segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

ENTRE LINHAS, A HISTORIA DA VIDA PRESA RETALHO A RETALHO

 

Por Silvia Quaresma

silvia.sasq@gmail.com

 

O isolamento e o distanciamento social trazidos por uma pandemia fizeram com que nossas experiências mudassem e consequentemente nossos valores também. Em meio a isto a Arteterapia surge como facilitadora do relembrar, do repensar e da nova elaboração de conceitos e atitudes. Nesta época foi proposto a uma cliente, M. um processo que a convidava exatamente para este percurso.

 

O filme Colcha de Retalhos, previamente assistido, através de um enredo repleto de simbologia e extremamente encantador, trouxe à tona questões familiares e pessoais do feminino e serviu como inspiração para as seis sessões que serão aqui resumidas

 

Foram seis sessões semanais. Na primeira trouxemos o filme como fio condutor. Conversamos sobre o enredo e sua abordagem sobre conflito pessoal. Refletimos como o ato de “construir seu retalho”, remontando uma cena importante da vida, fora tão significativo para cada personagem.



Todo o processo foi cuidadosamente pensado, a começar pelo material.

 

O ato de criar leva-nos à exploração dos diversos materiais de trabalho que funcionam como estímulos sensoriais que, por sua vez, nos remetem a lembranças afetivas. Essas memórias nos fazem entrar em contato com a nossa história, experiências e sentimentos íntimos, despertando a função criadora e favorecendo o aparecimento de imagens (elaborações mentais que guiam a construção representativa) carregadas de energia psíquica e significados subjetivos (MACIEL, 2012.)

 

A interação e o diálogo com material foi extremamente importante e observado na escolha da cor e formato da base, nas estampas dos retalhos, nas cores da linha para bordado. No compartilhamento, M. descobriu que cada escolha que a princípio parecia aleatória tinha um significado intenso.


A partir do segundo encontro dedicamos as sessões às fases da vida, que achamos por bem dividi-las em infância, adolescência, juventude e maturidade e momento atual, e foi atribuída a cada uma palavra que sintetizasse o processo. Este ato, aparentemente, tão simples traz uma identidade ao momento vivido. A palavra é o dom divino é o que diferencia o ser como humano e fazer uso dela fixa as sensações vivenciadas.

 

Infância - Feliz



Adolescência - Saudades



Juventude e Maturidade – Vitória



Momento Atual – Renascimento / Esperança


Para fechamento, optamos pelo uso da aquarela pois entendemos ser importante deixar fluir, extravasar, não ter controle. E a observação do coração que se formou trouxe alegria, como sintetizou a sessão. “Se eu pensar na minha vida ele trouxe amor” 


Aquarela - Alegria




Desde os primórdios, o ato de tecer, de entrelaçar fios, de costurar faz parte da vida.


É impressionante como o uso do fio, do tecido nos remete à ancestralidade. M. pode observar na prática e em seus ricos compartilhamentos trouxe a lembrança da avó, das férias no campo e no litoral, a feliz infância e os detalhes de ser única mulher entre irmãos. Com orgulho trouxe a trajetória do irmão que como psicólogo atuou fora do país com pessoas portadoras de AIDS numa época onde pouco se sabia sobre esta doença e sabemos que quanto menor conhecimento maior preconceito. Lembrou sua trajetória, que entre perdas e ganhos a vitória se apresentou forte. Trouxe a família, filhas, netos como dádiva eterna e conseguiu até colorir a perda do marido e converter a viuvez num processo de trabalho voluntário. E sintetizou o processo todo em uma palavra maravilhoso. Tão forte e enriquecedor que sentiu necessidade de acrescentar um retalho roxo, representando o vírus, para que ano ficasse não só na memória, mas registrado. 

 

E pensar que nas entrelinhas da escrita criativa encontraríamos a conclusão deste processo encantador onde entre linhas a história da vida foi presa, retalho a retalho. 

Bibliografia

MACIEL, C.; CARNEIRO, C. (Org.). Diálogos Criativos entre a Arteterapia e a Psicologia Junguiana. Rio de Janeiro: Wak. 2012.

 

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Sobre a autora: Silvia A. S. Quaresma



Arteterapeuta

Graduada em Letras

Pós-Graduada em Finanças

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento individuais e em grupos em Arteterapia


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

O ARQUÉTIPO DO CRIADOR FERIDO


Por: Ana Paula de Oliveira - SP

Instagram: @ana.oliveira_terapiaexpressao

Na história das civilizações, o domínio dos metais esteve intimamente associado à capacidade de desenvolvimento do homem. Ao término da chamada Idade da Pedra (período neolítico), a pré-história humana se dividiu em três períodos, de acordo com a predominância dos metais usados para a manufatura das armas e ferramentas: a idade do cobre, a idade do bronze e a idade do ferro. Os ferreiros eram os mestres da transformação dos metais em utensílios essenciais para todas as sociedades, e das suas figuras originaram-se crenças, mitos e lendas. Surgiram então os deuses ferreiros, ligados ao fogo e ao ferro e outros metais (ELIADE, 1979). Goibniu é o deus irlandês da forja, que com apenas três golpes de martelo era capaz de forjar uma arma (DAIMLER, 2016). Na mitologia celta galesa, Goibniu tem por equivalente o deus Gofannon. Kurdalægon é a divindade celestial dos ferreiros na mitologia dos ossétios (FOLTZ, 2019). Na mitologia ioruba, Ogum é o orixá ferreiro, senhor dos metais (PRANDI, 2019), sincretizado ao São Jorge da Igreja Católica.

Dentre estes deuses ferreiros, Hefesto é um dos mais importantes (CORDEIRO E PALOMO, 2007). Este deus grego tem em Vulcano o seu equivalente na mitologia romana. Hefesto manifesta-se nos nossos dias em figuras conhecidas da vida real e da ficção, como representantes legítimos de um arquétipo muito comum na humanidade: o arquétipo do rejeitado, abandonado ou do criador ferido.

Hefesto era um Deus artífice, ferreiro, artesão, criador de objetos mágicos, joias, armas, armaduras, armadilhas, dotado de grande criatividade. E por outro lado, anão, aleijado, deformado, rejeitado por isso por sua mãe Hera, (que se viu inferiorizada por produzir uma cria defeituosa). “Deus coxo e artífice genial, Hefesto carrega em si a contradição entre a perfeição e o erro, inconcebível em uma divindade, mas inerente à natureza dos seres humanos.” (CORDEIRO e  PALOMO). Hefesto é um Deus que não ri. Riem dele, gerando dor, ressentimento, e assim, o manifesto da sua expressão na arte. Ele trata da arte do riso “sério”, não o riso inebriado pela embriaguez, deboche que fere, mas a arte do riso recriador de si mesmo a partir das próprias feridas, se colocando humildemente diante delas. O riso, assim colocado, transmuta tristeza em alegria, o ódio em amor. Rir de si mesmo, traz dessa forma a aceitação de si.

Sua história fala dos rejeitados que foram aceitos, incluídos pelas obras que produziam. Abre espaço para a expressão da divindade do ser humano sendo humano e Deus num ato heroico de manifestar a sua beleza íntima através do talento que carrega em si. Integrando erro e acerto, feiura e beleza a seu tempo, somando sombra e luz na produção de obras na vida com o sopro do espírito vivo que carregamos em nós em essência e potencial. O deus ferreiro usou o fogo da criatividade a seu favor, sabendo esperar seu tempo para aprender e criar. Voltou ao mundo e apresentou-se às divindades com sua criatividade e com sua arte passou a servir ao coletivo. Nunca impôs sua presença e seu trabalho, se apresentando apenas quando convidado a estar e servir.  Sempre concentrado no seu ofício, sempre perfeito.

Hefesto sugere uma possibilidade de elaboração das dores pela criatividade laborativa, dedicada, meticulosa e persistente na realização dos projetos de vida. Neste contexto, a Arteterapia é uma facilitadora do contato com o mundo inconsciente do ser humano visando o alcance da totalidade do Ser. Aqui o alumínio ao contato de boleadores de metal empresta a possibilidade de fazer ceder o frio metal pela persistência e delicadeza do cliente. Com a fricção cria-se um calor na superfície e o alumínio, como o bronze e até outros metais que acabam por ceder. É interessante avaliar o limiar entre força e persistência, o calor das emoções que emanam no processo, sendo indicados, na minha experiência, para casos onde a raiva, a mágoa e o rancor marcaram as relações. Surgem então processos não verbais que permitem expressar conteúdos do inconsciente de difícil acesso, por serem chagas resistentes ao tratamento. 


A proposta arteterapêutica foi trabalhar o ressentimento e a mágoa através da impressão de uma imagem sobre a folha de alumínio com a técnica da latonagem. Após entrar em contato com o sofrimento que gera mágoa, rigidez e raiva expressei em uma folha sulfite uma imagem gráfica simbólica do que sentia e a transferi para uma folha de alumínio com a ajuda de um lápis grafite de ponta grossa para não furar a folha metálica. Feito isso iniciei o processo de marcar, dar volume, ressaltar partes, arredondar, suavizar, oferecer detalhes, com o auxílio de boleadores de metal e óleo de coco para não riscar a folha e perceber a pressão necessária para fazer o metal ceder sem feri-lo. Aos poucos, no trabalho delicado de paciência e cuidado a imagem vai criando beleza e o meu olhar endurecido como aquela placa metálica foi acessando novas possibilidades de entendimento. Finalizada a atividade plástica dei seguimento ao meu processo com uma escrita criativa que me trouxe realmente um novo olhar sobre uma crença limitante que eu carregava.



Para tornar mais acessível o material, adaptei a folha de alumínio para latinhas de refrigerante, sucos e cerveja utilizando a parte interna. Os boleadores de metal usados na técnica eu também substitui por lápis sem ponta. Esta técnica já foi testada com crianças, jovens, adultos e idosos. É inevitável a frustração que vem com o rompimento da folha nos primeiros contornos e com ela os conteúdos a serem observados, mas a persistência e o aprendizado da delicadeza são as chaves para o desenvolvimento deste trabalho arteterapêutico.                                                                  

Existe um homem simples e rústico que habita em Hefesto, que as letras não corromperam, que o verbo não deturpou.            Ele tem a pele queimada e as roupas surradas, seus calçados não têm beleza e seus cabelos caem descuidados no seu semblante sereno. Não é de muito dizer, porém é de muito ver e ouvir. Não luta por reconhecimento e glória. Não deseja altares e nem perde a paz do sono por poder. Sabe que tem somente suas mãos e a força do seu querer a eles deve seus dias e sua vida. Parece solitário, mas é companheiro da sua liberdade e não se deixa escravizar. Da dura armadura forjada com o tempo, no calor das batalhas silenciosas do ser, no escuro e frio, sujo e empoeirado nasce um homem forte e corajoso. Por vezes é triste, mas nem por isso sombrio, ele segue seu destino, sua luta diária.

Ele carrega no peito uma dor calada, nunca confessada. Sim, ele sente, ele amou e ama. Ele um dia entregou sua pele, sua alma, suas vísceras, todo seu ser a uma verdade em forma de promessa. Um desejo de realidade, uma talvez ingenuidade, como uma criança que acredita estar protegida e nunca só.

Sim, dentro dele existe calor. À sua volta tudo é o espelho de ausência, como todo o material que trabalha. Aprendeu na alma a forjar o metal, a dar forma a ele, a fazê-lo arte, a torná-lo útil e belo. Fez dele morada das suas emoções e com seus sentimentos esculpiu, forjou cada detalhe que hoje o compõe. Quem o vê assim entregue ao seu ofício o tem por ignorante, um desalmado ser incapaz de delicadeza e percepção das sutilizas do amor e do sentir. 

Esse passante desavisado e indiferente o toma por si. Quem mais seria capaz de tratar o duro aço, o frio metal, o nobre cobre e a cobiçada prata com tal delicadeza como se estivesse diante de fina seda? Quem, senão alguém que tem profundos e nobres sentimentos seria capaz de ver no frio metal a beleza da flor e tratá-lo como a um tecido de rara nobreza? De forjar na sua dura pele as marcas profundas que gritam no seu ser? 

O som do metal parece aos ouvidos um canto triste de dura realidade, o toque forte da conquista da persistência e da resignação tem o gosto seco do mais fino vinho que soube esperar para obter seu sabor, e traz consigo o perfume balsâmico da verdadeira sabedoria. Sabe enfim, completar o ciclo das suas infinitas luas, terminar todos os seus ciclos e se integrar a si mesmo.

Para entoar o canto seco do metal e conferir a ele beleza e arte é preciso ter uma alma sensível e experiente no sentir. Ter caminhado distâncias sem fim pelas veredas das emoções mais marcantes. É preciso ter vivido com intensidade, ter chorado com profunda dor, ter se contentado com a rústica simplicidade de estar vivo, ter se banhado de gratidão à vida, ter se saciado de humanidade. Ter provado o doce e o amargo a ponto de com o simples olfato saber diferenciá-lo. Para saber forjar o metal e ver nele arte monumental, escandalosa de tanta força e sobriedade, é preciso ter vivido com a alma, é preciso ter sorvido do ódio e do perdão. É preciso saber sonhar e desesperar, ter e perder, lutar e sempre vencer porque sabe que na aparente derrota se esconde a real vitória. É preciso ser sábio, é preciso ser velho no espírito e ter o vigor de um jovem que não se sacia com um único olhar.

É atingir a simplicidade de viver o dia de hoje. A paz de executar sua tarefa com primor, sem julgamentos nem lamentos de quem não se desprende do passado que já morreu, sem a ambição que lhe faz viver do futuro sem o conhecer. É ser feliz agora, é gostar do que se tem hoje. É ter a certeza que a vida é infinita como infinita foi até hoje. É deixar que no rosto estejam apenas as marcas do tempo como gentil aliado, feliz companheiro da vida, não como o carrasco que lhe arranca das mãos a força, dos pés o chão, da cabeça a esperança e do coração o amor.

Quem é capaz de forjar a própria armadura sabe que por trás dela existe um homem frágil, humano, forte e sensível. Que existe um ignorante e um sábio. Um velho e uma criança. Que já viveu muito e ainda não viveu tudo. Que sofreu quedas e desilusões, mas, também aprendeu a se erguer e ter esperança.

BIBLIOGRAFIA

BOLEN, J. S. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. Paulus, 2002.

CORDEIRO, A. M.; PALOMO, V. Hefesto, o arquétipo do criador ferido. Alvarenga, MZ e col, 2007.

DAIMLER, M. (2016). Pagan Portals-Gods and Goddesses of Ireland: A Guide to Irish Deities. John Hunt Publishing.

DINIZ, L. Mitos e arquétipos na Arteterapia: os rituais para se alcançar o inconsciente. Rio de Janeiro: Wak, 2010.

ELIADE, M. (1979). Ferreiros e alquimistas. Zahar ed.

FOLTZ, R. (2019). Scythian Neo-Paganism in the Caucasus: The Ossetian Uatsdin as a 'Nature Religion'. Journal for the Study of Religion, Nature & Culture, 13(3).

PRANDI, R. Ogum: caçador, agricultor, ferreiro, trabalhador, guerreiro e rei. Pallas, 2019.

SIQUEIRA, G. T. Hostilidade: Uma Revisão de Literatura no Referencial Teórico junguiano. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.

VERGER, P. F. Orixás. Edizioni Associate, 2005.

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Sobre a autora: Ana Paula de Oliveira



Mandala Terapeuta, Arteterapeuta, Enfermagem Unicamp, Especialista Saúde Pública Unicamp. Projetos: Deusas e Mandalas e Mulheres Lobas – Estudo e vivência a partir dos Contos do Livro Mulheres que Correm Com Os Lobos. Atendimento utilizando a técnica das Mandalas Espontâneas.

Instagram: @ana.oliveira_terapiaexpressao


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

PARA 2021, UM RETORNO À CLARICE

 


Eliana Moraes (MG) RJ

naopalavra@gmail.com

Instagram @naopalavra

O blog Não Palavra esteve de férias nas últimas semanas, um tempo necessário para o silenciamento e esvaziamento, abrindo espaço para novas percepções e conexões, rumo à novas criações. Neste período estive atenta ao volume de conteúdos surgidos sobre Clarice Lispector, a grande inspiradora do nome que nos abraça: Não Palavra. Lembrei-me de 2013, quando estava lendo o livro “Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades” de Ângela Phillipini, e como abertura do capítulo sobre escrita criativa, li: “A palavra é uma isca para pegar aquilo que é ‘não-palavra’ e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão” Clarice Lispector. Aquela citação me atravessou de uma forma nunca experimentada anteriormente e desde então este nome faz parte da minha identidade profissional.

A razão para tamanha identificação se deu pelo fato de sempre ter me chamado a atenção na escuta clínica aqueles pacientes que visivelmente traziam dentro de si uma demanda profunda a ser trabalhada em terapia, mas que por alguma razão a linguagem verbal não estaria dando conta daquela expressão. Dar nome a este outro lugar para além da palavra foi, para mim, até mesmo um alívio, ao poder legitimar a existência de um espaço “não palavra”.

Foi justamente por me intrigar por este espaço, que me aprofundei nos estudos em Arteterapia pois eu percebia que a arte ampliava as possibilidades expressivas dos sujeitos que experimentavam a sensação de “não palavra”. Sendo assim, o blog Não Palavra constituiu-se como um espaço de estudo sobre a Arteterapia.


Lembrei-me também que Clarice esteve tão presente no processo do meu caminhar, que nomeei Clarice uma gatinha dão doce quanto altiva, que tive a oportunidade de compartilhar alguns anos de jornada, até sua partida em 2019.

Estas memórias foram estimuladas durante a leitura de um livro que ganhei de uma grande amiga, “Para amar Clarice: como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra” de Emilia Amaral, e também ao assistir alguns documentários lançados neste período. Este retorno à Clarice tem sua razão: no dia 10 de dezembro de 2020 foi comemorado o centenário de Clarice Lispector e estávamos todos prestando nossa homenagem em gratidão à esta escritora que tinha uma capacidade singular para dizer o indizível, nomear o inominável.

Clarice Lispector

Nascida na Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda menina. Passou a infância e a adolescência entre Maceió, Recife e Rio de Janeiro e foi aqui, na juventude, que se aventurou em seus primeiros escritos.

Escreveu romances, contos, crônicas, para crianças e adultos. Em sua icônica entrevista para a TV Cultura em 1977 disse “O adulto é triste e solitário”. Ocasião também ao qual afirmou nunca ter se assumido como uma escritora profissional, pois “eu só escrevo quando quero. Eu sou amadora e faço questão de ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever ou então obrigação com o outro. Eu faço questão de não ser profissional para manter a minha liberdade.”*

Neste sentido, seu biógrafo Benjamin Moser afirma que Clarice escrevia “não profissionalmente, mas por uma necessidade interior.” De fato, Clarice transformava seus questionamentos sobre a vida em histórias, contos, romances, livros. Não com a esperança de que seus escritos alterassem algo na realidade objetiva, mas continuava escrevendo porque no fundo “a gente quer desabrochar, de um modo ou de outro”.* 

Clarice possui uma capacidade única de provocar uma identificação em seus leitores, como se fosse uma espécie de porta-voz de todos nós, pois ainda que consciente da dimensão “não palavra”, tinha um dom singular de “usar a palavra para que dela ressoe o que silencia e assim se atinja a máxima potência significativa.” (AMARAL, 38). Em suas próprias palavras:

Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. (LISPECTOR, 2010, 123)

Para amar Clarice

Clarice me encanta como leitora mas também como arteterapeuta pois acredito que seus escritos colaboram para o desenvolvimento da escuta clínica. Ela nos ensina a ter um olhar atento ao humano que traz em si uma falta, justamente aquela que buscará dar sentido no processo terapêutico:

Clarice produziu uma obra em que excluídos, mancos, alienados, fugitivos, párias sociais, inadaptados em geral, podem ensinar não a partir do que possuem, mas a partir e através da falta, da carência, da incompletude, que é de nós todos – por mais que nossos olhos não ousem enxergar. (AMARAL, 2017, 127)

Ela nos ensina a ouvir além, a aguçar uma outra escuta, aquela que advém não das palavras, mas dos silêncios mais ocultos e inconscientes, pois “meu principal está sempre escondido. Sou implícita.” (LISPECTOR in AMARAL, 2017, 117):

Trata-se, assim, de uma escritora cujo trabalho é marcado pela introspecção. Ela “perscruta” os silêncios plenos de sentidos ocultos, extremamente contraditórios, de que somos constituídos, em nossa realidade interna... (AMARAL, 2017, 10)

Assim, ela nos conduz a perguntas estruturais ao caminho de individuação:

Marcada pela visão do que se oculta, mais alusiva do que afirmativa, ela remete constantemente à questão da identidade. Quem sou eu? Por que escapo de mim? O que procuro? Por que o objeto desta procura nunca está onde estou, mas em outro lugar, incognoscível? (AMARAL, 2017, 10)

Nesta jornada, nós arteterapeutas, somos testemunhas e participantes do belo processo ao qual nossos pacientes/clientes vão enfrentando suas resistências e tomando consciência de si. Clarice brilhantemente consegue traduzir em palavras aquilo que cada sujeito não sabe, mas nos diz em não palavra:

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar, não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. (LISPECTOR in AMARAL, 52)

Diante de tudo o que foi dito (e que ficou por ser dito), se “Clarice dedicou sua vida a... dizer o que ultrapassa as palavras” (AMARAL, 2017, 10) nós arteterapeutas tomamos sua missão como nossa inspiração, ao exercermos a função de sustentarmos um espaço sagrado para que sujeitos angustiados possam expressar seus conteúdos internos e se apropriar daquilo que sentem como “não palavra”. Que em 2021 possamos exercer nossa missão com a consciência de sua importância para cada um de nós e para o social de nossos tempos.

 

* Os trechos citados foram transcritos do documentário “Clarice Lispector 100 anos” disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=kw9fUfy5sPk&feature=youtu.be

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

AMARAL, Emilia. Para amar Clarice: Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra. Ed Faro Editorial, São Paulo. 2017.

LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, Rio de Janeiro.2010.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"