segunda-feira, 27 de abril de 2020

SEGUNDO ENCONTRO COM LA FONTAINE


Por Beatriz Coelho
biacoelho017@gmail.com

Escolhemos para o nosso segundo encontro com La Fontaine duas fábulas que dialogam com os tempos atuais que vivemos: a epidemia trazida pelo Corona Vírus. Pinçamos no repertório do fabulista genial: Os Animais doentes e a Peste (Livro VII, fábula 1), publicada na 2ª  Coletânea de 1678; e A Raposa que perdeu a cauda, (Livro V, fábula 5), que integra a 1a  coletânea de 1668.

Antes, porém, algumas palavrinhas. Encontrei, em minhas anotações avulsas, algo que me falava do Belo sec. XV, (da primeira metade da Renascença francesa, de 1450 a 1560), época do rei François Ier, - o que acolheu Leonardo da Vinci em seu castelo como a um pai -. (Tenho fascinação por esta belíssima estória real passada no Château d’Amboise).  E, esclarecia ainda a nota, que a segunda metade do sec. XVI, na França, corresponde ao fim dos sonhos da Renascença: caem as utopias: guerras civis, guerras religiosas, período mais sombrio. Neste registro avulso, infelizmente sem a referência, transcrevi ainda em letras garrafais: PERMANECE UMA ESPERANÇA HUMANISTA; A ALEGRIA DE VIVER PELO PRESTÍGIO DA CULTURA INTELECTUAL E ARTÍSTICA.

Acendamos as luzes da Esperança, pois.

Desde a Primeira coletânea, L.F. dá o tom da sua obra: “Uma ampla comédia em cem atos diversos, cujo palco é o Universo” (Livro V, fábula 1).  Nosso Autor não é escravo nem de suas fontes, nem da “moral” que se espera encontrar numa fábula. Na coleção de 1668, as fábulas  se inspiram de Esopo e Fedro. Mas, como ele mesmo diz não possuir o gênio do primeiro nem a concisão do segundo , procurou  pelo menos, torná-las mais leves, porque o objetivo principal do conto é agradar. Ensinar, mas com leveza. L.F.  “apanha” sua matéria prima onde quer que ela se encontre, desde que o emocione. Ela pode  se esconder  numa farsa renascentista, numa elegia antiga, num relato ou numa notícia curiosa.

L.F. não julga: fazemos o que queremos, o que podemos. Ele é, para nós, como um irmão mais velho, observa o escritor Orsenna. O próprio L.F. é vítima dos defeitos que aponta. Sua virtude inatacável é a sinceridade e a fidelidade aos amigos verdadeiros.

Um observador já comentou que se reuníssemos todas as fábulas de L.F. encontraríamos o ser humano. Ele se debruça sobre nossas falhas, mas é extremamente delicado quando trata da nossa “felicidade” porque é coisa fugidia.

Escolhi também, para a reflexão da nossa crise atual, A Raposa que perdeu a cauda, porque trata da dificuldade de mudar hábitos e mentalidades, tema  urgente neste nosso primeiro quarto do século XXI.

Às fábulas!


           Os Animais doentes e a peste
Existe um mal que a todos causa pavor;
Mal que o próprio céu, ao se encher de furor,
Criou para castigar a terra: a peste;
O próprio nome arrepia!
Capaz de enriquecer a Morte em um dia!
Ela declarou guerra aos Animais do Leste.
Nem todos morrem, mas todos são surpreendidos;
Não lutam mais, seus passos estão perdidos;
O céu apagou a lua
E a vida ali vai à míngua...
Nenhum banquete excitava os animais:
Lobo e raposa já não espreitam mais
A boa presa dos matagais;
Os rouxinóis deixam os bosques e os roseirais;
Fim do amor, fim da alegria.
O leão diz então com a sua sabedoria:
Meus caros amigos, o céu nos enviou
A angústia por causa dos nossos pecados;
Declaremo-nos culpados
E que seja sacrificado o que mais pecou;
Os céus talvez nos libertem desta sina;
A história nos ensina
Que para as terríveis calamidades
Só obrigações aplacam as divindades
E assim, detêm o ímpeto devastador;
É preciso, pois, usar de muito rigor
No exame das consciências.
O próprio rei, para se tornar exemplar,
Abriu as confissões: _Para minha gula aplacar,
Devorei muitos carneiros nas cercanias.
Quê me tinham feito? Nada.
Houve vezes que de outros crimes fui autor,
Chegando a comer o pastor.
Me imolo em nome de uma vida partilhada.
Todos devem proceder como eu
Para que se leia: Aqui, a justiça venceu!
Que morra o mais culpado! Assim, se fará a lei._
Majestade, disse a raposa, sois um rei
Muito bom! Vossos escrúpulos revelam
Vossa delicadeza! Carneiro é “horrível”!
Comer espécie assim desprezível
É pecado? Claro que não.
Foi uma honra serem comidos por vós.
E, convenhamos, o pastor era um algoz!
Quem mandou sonhar
Com impérios para os Animais dominar?
Foi muito aplaudida, sem mais pudores,
Pelo auditório de bajuladores.
Em seguida, falaram as outras potências:
O tigre, o urso, todas as excelências;
Todos achavam banais seus pecadinhos;
Não passavam de uns santinhos!
Veio o burro: _Lembro que uma tardinha
Quando pelos campos dos padres passava,
A fome, a ocasião, a grama verdinha
E o empurrão de algum diabo que pastava,
Cortei o capim com os dentes, meus recursos:
Sinceramente, eu não tinha este direito.
Ouviu-se então: _Pega ladrão! Peguem o sujeito!
Um lobo, nada cristão, veio com discursos:
Provou que era preciso sacrificar o animal.
O peludo era culpado por todo o mal.
Comer grama de outro é um crime cruel!
Só a morte expia o ato abominável!
Fizeram-no ver muito bem tal verdade:

Para os poderosos, a impunidade.
Para o povo, a arbitrariedade.

                                   
               
*
                     A Raposa que perdeu a cauda
A Raposa refinada,
Especialista em frangos e coelhada,
Foi de longe pressentida
E finalmente apanhada.
Teve sorte e salvou-se na escapada;
Porém, perdeu parte da cauda comprida.
Está livre; mas com a cauda diminuída.
Recorreu então à velha habilidade:
Um dia, em que a raposada estava reunida
Propôs: _Nossa cauda não traz comodidade;
Inútil, se arrasta na terra enlameada;
De quê nos serve? Precisamos cortá-la;
Reflitam e cheguem a uma conclusão. _                
Sua ideia é boa, diz alguém na sala;
Por favor, vire de costas para a comissão.
Ouviu-se depois tremenda gritaria:
A então reduzida não foi mais ouvida.
Cortar a cauda era proposta vencida.
A imagem não mudaria[1].



[1] É mais fácil desviar o curso de um rio, do que modificar velhos hábitos. Ou: Esperto não dá volta em outro esperto. (N.T.).

Bibliografia:

Cf. o texto Reencontrando La Fontaine.

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Sobre a autora: Beatriz Coelho



Sou mesmo é multifacetada.
Em Paris, fiz mestrado em Sociologia.
Lá, me casei e tive a primeira cria.
De volta ao Brasil, a Vida fez arrelia.
    Abandonei a Sociologia.
Consacrei-me aos amores da minha família.
Mas as letrinhas faziam uma falta danada.
Estava meio despetalada.
Escrevi Cadernos do Silêncio com vírgulas
E de La Fontaine traduzi as Fábulas. 

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