segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

PARA 2021, UM RETORNO À CLARICE

 


Eliana Moraes (MG) RJ

naopalavra@gmail.com

Instagram @naopalavra

O blog Não Palavra esteve de férias nas últimas semanas, um tempo necessário para o silenciamento e esvaziamento, abrindo espaço para novas percepções e conexões, rumo à novas criações. Neste período estive atenta ao volume de conteúdos surgidos sobre Clarice Lispector, a grande inspiradora do nome que nos abraça: Não Palavra. Lembrei-me de 2013, quando estava lendo o livro “Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades” de Ângela Phillipini, e como abertura do capítulo sobre escrita criativa, li: “A palavra é uma isca para pegar aquilo que é ‘não-palavra’ e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão” Clarice Lispector. Aquela citação me atravessou de uma forma nunca experimentada anteriormente e desde então este nome faz parte da minha identidade profissional.

A razão para tamanha identificação se deu pelo fato de sempre ter me chamado a atenção na escuta clínica aqueles pacientes que visivelmente traziam dentro de si uma demanda profunda a ser trabalhada em terapia, mas que por alguma razão a linguagem verbal não estaria dando conta daquela expressão. Dar nome a este outro lugar para além da palavra foi, para mim, até mesmo um alívio, ao poder legitimar a existência de um espaço “não palavra”.

Foi justamente por me intrigar por este espaço, que me aprofundei nos estudos em Arteterapia pois eu percebia que a arte ampliava as possibilidades expressivas dos sujeitos que experimentavam a sensação de “não palavra”. Sendo assim, o blog Não Palavra constituiu-se como um espaço de estudo sobre a Arteterapia.


Lembrei-me também que Clarice esteve tão presente no processo do meu caminhar, que nomeei Clarice uma gatinha dão doce quanto altiva, que tive a oportunidade de compartilhar alguns anos de jornada, até sua partida em 2019.

Estas memórias foram estimuladas durante a leitura de um livro que ganhei de uma grande amiga, “Para amar Clarice: como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra” de Emilia Amaral, e também ao assistir alguns documentários lançados neste período. Este retorno à Clarice tem sua razão: no dia 10 de dezembro de 2020 foi comemorado o centenário de Clarice Lispector e estávamos todos prestando nossa homenagem em gratidão à esta escritora que tinha uma capacidade singular para dizer o indizível, nomear o inominável.

Clarice Lispector

Nascida na Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda menina. Passou a infância e a adolescência entre Maceió, Recife e Rio de Janeiro e foi aqui, na juventude, que se aventurou em seus primeiros escritos.

Escreveu romances, contos, crônicas, para crianças e adultos. Em sua icônica entrevista para a TV Cultura em 1977 disse “O adulto é triste e solitário”. Ocasião também ao qual afirmou nunca ter se assumido como uma escritora profissional, pois “eu só escrevo quando quero. Eu sou amadora e faço questão de ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever ou então obrigação com o outro. Eu faço questão de não ser profissional para manter a minha liberdade.”*

Neste sentido, seu biógrafo Benjamin Moser afirma que Clarice escrevia “não profissionalmente, mas por uma necessidade interior.” De fato, Clarice transformava seus questionamentos sobre a vida em histórias, contos, romances, livros. Não com a esperança de que seus escritos alterassem algo na realidade objetiva, mas continuava escrevendo porque no fundo “a gente quer desabrochar, de um modo ou de outro”.* 

Clarice possui uma capacidade única de provocar uma identificação em seus leitores, como se fosse uma espécie de porta-voz de todos nós, pois ainda que consciente da dimensão “não palavra”, tinha um dom singular de “usar a palavra para que dela ressoe o que silencia e assim se atinja a máxima potência significativa.” (AMARAL, 38). Em suas próprias palavras:

Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. (LISPECTOR, 2010, 123)

Para amar Clarice

Clarice me encanta como leitora mas também como arteterapeuta pois acredito que seus escritos colaboram para o desenvolvimento da escuta clínica. Ela nos ensina a ter um olhar atento ao humano que traz em si uma falta, justamente aquela que buscará dar sentido no processo terapêutico:

Clarice produziu uma obra em que excluídos, mancos, alienados, fugitivos, párias sociais, inadaptados em geral, podem ensinar não a partir do que possuem, mas a partir e através da falta, da carência, da incompletude, que é de nós todos – por mais que nossos olhos não ousem enxergar. (AMARAL, 2017, 127)

Ela nos ensina a ouvir além, a aguçar uma outra escuta, aquela que advém não das palavras, mas dos silêncios mais ocultos e inconscientes, pois “meu principal está sempre escondido. Sou implícita.” (LISPECTOR in AMARAL, 2017, 117):

Trata-se, assim, de uma escritora cujo trabalho é marcado pela introspecção. Ela “perscruta” os silêncios plenos de sentidos ocultos, extremamente contraditórios, de que somos constituídos, em nossa realidade interna... (AMARAL, 2017, 10)

Assim, ela nos conduz a perguntas estruturais ao caminho de individuação:

Marcada pela visão do que se oculta, mais alusiva do que afirmativa, ela remete constantemente à questão da identidade. Quem sou eu? Por que escapo de mim? O que procuro? Por que o objeto desta procura nunca está onde estou, mas em outro lugar, incognoscível? (AMARAL, 2017, 10)

Nesta jornada, nós arteterapeutas, somos testemunhas e participantes do belo processo ao qual nossos pacientes/clientes vão enfrentando suas resistências e tomando consciência de si. Clarice brilhantemente consegue traduzir em palavras aquilo que cada sujeito não sabe, mas nos diz em não palavra:

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar, não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. (LISPECTOR in AMARAL, 52)

Diante de tudo o que foi dito (e que ficou por ser dito), se “Clarice dedicou sua vida a... dizer o que ultrapassa as palavras” (AMARAL, 2017, 10) nós arteterapeutas tomamos sua missão como nossa inspiração, ao exercermos a função de sustentarmos um espaço sagrado para que sujeitos angustiados possam expressar seus conteúdos internos e se apropriar daquilo que sentem como “não palavra”. Que em 2021 possamos exercer nossa missão com a consciência de sua importância para cada um de nós e para o social de nossos tempos.

 

* Os trechos citados foram transcritos do documentário “Clarice Lispector 100 anos” disponível em  https://www.youtube.com/watch?v=kw9fUfy5sPk&feature=youtu.be

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

AMARAL, Emilia. Para amar Clarice: Como descobrir e apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra. Ed Faro Editorial, São Paulo. 2017.

LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, Rio de Janeiro.2010.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra" 

8 comentários:

  1. A consciência da importância da missão do arteterapeuta que vc evidencia em todos os seus encontros, sou grata por estar presente em muitos deles. Clarice valida a nossa jornada. Parabéns pelo texto preciso e inspirador, como sempre.

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  2. Texto inspirador, assim como Clarice e vc minha amiga Eliana Moraes. Sigamos em 2021🌿❤️

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  3. Que coisa mais linda! Fiquei aqui lacrimejando não-palavras ❤️

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  4. É profundo!Tem a fluidez de me levar a um lugar profissional não sentido antes do Nao Palavra - o seu Território Sagrado - que com tamanha generosidade compartilha, fazendo com que parte dele seja comum a todos nós.

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  5. É fácil amar Clarice. Ela não diz nada quando diz tudo e o nada se transforma em tudo dentro de nós. É fácil amar Clarice, ela nos convida a pensar, instiga nosso pensamento nos movimenta. É fácil amar Clarice, que em sua liberdade gritante prende-nos a atenção. É fácil amar Clarice quando tem um pouco de nós refletido em cada conto, em cada crônica. É fácil amar Clarice e esta felicidade nos tira as poucas palavras que tínhamos...e dentro da Não Palavra aqui estamos. Parabéns Eliana pelo texto e que possamos mesmo, nós, arteterapeutas, ter tanto trabalho dentro das não palavras da vida.

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  6. Texto rico como sempre! Parabéns, Eliana !!!

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  7. Reflexão profunda dessa grande mestra e artesã da palavra escrita, falada, vivida! Muito linda sua homenagem, significativa a ligação que você faz entre o Blog Não-Palavra, a grande artista e a arte!!! Realmente, Eliana, a Arteterapia que você nos apresenta e nos convida a vivenciar é o grande diferencial no fazer (arte)terapêutico de todos nós!!! Gratidão!!!

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  8. Que legal seus conteúdos são bem completos! de grande ajuda para mim que sou novata no assunto da Arteterapia tem me ajudado bastante wlw.

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