Por: Ana
Paula de Oliveira - SP
Instagram:
@ana.oliveira_terapiaexpressao
Na
história das civilizações, o domínio dos metais esteve intimamente associado à
capacidade de desenvolvimento do homem. Ao término da chamada Idade da Pedra
(período neolítico), a pré-história humana se dividiu em três períodos, de
acordo com a predominância dos metais usados para a manufatura das armas e
ferramentas: a idade do cobre, a idade do bronze e a idade do ferro. Os
ferreiros eram os mestres da transformação dos metais em utensílios essenciais
para todas as sociedades, e das suas figuras originaram-se crenças, mitos e
lendas. Surgiram então os deuses ferreiros, ligados ao fogo e ao ferro e outros
metais (ELIADE, 1979). Goibniu é o deus irlandês da forja, que com apenas três
golpes de martelo era capaz de forjar uma arma (DAIMLER, 2016). Na mitologia
celta galesa, Goibniu tem por equivalente o deus Gofannon. Kurdalægon é a
divindade celestial dos ferreiros na mitologia dos ossétios (FOLTZ, 2019). Na
mitologia ioruba, Ogum é o orixá ferreiro, senhor dos metais (PRANDI, 2019),
sincretizado ao São Jorge da Igreja Católica.
Dentre
estes deuses ferreiros, Hefesto é um dos mais importantes (CORDEIRO E PALOMO,
2007). Este deus grego tem em Vulcano o seu equivalente na mitologia romana.
Hefesto manifesta-se nos nossos dias em figuras conhecidas da vida real e da
ficção, como representantes legítimos de um arquétipo muito comum na humanidade:
o arquétipo do rejeitado, abandonado ou do criador ferido.
Hefesto
era um Deus artífice, ferreiro, artesão, criador de objetos mágicos, joias,
armas, armaduras, armadilhas, dotado de grande criatividade. E por outro lado,
anão, aleijado, deformado, rejeitado por isso por sua mãe Hera, (que se viu
inferiorizada por produzir uma cria defeituosa). “Deus coxo e artífice genial,
Hefesto carrega em si a contradição entre a perfeição e o erro, inconcebível em
uma divindade, mas inerente à natureza dos seres humanos.” (CORDEIRO e PALOMO). Hefesto é um Deus que não ri.
Riem dele, gerando dor, ressentimento, e assim, o manifesto da sua expressão na
arte. Ele trata da arte do riso “sério”, não o riso inebriado pela embriaguez,
deboche que fere, mas a arte do riso recriador de si mesmo a partir das
próprias feridas, se colocando humildemente diante delas. O riso, assim
colocado, transmuta tristeza em alegria, o ódio em amor. Rir de si mesmo, traz
dessa forma a aceitação de si.
Sua
história fala dos rejeitados que foram aceitos, incluídos pelas obras que
produziam. Abre espaço para a expressão da divindade do ser humano sendo humano
e Deus num ato heroico de manifestar a sua beleza íntima através do talento que
carrega em si. Integrando erro e acerto, feiura e beleza a seu tempo, somando
sombra e luz na produção de obras na vida com o sopro do espírito vivo que
carregamos em nós em essência e potencial. O deus ferreiro usou o fogo da
criatividade a seu favor, sabendo esperar seu tempo para aprender e criar.
Voltou ao mundo e apresentou-se às divindades com sua criatividade e com sua
arte passou a servir ao coletivo. Nunca impôs sua presença e seu trabalho, se
apresentando apenas quando convidado a estar e servir. Sempre concentrado no seu ofício, sempre
perfeito.
Hefesto
sugere uma possibilidade de elaboração das dores pela criatividade laborativa,
dedicada, meticulosa e persistente na realização dos projetos de vida. Neste
contexto, a Arteterapia é uma facilitadora do contato com o mundo inconsciente
do ser humano visando o alcance da totalidade do Ser. Aqui o alumínio ao
contato de boleadores de metal empresta a possibilidade de fazer ceder o frio
metal pela persistência e delicadeza do cliente. Com a fricção cria-se um calor
na superfície e o alumínio, como o bronze e até outros metais que acabam por
ceder. É interessante avaliar o limiar entre força e persistência, o calor das
emoções que emanam no processo, sendo indicados, na minha experiência, para
casos onde a raiva, a mágoa e o rancor marcaram as relações. Surgem então
processos não verbais que permitem expressar conteúdos do inconsciente de
difícil acesso, por serem chagas resistentes ao tratamento.
A
proposta arteterapêutica foi trabalhar o ressentimento e a mágoa através da
impressão de uma imagem sobre a folha de alumínio com a técnica da latonagem.
Após entrar em contato com o sofrimento que gera mágoa, rigidez e raiva expressei
em uma folha sulfite uma imagem gráfica simbólica do que sentia e a transferi
para uma folha de alumínio com a ajuda de um lápis grafite de ponta grossa para
não furar a folha metálica. Feito isso iniciei o processo de marcar, dar
volume, ressaltar partes, arredondar, suavizar, oferecer detalhes, com o auxílio
de boleadores de metal e óleo de coco para não riscar a folha e perceber a
pressão necessária para fazer o metal ceder sem feri-lo. Aos poucos, no
trabalho delicado de paciência e cuidado a imagem vai criando beleza e o meu
olhar endurecido como aquela placa metálica foi acessando novas possibilidades
de entendimento. Finalizada a atividade plástica dei seguimento ao meu processo
com uma escrita criativa que me trouxe realmente um novo olhar sobre uma crença
limitante que eu carregava.
Para
tornar mais acessível o material, adaptei a folha de alumínio para latinhas de
refrigerante, sucos e cerveja utilizando a parte interna. Os boleadores de
metal usados na técnica eu também substitui por lápis sem ponta. Esta técnica
já foi testada com crianças, jovens, adultos e idosos. É inevitável a
frustração que vem com o rompimento da folha nos primeiros contornos e com ela
os conteúdos a serem observados, mas a persistência e o aprendizado da delicadeza
são as chaves para o desenvolvimento deste trabalho arteterapêutico.
Existe um homem simples e rústico
que habita em Hefesto, que as letras não corromperam, que o verbo não deturpou.
Ele tem a pele queimada e as
roupas surradas, seus calçados não têm beleza e seus cabelos caem descuidados
no seu semblante sereno. Não é de muito dizer, porém é de muito ver e ouvir.
Não luta por reconhecimento e glória. Não deseja altares e nem perde a paz do
sono por poder. Sabe que tem somente suas mãos e a força do seu querer a eles
deve seus dias e sua vida. Parece solitário, mas é companheiro da sua liberdade
e não se deixa escravizar. Da dura armadura forjada com o tempo, no calor das
batalhas silenciosas do ser, no escuro e frio, sujo e empoeirado nasce um homem
forte e corajoso. Por vezes é triste, mas nem por isso sombrio, ele segue seu
destino, sua luta diária.
Ele
carrega no peito uma dor calada, nunca confessada. Sim, ele sente, ele amou e
ama. Ele um dia entregou sua pele, sua alma, suas vísceras, todo seu ser a uma
verdade em forma de promessa. Um desejo de realidade, uma talvez ingenuidade,
como uma criança que acredita estar protegida e nunca só.
Sim,
dentro dele existe calor. À sua volta tudo é o espelho de ausência, como todo o
material que trabalha. Aprendeu na alma a forjar o metal, a dar forma a ele, a
fazê-lo arte, a torná-lo útil e belo. Fez dele morada das suas emoções e com
seus sentimentos esculpiu, forjou cada detalhe que hoje o compõe. Quem o vê
assim entregue ao seu ofício o tem por ignorante, um desalmado ser incapaz de
delicadeza e percepção das sutilizas do amor e do sentir.
Esse
passante desavisado e indiferente o toma por si. Quem mais seria capaz de
tratar o duro aço, o frio metal, o nobre cobre e a cobiçada prata com tal
delicadeza como se estivesse diante de fina seda? Quem, senão alguém que tem
profundos e nobres sentimentos seria capaz de ver no frio metal a beleza da
flor e tratá-lo como a um tecido de rara nobreza? De forjar na sua dura pele as
marcas profundas que gritam no seu ser?
O
som do metal parece aos ouvidos um canto triste de dura realidade, o toque
forte da conquista da persistência e da resignação tem o gosto seco do mais
fino vinho que soube esperar para obter seu sabor, e traz consigo o perfume
balsâmico da verdadeira sabedoria. Sabe enfim, completar o ciclo das suas
infinitas luas, terminar todos os seus ciclos e se integrar a si mesmo.
Para
entoar o canto seco do metal e conferir a ele beleza e arte é preciso ter uma
alma sensível e experiente no sentir. Ter caminhado distâncias sem fim pelas
veredas das emoções mais marcantes. É preciso ter vivido com intensidade, ter
chorado com profunda dor, ter se contentado com a rústica simplicidade de estar
vivo, ter se banhado de gratidão à vida, ter se saciado de humanidade. Ter
provado o doce e o amargo a ponto de com o simples olfato saber diferenciá-lo.
Para saber forjar o metal e ver nele arte monumental, escandalosa de tanta
força e sobriedade, é preciso ter vivido com a alma, é preciso ter sorvido do
ódio e do perdão. É preciso saber sonhar e desesperar, ter e perder, lutar e
sempre vencer porque sabe que na aparente derrota se esconde a real vitória. É
preciso ser sábio, é preciso ser velho no espírito e ter o vigor de um jovem
que não se sacia com um único olhar.
É atingir a simplicidade de viver o dia de
hoje. A paz de executar sua tarefa com primor, sem julgamentos nem lamentos de
quem não se desprende do passado que já morreu, sem a ambição que lhe faz viver
do futuro sem o conhecer. É ser feliz agora, é gostar do que se tem hoje. É ter
a certeza que a vida é infinita como infinita foi até hoje. É deixar que no
rosto estejam apenas as marcas do tempo como gentil aliado, feliz companheiro
da vida, não como o carrasco que lhe arranca das mãos a força, dos pés o chão,
da cabeça a esperança e do coração o amor.
Quem
é capaz de forjar a própria armadura sabe que por trás dela existe um homem
frágil, humano, forte e sensível. Que existe um ignorante e um sábio. Um velho
e uma criança. Que já viveu muito e ainda não viveu tudo. Que sofreu quedas e
desilusões, mas, também aprendeu a se erguer e ter esperança.
BIBLIOGRAFIA
BOLEN, J. S. Os deuses e o homem:
uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. Paulus, 2002.
CORDEIRO, A. M.; PALOMO,
V. Hefesto, o arquétipo do criador ferido. Alvarenga, MZ e col, 2007.
DAIMLER, M. (2016). Pagan
Portals-Gods and Goddesses of Ireland: A Guide to Irish Deities. John Hunt Publishing.
DINIZ, L. Mitos e
arquétipos na Arteterapia: os rituais para se alcançar o inconsciente. Rio de Janeiro: Wak, 2010.
ELIADE,
M. (1979). Ferreiros e alquimistas. Zahar ed.
FOLTZ, R. (2019). Scythian
Neo-Paganism in the Caucasus: The Ossetian Uatsdin as a 'Nature Religion'. Journal for the Study
of Religion, Nature & Culture, 13(3).
PRANDI,
R. Ogum: caçador, agricultor, ferreiro, trabalhador, guerreiro e rei. Pallas,
2019.
SIQUEIRA, G. T.
Hostilidade: Uma Revisão de Literatura no Referencial Teórico junguiano. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, São Paulo, 2008.
VERGER, P. F. Orixás. Edizioni Associate, 2005.
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Sobre a autora: Ana Paula de Oliveira
Mandala Terapeuta, Arteterapeuta, Enfermagem Unicamp, Especialista Saúde Pública Unicamp. Projetos: Deusas e Mandalas e Mulheres Lobas – Estudo e vivência a partir dos Contos do Livro Mulheres que Correm Com Os Lobos. Atendimento utilizando a técnica das Mandalas Espontâneas.
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