Eliana Moraes (MG) RJ
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Instagram @naopalavra
O blog Não Palavra esteve de férias nas últimas semanas, um
tempo necessário para o silenciamento e esvaziamento, abrindo espaço para novas
percepções e conexões, rumo à novas criações. Neste período estive atenta ao
volume de conteúdos surgidos sobre Clarice Lispector, a grande inspiradora do
nome que nos abraça: Não Palavra. Lembrei-me de 2013, quando estava lendo o
livro “Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e
propriedades” de Ângela Phillipini, e como abertura do capítulo sobre
escrita criativa, li: “A palavra é uma isca para pegar aquilo que é ‘não-palavra’
e, quando conseguimos, a palavra cumpriu sua missão” Clarice Lispector.
Aquela citação me atravessou de uma forma nunca experimentada anteriormente e
desde então este nome faz parte da minha identidade profissional.
A razão para tamanha identificação se deu pelo fato de sempre
ter me chamado a atenção na escuta clínica aqueles pacientes que visivelmente
traziam dentro de si uma demanda profunda a ser trabalhada em terapia, mas que
por alguma razão a linguagem verbal não estaria dando conta daquela expressão.
Dar nome a este outro lugar para além da palavra foi, para mim, até mesmo um
alívio, ao poder legitimar a existência de um espaço “não palavra”.
Foi justamente por me intrigar por este espaço, que me
aprofundei nos estudos em Arteterapia pois eu percebia que a arte ampliava as
possibilidades expressivas dos sujeitos que experimentavam a sensação de “não
palavra”. Sendo assim, o blog Não Palavra constituiu-se como um espaço de
estudo sobre a Arteterapia.
Lembrei-me também que Clarice esteve tão presente no processo
do meu caminhar, que nomeei Clarice uma gatinha dão doce quanto altiva, que
tive a oportunidade de compartilhar alguns anos de jornada, até sua partida em
2019.
Estas memórias foram estimuladas durante a leitura de um
livro que ganhei de uma grande amiga, “Para amar Clarice: como descobrir e
apreciar os aspectos mais inovadores de sua obra” de Emilia Amaral, e
também ao assistir alguns documentários lançados neste período. Este retorno à
Clarice tem sua razão: no dia 10 de dezembro de 2020 foi comemorado o
centenário de Clarice Lispector e estávamos todos prestando nossa homenagem em
gratidão à esta escritora que tinha uma capacidade singular para dizer o
indizível, nomear o inominável.
Clarice Lispector
Nascida na Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda menina.
Passou a infância e a adolescência entre Maceió, Recife e Rio de Janeiro e foi aqui,
na juventude, que se aventurou em seus primeiros escritos.
Escreveu romances, contos, crônicas, para crianças e adultos.
Em sua icônica entrevista para a TV Cultura em 1977 disse “O adulto é triste
e solitário”. Ocasião também ao qual afirmou nunca ter se assumido como uma
escritora profissional, pois “eu só escrevo quando quero. Eu sou amadora e
faço questão de ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação
consigo mesmo de escrever ou então obrigação com o outro. Eu faço questão de
não ser profissional para manter a minha liberdade.”*
Neste sentido, seu biógrafo Benjamin Moser afirma que Clarice
escrevia “não profissionalmente, mas por uma necessidade interior.” De
fato, Clarice transformava seus questionamentos sobre a vida em
histórias, contos, romances, livros. Não com a esperança de que seus escritos
alterassem algo na realidade objetiva, mas continuava escrevendo porque no
fundo “a gente quer desabrochar, de um modo ou de outro”.*
Clarice possui uma capacidade única de provocar uma
identificação em seus leitores, como se fosse uma espécie de porta-voz de todos
nós, pois ainda que consciente da dimensão “não palavra”, tinha um dom singular
de “usar a palavra para que dela ressoe o que silencia e assim se atinja a
máxima potência significativa.” (AMARAL, 38).
Mas já vi muita coisa
no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem
para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu
quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. (LISPECTOR, 2010, 123)
Para amar Clarice
Clarice me encanta como leitora mas também como arteterapeuta
pois acredito que seus escritos colaboram para o desenvolvimento da escuta
clínica. Ela nos ensina a ter um olhar atento ao humano que traz em si uma
falta, justamente aquela que buscará dar sentido no processo terapêutico:
Clarice produziu uma obra em que
excluídos, mancos, alienados, fugitivos, párias sociais, inadaptados em geral,
podem ensinar não a partir do que possuem, mas a partir e através da falta, da
carência, da incompletude, que é de nós todos – por mais que nossos olhos não
ousem enxergar. (AMARAL, 2017, 127)
Ela nos ensina a ouvir além, a aguçar uma outra escuta,
aquela que advém não das palavras, mas dos silêncios mais ocultos e
inconscientes, pois “meu principal está sempre escondido. Sou implícita.”
(LISPECTOR in AMARAL, 2017, 117):
Trata-se, assim, de uma escritora
cujo trabalho é marcado pela introspecção. Ela “perscruta” os silêncios plenos
de sentidos ocultos, extremamente contraditórios, de que somos constituídos, em
nossa realidade interna... (AMARAL, 2017, 10)
Assim, ela nos conduz a perguntas estruturais ao caminho de
individuação:
Marcada pela visão do que se oculta,
mais alusiva do que afirmativa, ela remete constantemente à questão da
identidade. Quem sou eu? Por que escapo de mim? O que procuro? Por que o objeto
desta procura nunca está onde estou, mas em outro lugar, incognoscível? (AMARAL,
2017, 10)
Nesta jornada, nós arteterapeutas, somos testemunhas e
participantes do belo processo ao qual nossos pacientes/clientes vão
enfrentando suas resistências e tomando consciência de si. Clarice
brilhantemente consegue traduzir em palavras aquilo que cada sujeito não sabe,
mas nos diz em não palavra:
É curioso como não sei dizer quem
sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer,
porque no momento em que tento falar, não só não exprimo o que sinto como o que
sinto se transforma lentamente no que eu digo. (LISPECTOR in AMARAL, 52)
Diante de tudo o que foi dito (e que ficou por ser dito), se “Clarice
dedicou sua vida a... dizer o que ultrapassa as palavras” (AMARAL, 2017, 10)
nós arteterapeutas tomamos sua missão como nossa inspiração, ao exercermos a
função de sustentarmos um espaço sagrado para que sujeitos angustiados possam
expressar seus conteúdos internos e se apropriar daquilo que sentem como “não
palavra”. Que em 2021 possamos exercer nossa missão com a consciência de sua
importância para cada um de nós e para o social de nossos tempos.
* Os trechos
citados foram transcritos do documentário “Clarice Lispector 100 anos” disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=kw9fUfy5sPk&feature=youtu.be
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA:
AMARAL,
Emilia. Para amar Clarice: Como descobrir e apreciar os aspectos mais
inovadores de sua obra. Ed Faro Editorial, São Paulo. 2017.
LISPECTOR, Clarice. Crônicas para jovens de escrita e vida. Ed Rocco Jovens Leitores, Rio de Janeiro.2010.
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Sobre a autora: Eliana Moraes
A consciência da importância da missão do arteterapeuta que vc evidencia em todos os seus encontros, sou grata por estar presente em muitos deles. Clarice valida a nossa jornada. Parabéns pelo texto preciso e inspirador, como sempre.
ResponderExcluirTexto inspirador, assim como Clarice e vc minha amiga Eliana Moraes. Sigamos em 2021🌿❤️
ResponderExcluirQue coisa mais linda! Fiquei aqui lacrimejando não-palavras ❤️
ResponderExcluirÉ profundo!Tem a fluidez de me levar a um lugar profissional não sentido antes do Nao Palavra - o seu Território Sagrado - que com tamanha generosidade compartilha, fazendo com que parte dele seja comum a todos nós.
ResponderExcluirÉ fácil amar Clarice. Ela não diz nada quando diz tudo e o nada se transforma em tudo dentro de nós. É fácil amar Clarice, ela nos convida a pensar, instiga nosso pensamento nos movimenta. É fácil amar Clarice, que em sua liberdade gritante prende-nos a atenção. É fácil amar Clarice quando tem um pouco de nós refletido em cada conto, em cada crônica. É fácil amar Clarice e esta felicidade nos tira as poucas palavras que tínhamos...e dentro da Não Palavra aqui estamos. Parabéns Eliana pelo texto e que possamos mesmo, nós, arteterapeutas, ter tanto trabalho dentro das não palavras da vida.
ResponderExcluirTexto rico como sempre! Parabéns, Eliana !!!
ResponderExcluirReflexão profunda dessa grande mestra e artesã da palavra escrita, falada, vivida! Muito linda sua homenagem, significativa a ligação que você faz entre o Blog Não-Palavra, a grande artista e a arte!!! Realmente, Eliana, a Arteterapia que você nos apresenta e nos convida a vivenciar é o grande diferencial no fazer (arte)terapêutico de todos nós!!! Gratidão!!!
ResponderExcluirQue legal seus conteúdos são bem completos! de grande ajuda para mim que sou novata no assunto da Arteterapia tem me ajudado bastante wlw.
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