Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com
No texto anterior CLIQUE AQUI, falei sobre Vygotsky e sua
teoria sobre a arte. Nela, o psicólogo russo afirma a importância da arte para
a mudança do psiquismo humano, pois, entre outras coisas, eleva as emoções ao nível consciente, social
e universal, além de formar e desenvolver novas funções psíquicas. Esse segundo
texto foi motivado por outro do blog, publicado em 09 de dezembro de 2019,
chamado “O Poder do Grupo”, que me fez pensar imediatamente em Vygotsky. Já
é sabido popularmente que o homem é um ser social, mas, para Vygotsky, isso
significa que o indivíduo é determinado psiquicamente pelo contexto social no
qual se insere.
Lev Vygotsky é o pai
da psicologia social sócio-histórica, segundo a qual o
ser humano é produto da história e de seu meio sócio-cultural, ao mesmo tempo
que também é seu produtor. Dentro desta abordagem, segundo Barroco e Superti
(2014), as características próprias do psiquismo humano resultam do processo de
interação do indivíduo com o seu meio físico e social, pelo qual ele pode se
apropriar das culturas das gerações precedentes e, assim, aprender a ser Homem.
Desta forma, o sujeito se constitui a partir das relações sociais. Em outras
palavras, sem o social não existe o individual, isto é, sem o grupo não há
indivíduo, e o indivíduo também não existe fora do grupo, do social. Logo, na
teoria de Vygotsky, o grupo possui importância fundamental, pois, para ele, a
interação social é parte imprescindível da formação do psiquismo do indivíduo, já
que é por ela que o indivíduo é determinado.
Na teoria de Vygotsky, o conceito de
mediação é importantíssimo. Segundo Rego
(1995), a mediação refere-se ao processo em que existe um elemento
intermediando uma relação. Nesse caso, a relação é entre o homem e seu mundo e
o homem e seus pares. O elemento intermediário, ou mediador, poderá ser de duas
categorias: a primeira, aquilo que Vygotsky chamava de instrumento; a segunda, o signo.
O instrumento regula as ações sobre o objeto, enquanto o signo regula as ações
sobre o psiquismo humano. Os instrumentos são usados para ampliar e facilitar a
realização da atividade humana, ou seja, o seu trabalho (por exemplo, para
caçar, o homem criou a flecha, que permite que alcance o animal à distância).
Já os signos auxiliam o indivíduo nas suas atividades psíquicas, internas (por
exemplo, no trânsito, a cor vermelha do semáforo é o signo que indica a ação de
parar). A linguagem (verbal, escrita, artística, gestual, musical, etc), que é
um sistema simbólico, organiza os signos em estruturas mentais complexas e permite
a comunicação entre os indivíduos. Logo, é um mediador fundamental nas
interações humanas e, portanto, na formação e no desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, elevando a consciência. Assim, podemos entender a
grande transformação psíquica exercida na interação entre os membros de um
grupo, sobretudo se também houver a mediação da arte, o que se mostra, por
exemplo, nos depoimentos do texto anteriormente citado, “O Poder do Grupo”.
Na concepção do psicólogo russo Vygotsky, o
desenvolvimento do ser humano acontece pela interação constante dele com o seu
contexto social, e as formas psicológicas superiores, mais sofisticadas, surgem
a partir da vida social. Assim, segundo Rego (1995, p. 60-61), “o
desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas
do grupo cultural), que indica, delimita e atribui significados à realidade”.
Logo, “as conquistas individuais resultam de um processo compartilhado”. Dentro
dessa perspectiva, o indivíduo se desenvolve aos poucos e sempre dentro de um contexto
social; vai se diferenciando do grupo, mas é formado a partir dele ̶ é
singular, mas constituído socialmente. De acordo com Zanella et al (2007), a
singularidade se forma na apropriação, pelo sujeito, dos aspectos da realidade
que lhe são significativos e é representada pela forma única com que ele se
apropria desses aspectos.
Assim, percebe-se que, para Vygotsky, a troca ocorrida
entre indivíduos num determinado contexto social representa uma forma de
crescimento e desenvolvimento psicológico, o que corrobora nossa percepção da
importância do trabalho de grupo. Em arteterapia, essa importância adquire,
também, outros significados. Segundo Philippini (2011), compartilhar o universo
criativo num grupo arteterapêutico facilita o desbloqueio afetivo e criativo,
além de ativar novas percepções sobre si e sobre o mundo, muitas vezes
guardadas no inconsciente. Além disso, para ela, o espaço do grupo “funciona
como um círculo sagrado, um têmeno, onde benéficas transformações podem
acontecer”, entre elas a renovação do contato ancestral com a forma circular,
mandálica, que coopera para a “restauração do senso de integridade, totalidade
e inteireza psíquica” (PHILIPPINI, 2011,
p. 73). O grupo terapêutico, segundo a autora, pode atuar como uma tribo, ou
seja, um espaço em que se revivem experiências de proteção, aconchego e
conforto, experimentadas no nosso primeiro grupo social, a família.
Há diversas vantagens num trabalho de grupo com
objetivos terapêuticos. Liebman (2000 apud Sei e Gonçalves, 2010), enumera, de
forma sintética, algumas delas, a saber: o apoio mútuo entre pessoas com
necessidades semelhantes, o aprendizado através da experiência do outro e a
possibilidade de experimentação de novos papéis. Além disso, potencialidades
que estavam latentes podem aflorar e há um compartilhamento democrático de
responsabilidades e vivências.
De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2009), a
psicologia social de orientação sócio-histórica, também conhecida como
abordagem sociointeracionista, desenvolvida por Vygotsky, estuda a relação
indivíduo-sociedade e a maneira como um modifica o outro e vice versa, pois
entende que o sujeito age sobre o mundo, transforma a si mesmo e, ao mesmo
tempo, transforma o mundo em que vive. Ainda de acordo com esses autores,
dentro desta abordagem, é fundamental que se trabalhe o sujeito
terapeuticamente de forma a que ele compreenda e se aproprie de sua maneira de
estar no mundo e que possa se entender como alguém que pode transformar a
sociedade em que vive, buscando melhores condições de vida para si mesmo e para
o coletivo à sua volta. Assim, a abordagem de Vygotsky permite-nos pensar sobre
a importância do grupo e da sociedade para o nosso desenvolvimento pessoal e
singular, mas também nos leva a perceber o nosso papel social como indivíduos
que podem conduzir a uma mudança da sociedade em que vivemos e atuamos.
Esse texto foi produzido no início de
janeiro. Portanto, muito antes da pandemia do coronavírus. Mas continua atual,
pois, hoje, apesar do distanciamento físico exigido pelo momento, o grupo
continua sendo a melhor forma de apoio e resistência às questões decorrentes
dessa crise mundial, tais como medo, angústia e ansiedade, além da doença e da
morte. A dificuldade que muitos vivenciam de ficar em casa decorre exatamente
do fato de sermos gregários, de precisarmos do outro, do grupo, como Vygotsky
nos mostra. E felizmente nossa era tecnológica nos permite manter o contato com
esse outro tão importante através do mundo digital, fato inédito na História da
Humanidade. Em nenhum outro momento de crise e quarentena, como, por exemplo,
na peste bubônica, houve a possibilidade de manter um isolamento físico dos
indivíduos e, simultaneamente, continuar a haver comunicação e união grupal, o
que hoje é possível através dos meios virtuais existentes. Façamos bom uso
desse privilégio, para ficar em casa e evitar que o vírus se propague de forma
incontrolável, mas sobretudo para que as redes sociais se tornem, mais do que
nunca, espaços de troca, apoio, solidariedade, resistência, crescimento e,
conforme Vygotsky nos prova, de elevação da nossa consciência. Que a
importância e a força do grupo nos dê ânimo e coragem nessa batalha contra o
inimigo invisível externo e contra nossos piores temores internos. Que sigamos juntos nesta jornada!
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARROCO,
S.M.S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições
para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade. Paraná, 26
(1). Pp. 22-31, 2014. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/journal/1807-0310_Psicologia_e_Sociedade>
Acesso em: 30/09/2019.
BOCK,
A.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M.L. Psicologias – uma introdução ao estudo da
psicologia. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
MORAES,
E. et al. O poder do grupo. Blog não-palavra. Disponível em: <https://nao-palavra.blogspot.com/2019/>. Acesso em:
05/01/2020
PHILIPPINI,
A. Grupos em arteterapia: redes
criativas para colorir vidas. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.
REGO,
T. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 4ª ed. Rio
de Janeiro: Vozes, 1995.
SEI,
M.B.; GONÇALVES, T. (org.). Arteterapia
com grupos: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2010.
ZANELLA, Andréa Vieira et al . Questões de método
em textos de Vygotski: contribuições à pesquisa em psicologia. Psicologia &
Sociedade, Porto Alegre , v. 19, n. 2, p. 25-33,
Aug. 2007 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000200004&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 04/02/2020.
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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires
Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®, Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo
A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
Isabel,
ResponderExcluirestava ansiosa aguardando por este texto. Muito bom esse conteúdo, digno de leitura várias vezes ! Tal qual o seu texto anterior, que li mais de uma vez, pois a cada frase, me surgia uma ideia, uma reflexão.
Parabéns pelos 2 textos.
Simplesmente adorei.
E que venham mais para que eu continue lendo e refletindo !
Um grande abraço,
Claudia Abe - Arteterapeuta e Farmacêutica
Claudia,
ResponderExcluirMuito obrigada pelo seu feedback! Fico muito feliz em saber que meus textos tenham podido conduzir a ideias e reflexões. Grata, mais uma vez, por compartilhar sua opinião! Em breve, virá mais um texto.
Abraços,
Isabel