se tratar de curvas ou figuras mais complexas.  


Laura passou a buscar de forma também compulsiva a pintura de mandalas, sempre com o relato de que era uma forma de aplacar sua ansiedade, relembrar algo significativo para ela e também por ocupar o seu tempo ocioso ali na internação. Laura chegou a pintar 30 mandalas em apenas uma  manhã, o que me fez começar a pensar em outras possibilidades para ela. 

Nesse momento, foi possível inserir a proposta do desenho livre ,  que fez Laura novamente experimentar a beleza de suas criações já fornecidas para o mundo do designer, assim como também ouvi-la falar de suas filhas que a abandonaram nesse lugar frio e inóspito, sem que ao menos lhe dessem um telefonema. Laura experimentava uma grande angústia e pôde falar sobre isso e do quanto estava doendo se sentir sozinha num lugar tão cheio de  gente.  



Laura esteve internada no Phinel por longos 12 meses, um período de enfrentamento de medos, angústias e impossibilidades de nem pensar em sair sozinha. Depois de um tempo (8 meses), Laura quase não ia mais ao Box, a não ser para me dar bom dia e perguntar como eu estava e ainda dizer que sentia falta de conversar comigo , mas que naquele momento estava gostando muito de frequentar o CAIS**, e interagir com outros usuários  que já estavam na porta de saída da internação, assim como ela. Laura não podia pensar na possibilidade de sair sozinha, nem ao menos de ir comer no refeitório, porém através  dos nossos passeios externos, onde de uma forma muito carinhosa me comprometi em  ficar sempre ao seu  lado  e que se precisasse de alguma coisa , ali eu estaria. Laura passou a perceber o quanto era possível retomar sua autonomia. Como muitos outros, teve e tem um caminho a percorrer. Hoje encontra-se morando num hostel, continua frequentando a cooperativa e precisou realmente seguir sua vida sem suas filhas. Meu trabalho com Laura, além de possibilidade de criar vínculo, foi de mostrar-lhe que o medo pode paralisar, mas também pode motivar, e foi essa motivação que construí junto com Laura, nesse processo de ressignificação. 


Pela fluidez e espontaneidade que ambas, Arte e Gestalt se entrelaçam, caminhando na mesma direção. Vejamos o que afirma Rhyne (2000), sobre essa totalidade:  


"O respeito e a genuína curiosidade pela singularidade de cada um, a postura fenomenológica e não-interpretativa na leitura dos trabalhos produzidos, a importância de observar e relacionar-se tanto com a linguagem das formas quanto com a linguagem simbólica, e tanto com o processo quanto com as reflexões posteriores sobre este processo, a ênfase nos princípios da Psicologia da Gestalt de procurar perceber a configuração total das partes que constitui um todo ao em vez de cada parte isoladamente, a crença no poder da atividade expressiva de ser tanto um processo integrador como fonte de aprendizado sobre si mesmo." 


*nome fictício da paciente citada 


** Associação dos amigos do CAIS, cooperativa criada em 1997, que atua na área de saúde mental e funciona dentro do Instituto Phillipe Phinel. Tem por finalidade contribuir para a transformação da cultura que estigmatiza a loucura, promovendo a inclusão social do diferente e o exercício da cidadania. Sua missão é desenvolver e financiar projetos sócio-reabilitativos que promovam a capacitação profissional dos usuários de saúde mental, estimular e impulsionar ações que visem o crescimento do Cais (hospital-dia do Instituto).


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Referência Bibliográfica:


A arte como viés no processo ressignificação do paciente com transtorno de ansiedade. Disponível em:
http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_47085/artigo_sobre_a-arte-como-vies-no-processo-de-resignificacao-do-paciente-com-transtorno-de-ansiedade-


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Sobre a autora: Rosangela Nery




Servidora pública municipal na função de técnica de enfermagem do IMPP, lotada atualmente no setor infanto juvenil.

Psicóloga, pós graduanda em Ciência, Arte e Cultura pelo IOC - Instituto Oswaldo Cruz - FIOCRUZ e pós graduanda em Saúde Mental e atenção Psicossocial pela ENSP - Escola Nacional de saúde pública - FIOCRUZ.

Atendimento individual à adolescentes e adultos no Espaço SER- Sentir, Experimentar e Recriar em Copacabana.







segunda-feira, 4 de setembro de 2017

CONTRIBUIÇÕES DE KANDINSKY AO ARTETERAPEUTA

Por Eliana Moraes - (MG) RJ
naopalavra@gmail.com

Nos últimos tempos tenho pensado e estimulado aos que estão à minha volta para que pensemos sobre o arteterapeuta e sua função no social atual. Em um texto anterior denominado “Uma arte que nos salve da loucura destes tempos, Dadaísmo e Arteterapia” (CLIQUE AQUI) relatei minhas articulações pessoais sobre como o movimento dadaísta poderia dar embasamento para o ofício do arteterapeuta.
Sincronicamente, há poucas semanas decidi reler um livro que abriu as portas para uma nova fase da minha vida profissional, em meados de 2013, quando efetivamente me encontrei na Arteterapia: “Do espiritual na arte” de Wassily Kandinsky. A releitura deste livro se deu pelo desejo de retomar os estudos sobre o caminho para a abstração, tão característico do artista, e sua teorização sobre as potências das cores e das formas. Estudo que me servirá como embasamentos para as palestras deste semestre e textos que estão em fase de gestação.
Entretanto, como é interessante reler um livro, passado algum tempo de amadurecimento profissional e pessoal! Meus olhos foram capturados pelos primeiros capítulos desta riquíssima obra em que Kandinsky pensa sobre o lugar do artista e da arte, na história e no coletivo.
Tenho me dedicado à conscientização do arteterapeuta como portador da sensibilidade tão singular do artista, como aquele que capta, percebe, compreende, expressa e traduz para as mais variadas linguagens da arte as questões mais profundamente humanas, mas especialmente aquele que exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território “sagrado” para que ela aconteça. Penso que a tomada de consciência sobre a profundidade, responsabilidade e  convocação que esta função nos implica seja essencial para a construção de um arteterapeuta.
Sendo assim, naturalmente a leitura e o estudo sobre o que grandes artistas teorizaram sobre este lugar no social e para a história, instrumentaliza o arteterapeuta na construção de sua identidade profissional. Hoje, a proposta é trazer alguns fragmentos das articulações de kandinsky sobre este tema aos quais podemos acolher como “cartas aos jovens arteterapeutas” (dentre os quais me incluo) nos dias atuais.
Uma mudança de rumo
“Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe de nossos sentimentos. Cada época de uma civilização cria uma arte que lhe é própria e que jamais se verá renascer.” KANDINSKY
Podemos pensar a história da arte como a história da humanidade registrada pelo olhar tão sensível do artista. Kandinsky foi um artista que registrou e participou de um caminho de mudanças de perspectivas na história. Até então vigorava o Iluminismo, um movimento cultural da elite europeia que procurou mobilizar o poder da razão a fim de reformar a sociedade do conhecimento. Ao final do século XIX, observamos o processo de queda destes ideais, em que a ênfase à razão deu lugar à ênfase do romantismo na emoção. Assim:
 “... Kandinsky... Sábio da arte moderna, insere-se exatamente na linhagem de todos os que... quiseram responder à angustia com a certeza... ele assistiu ao desmoronamento de todo um sistema baseado na exatidão de nossa visão, na coincidência entre o valor e a realidade: o mundo que nossos sentidos nos desvendam, é um conjunto de fenômenos que têm poucas relações com a realidade das coisas.” SERS in KANDINSKY
Em última análise, uma mudança de perspectiva como esta possibilitou à Freud,  poucos anos mais tarde, postular uma outra instância no psiquismo humano para além da consciência: o inconsciente, nosso objeto de busca como arteterapeutas.
Rumo à “necessidade interior”: um caminho para a abstração 

“Quando a religião, a ciência e a moral (esta última pela mão rude de Nietzsche) são abaladas, e quando os apoios exteriores ameaçam ruir, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores e dirige-o para si mesmo.” KANDINSKY
Assim, Kandinsky propunha:
“...Uma evolução da arte afastada das redundâncias do materialismo para se tornar um instrumento com o qual se comunicam emoções ‘puras’ obtidas por meio do impacto sensorial e psíquico de formas e cores.” VERSARI
Kandinsky recusava toda arte que fosse tão somente decorativa, a “arte pela arte” que é filha de seu século e permanece inteiramente no exterior. A arte deveria corresponder a uma “necessidade interior”. Neste pensamento, deveria tornar-se abstrata, esta mudança de rumo exigia o desaparecimento do objeto. Mas então, substituir o objeto pelo que?
“... a partir do instante em que...a experiência íntima do artista e a força de emoção que a torna comunicável aos outros transparece, a arte entra no caminho... do qual reencontrará o que perdeu... O objeto de sua busca não é o objeto material concreto a que o artista se prendia exclusivamente na época precedente... mas será o próprio conteúdo da arte, sua essência, sua alma... Esse conteúdo, só a arte pode captá-lo, só ela pode exprimi-lo claramente com os meios que lhe pertencem.” KANDINSKY
Interessante ressaltar que o livro “Do espiritual na arte” foi concluído em 1910 e no mesmo ano kandinsky pinta seu primeiro quadro abstrato, demonstrando a estreita ligação entre o investimento na teoria e em sua experiência. As obras de kandinsky são expressões imagéticas de suas teorizações e verdadeiros estudos sobre a relação entre as cores e as formas. (Eis aqui uma verdadeira inspiração aos arteterapeutas que por um lado devem se alimentar das teorias que lhes sustentam mas por outro lado nunca se perderem se suas próprias experiências com a arte, a criatividade e o agir sobre os materiais expressivos)
Penso que esta mudança de perspectiva sobre a função da arte abre caminho para nossa prática como arteterapeutas, quando a oferecemos como meio para que sujeitos (do cotidiano, mas seres humanos com suas sensibilidades e necessidades) encontrem um caminho rumo a sua “necessidade interior”. Por meio da arte podem se ver, se ouvir, se apropriar de si, se retificar e retornar como autores de suas vidas.
Ao arteterapeuta cabe estar ao lado deste sujeito em sua jornada rumo ao si mesmo, oferecer os materiais expressivos que sejam mais facilitadores deste processo e a partir de sua escuta instrumentalizada exercer sua vocação:
“Cada quadro encerra misteriosamente toda uma vida, uma vida com seus sofrimentos, suas dúvidas, suas horas de entusiasmo e de luz. Para o que tende essa vida? Para quem se volta a alma angustiada do artista quando, também ela, participa de sua atividade criadora? O que ela quer anunciar? ‘Projetar luz nas profundezas do coração humano, eis a vocação do artista’, escreveu Schumann.” KANDISNKY

O artista como um profeta:

Kandinsky defende que esta mudança de rumo direcionada à “necessidade interior” atinge dimensões tão profundas que alcança uma experiência espiritual ao qual ele descreve a partir da metáfora de um triângulo. O artista, com sua sensibilidade e intuição tão aguçada exerce uma função muito delicada, desafiadora, pesada e por vezes solitária:
“Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que possui uma força de ‘visão’ misteriosamente infundida nele. Ele vê o que será e o faz ver. Por vezes desejaria libertar-se desse dom sublime, dessa pesada cruz sob a qual verga. Mas não pode. Apesar das zombarias e do ódio, atrela-se à pesada carroça da humanidade, a fim de soltá-la das pedras que a retêm e, com todas as suas forças, impele-a para a frente.” KANDINSKY
“Um grande triângulo divididos em partes desiguais, a menor e a mais aguda no ápice, representa... bem a vida espiritual... Por vezes na ponta extrema, não há mais do que um homem sozinho. Sua visão iguala sua infinita tristeza. E os que estão mais perto dele não o compreendem. Em sua indignação, tratam-no de impostor, de semilouco...
Podem-se descobrir artistas em todas as partes do triângulo. Aquele que, entre eles, é capaz de olhar além dos limites da parte a que pertence é um profeta para os que o cercam. Ele ajuda a fazer avançar a carroça recalcitrante... Essa multidão tem fome – muitas vezes sem que ela própria esteja consciente disso – o pão espiritual quem convém às suas necessidades.” KANDINSKY
Penso que aqui está a convocação que Kandinsky faz a nós, artistas e arteterapeutas atuantes no século XXI. Através de nossa sensibilidade e intuição, temos a capacidade de perceber a loucura dos nossos tempos, de ver além do estabelecido e através da arte sermos agentes no social, contribuindo para o avanço da “pesada carroça da humanidade.”
É digno de nota que kandinsky não se furta de fazer menção à uma espécie de efeito colateral deste caminho para uma experiência espiritual ao qual pode tomar o artista:
“Esse esquema da vida espiritual... [esconde] todo um lado de sombra, uma grande face obscura, uma mancha morta. Com demasiada frequência, esse pão converte-se no alimento de todos aqueles que se mantém num plano mais elevado. Mas, para eles, pode vir a se tornar um veneno. Uma pequena dose basta para agir sobre a alma... Absorvido, em dose elevada, esse veneno arrasta a alma em sua queda brutal. Num de seus romances, Stenkiewicz compara a vida espiritual à natação; aquele que não trabalha sem descanso e não luta incessantemente está condenado a afundar. É então que o dom natural do homem, o ‘talento’... pode tornar-se uma maldição para o artista que o recebeu e também para todos aqueles que comerem desse pão envenenado.” KANDINSKY
Penso que este fragmento serve de alerta ao arteterapeuta para que esteja atento a si, sua biografia, suas próprias “necessidades interiores” e que dê espaço a elas nos lugares oportunos: a própria terapia e a supervisão. Estes são os espaços propícios para que o arteterapeuta não se envenene, que permaneça nadando e não afunde. As consequências para um terapeuta com a sensibilidade artística que não cuida de si e se propõe a cuidar do outro são catastróficas para todos.
Concluo com kandinsky que incentiva seu leitor à esta tão profunda mudança de rumo através da experiência da arte:
“Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer essa pirâmide espiritual que chegará ao céu”. KANDINSKY

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Referências Bibliográficas:
MORAES, Eliana. Uma arte que nos salve da loucura destes tempos: Dadaísmo e Arteterapia
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na Arte
VERSARI, Maria Helena. Grandes mestres: Kandinsky