Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com
Nesse
meu último texto em sequência, surgido a partir da minha monografia de final do
curso de psicologia, intitulada “Arte como transformação: articulações entre o
pensamento de Vygotsky, a psicologia e a arteterapia”, abordarei três aspectos
importantes que marcam a singularidade do trabalho de arteterapia em relação a
outros trabalhos terapêuticos em que a arte está presente. Hoje, a arteterapia
constitui-se num processo psicoterapêutico de características próprias,
singulares. Apoia-se em abordagens psicológicas diferentes que compartilham da
mesma ideia central de que a arte contribui para a expressão da subjetividade.
Uma das características fundamentais da
arteterapia é o universo da materialidade, que consiste na representação de
conteúdos internos, desconhecidos do indivíduo, através do uso de materiais
diferentes em diversas formas de expressão artística, como o desenho, a
pintura, a modelagem, a música, a dramatização, a dança, entre outras, com suas
variadas linguagens (plástica, escrita, corporal, sonora). Essas atividades
artísticas ampliam as possibilidades de expressão do indivíduo para além da
linguagem verbal, embora esta também faça parte importante do processo
arteterapêutico. Assim, é fundamental, para o arteterapeuta, o conhecimento não
apenas da enorme gama de materiais existentes, mas também e principalmente das
propriedades terapêuticas de cada um deles e de suas linguagens subjetivas.
Cada tipo de material pode mobilizar uma determinada reação e emoção no
indivíduo, cada produção do indivíduo possui um significado particular,
relativo a seu universo, sendo, portanto, algo que diz sobre ele. Assim, a
escolha do tipo de material a ser usado deverá ser feita a partir da escuta do
indivíduo, a qual vai revelar, ao arteterapeuta capacitado e atento, as
questões a serem trabalhadas e o momento psíquico do indivíduo. Segundo Christo
(2009, p.14), “uma técnica só deverá ser utilizada quando ela fizer algum
sentido no tema que o indivíduo estiver trazendo”. A autora afirma que o
arteterapeuta deve escolher determinada técnica em função das temáticas que o
indivíduo traz para o espaço terapêutico e do que o está mobilizando no dia da
sessão, sem haver uma programação antecipada da técnica a ser utilizada. Além
disso, Tavares e Prestes (2018) também lembram que, uma vez que a arteterapia
pode ser usada com todas as faixas etárias, desde a infância até a velhice, as
fases de desenvolvimento do indivíduo também devem ser levadas em consideração
na escolha do material a ser usado (por exemplo, deve-se atentar para a
dificuldade de manejo de certos materiais pelo idoso que já apresente alguma
debilidade física). E também contará para essa escolha de técnicas e materiais
plásticos o campo de atuação, que, hoje em dia, varia desde o trabalho em
instituições psiquiátricas até os hospitais e clínicas de tratamento de
dependentes químicos, por exemplo. Além disso, há que se considerar, por
exemplo, se o trabalho é individual ou em grupo. Finalmente, a praticidade ou
não de uma técnica também deve ser considerada: materiais de difícil aplicação
(como a litogravura, por exemplo) tornam-se praticamente inviáveis num
consultório convencional.
Conforme
Philippini (1998), as primeiras atividades plásticas devem exigir desempenhos
mais simples, que envolvam prazer e ludicidade, para não agravarem as
resistências pertinentes a qualquer processo terapêutico inicial. É comum, nas
primeiras sessões, o desejo do indivíduo de “agradar” ao terapeuta com um bom
desempenho estético, o que é expresso pela fala, frequentemente ouvida nesses
momentos: “Eu não sei desenhar”. Por isso, comumente se inicia o processo com
trabalhos em colagem, nos quais a imagem já está pronta (mas que, assim mesmo,
fornecerá informações sobre aspectos psicodinâmicos daquele momento do
indivíduo). Segundo Philippini (1998), podem-se usar, também, manchas,
rabiscos, papeis rasgados, entre outros elementos ausentes de forma, para que o
indivíduo entenda que não precisa “fazer bonito”. A utilização de materiais
expressivos poderá variar de materiais que possibilitam maior controle, como a
colagem, até os de maior liberação e fluidez, como a pintura e a modelagem.
A
gradação das diferentes linguagens expressivas costuma variar do plano
bidimensional para o tridimensional. De acordo com Philippini (1998), pode-se e
deve-se observar quais modalidades expressivas mais se adequam e mais facilitam
o processo do indivíduo, de forma que ele possa resgatar, ativar e expandir
suas possibilidades criativas singulares. Na abordagem junguiana, seguida por Angela
Philippini (1995), esse processo criativo visa desbloquear e trazer à
consciência o lado sombra, conteúdo desconhecido da psique humana, através da
produção de imagens, que representam símbolos importantes para aquele indivíduo
em seu processo de autoconhecimento.
A
lista de materiais que podem ser utilizados em arteterapia é infindável e vai
desde a colagem, o desenho, a pintura e a modelagem, passando pelo bordado, o
mosaico, o uso de sucata até a contação de histórias, a tecelagem e a escrita
criativa. Por isso, cabe ao arteterapeuta o estudo e experimentação constante
de novos materiais e novas técnicas artísticas, em suas próprias produções,
além do uso em seu trabalho com os pacientes. Para o arteterapeuta e sua
formação, é fundamental que a experimentação artística seja parte de sua vida,
de seu próprio processo de autoconhecimento, o que fará com que seu trabalho
com o outro ganhe profundidade, intuição e empatia (PAIN E JARREAU, 1996).
Outro
aspecto fundamental do processo arteterapêutico é a atuação do arteterapeuta na
condução desse processo. Além de oferecer o material mais adequado ao indivíduo
dentro de suas temáticas e possibilidades momentâneas, cabe ao arteterapeuta
atuar como mediador do processo. Segundo Urrutigaray (2011, p.98), o
profissional de arteterapia “deve buscar, intencionalmente, que o indivíduo
perceba suas características e qualidades individuais presentes na obra (...)”,
o que pode trazer à consciência acontecimentos psíquicos ainda não percebidos
pelo paciente. Como explica Urrutigaray (2011), o trabalho do arteterapeuta
deve ser o de estimular a produção do paciente e acompanhá-la até o fim,
observando as reações e a fala do indivíduo enquanto executa seu trabalho
artístico.
Assim,
o papel do arteterapeuta será o de acompanhar o paciente, numa trajetória de
incertezas, experimentações, construções e desconstruções, cujo norteador serão
as produções pictóricas e a fala do paciente. Cabe ao arteterapeuta ser o
facilitador do processo, ao mesmo tempo em que deve evitar racionalizações e
interpretações reducionistas das imagens criadas. Por intermédio da sua escuta
sensível e de seu olhar atento, o arteterapeuta capacitado convida o indivíduo
a explorar suas criações artísticas para a conscientização de conteúdos até
então desconhecidos, que podem, assim, ser elaborados, integrados e trabalhados
com autonomia pelo próprio paciente. Nesse sentido, é de fundamental
importância que o paciente se sinta à vontade no setting terapêutico, termo
que se usa para o local onde a sessão acontece. Deve ser um ambiente tranquilo, acolhedor e sagrado ̶
“sagrado no sentido de permitir a observação da intimidade, da
particularidade de cada indivíduo” (URRUTIGARAY, 2011, p. 118).
Outra
peculiaridade importante da arteterapia é o fazer criativo, que permite ao
indivíduo agir sobre suas questões,
não apenas falar sobre elas. Moraes (2018), que é psicóloga, arteterapeuta e
escritora, define o conceito de “agir criativo”:
O agir
amparado pelo continente do setting arteterapêutico através da criação é uma
especificidade da Arteterapia dentre os procedimentos terapêuticos. Dessa
forma, o setting configura-se como um
ambiente suportado pela transferência com o arteterapeuta para que o
cliente/paciente vivencie-se no fazer, articule-se em si, alcançando níveis de
consciência mais elevados. Que, através da criação, ele se perceba em suas
repetições, resistências, sintomas, e tenha a oportunidade de enfrentá-las. Que
em meio a essa experiência tome decisões sobre esse enfrentamento (ou não) e
que assim se responsabilize por si como autor e protagonista de sua
obra/história, alcançando uma realidade nova em dimensões novas. (MORAES, 2018,
pp. 75-77)
A respeito do fazer criativo, Philippini
(1996, p. 3) menciona o poder das mãos como instrumentos terapêuticos. Explica
que, em tempos muito antigos, na Índia, por exemplo, as mãos ligavam-se ao
Divino, através de rituais e posturas, apresentando uma função simbólica e
transcendente. Em arteterapia, resgata-se o valor das mãos como instrumentos de
construção, ao se “por a mão na massa”; mãos que traçam linhas, fios, que
moldam, rasgam, amassam, colam... numa infinidade de movimentos e ações, que
transformam o exterior (materiais) e o interior (psique do indivíduo). O indivíduo
sai do passivo para um estado ativo. Boechat, prefaciando a obra de Urrutigaray
(2011) reflete que é preciso libertar as mãos ocidentais, aprisionadas por uma
cultura racionalizante, “cerebral”, que tiraniza a vivência emocional. Ainda
segundo esse autor, o psiquismo permeia o corpo todo – inclusive braços e mãos
–, logo é necessário que se libertem energias esquecidas. E a arteterapia
cumpre esse importante papel, ajudando na recuperação de atividades abandonadas
e no renascimento de habilidades já esquecidas.
É importante lembrar que esse texto foi
escrito no ano passado, logo antes do isolamento social. Hoje, algumas práticas
criativas ainda usadas em atendimentos online precisam contar com a limitação,
a falta ou a escassez de materiais, o que exige do profissional o exercício de
sua flexibilidade e criatividade. É um desafio, que pode ser contornado, por
exemplo, com o uso de práticas artísticas imateriais, como contos, música,
vídeos, filmes, poesias... e muita imaginação. A tecnologia, que muitas vezes
pode despotencializar o trabalho das mãos, agora vem para nos auxiliar na
obtenção de recursos digitais, provando ser, também, um instrumento útil e
válido para o trabalho criativo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
·
BOECHAT,
W.; A libertação das mãos. In: URRUTIGARAY, M.C. Arteterapia: a transformação pessoal
pelas imagens. 5ed. Rio de Janeiro: Wak, 2011.
·
CHRISTO, E. Criatividade em arteterapia:
pintando e desenhando, recortando, colando & dobrando. 5 ed. Rio de
Janeiro: Wak, 2009.
·
MORAES, E. Pensando a Arteterapia. 1 ed. Divino de
São Lourenço, ES: Editora Semente Editorial, 2018.
·
PAIN,
S.; JARREAU, G. Teoria e Técnica da
Arte-Terapia: a compreensão do sujeito.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
·
PHILIPPINI,
A. Mas o que é mesmo arteterapia? Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de
Janeiro, volume V, n. 5, 1998. Pomar.
·
-------------------.
Materialidade e arteterapia. Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de
Janeiro, volume III, n. 3, 1996. Pomar.
·
-------------------.
Universo Junguiano e Arteterapia. Coleção de Revistas de Arteterapia Imagens da Transformação, Rio de
Janeiro, volume II, n. 2, 1995.
Pomar.
·
TAVARES,
J.; PRESTES, V. Arteterapia como estratégia psicológica para a saúde mental. Revista de Inicação Científica da Unifarma,
Paraná, vol. 3, n., 2018. Disponível em: <http://revista.famma.br/unifamma/index.php/RIC/article/view/392> Acesso em: 04/09/19.
·
URRUTIGARAY, M.C. Arteterapia:
a transformação pessoal pelas imagens.
5ed. Rio de Janeiro: Wak, 2011.
______________________________________________________________________________
Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires
Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®, Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo
A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
Muito bom seu artigo, Isabel. Lembro-me da frase da Nadia Boulanger, emérita professora de piano do Conservatório de Paris, que dizia que as 'Mãos pensam". Ou melhor:"As mãos se igualam ao pensamento ou rivalizam com ele".
ResponderExcluirSim, no mergulho em nossa subjetividade podemos encontrar pistas, conexões sobre nós mesmos.. Acho também fundamental não estabelecermos relações mecanicistas com o mundo ¨real". (Onde está o real: na vigília ou nos olhos acordados, bem arregalados?).É tudo tão delicado! Obrigada Isabel pelo artigo.
ResponderExcluirObrigada você, pelas contribuições!😘
Excluir