segunda-feira, 6 de abril de 2020

VYGOTSKY E A IMPORTÂNCIA DO GRUPO


Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com


No texto anterior CLIQUE AQUI, falei sobre Vygotsky e sua teoria sobre a arte. Nela, o psicólogo russo afirma a importância da arte para a mudança do psiquismo humano, pois, entre outras coisas, eleva as emoções ao nível consciente, social e universal, além de formar e desenvolver novas funções psíquicas. Esse segundo texto foi motivado por outro do blog, publicado em 09 de dezembro de 2019, chamado “O Poder do Grupo”, que me fez pensar imediatamente em Vygotsky. Já é sabido popularmente que o homem é um ser social, mas, para Vygotsky, isso significa que o indivíduo é determinado psiquicamente pelo contexto social no qual se insere.

Lev Vygotsky é o pai da psicologia social sócio-histórica, segundo a qual o ser humano é produto da história e de seu meio sócio-cultural, ao mesmo tempo que também é seu produtor. Dentro desta abordagem, segundo Barroco e Superti (2014), as características próprias do psiquismo humano resultam do processo de interação do indivíduo com o seu meio físico e social, pelo qual ele pode se apropriar das culturas das gerações precedentes e, assim, aprender a ser Homem. Desta forma, o sujeito se constitui a partir das relações sociais. Em outras palavras, sem o social não existe o individual, isto é, sem o grupo não há indivíduo, e o indivíduo também não existe fora do grupo, do social. Logo, na teoria de Vygotsky, o grupo possui importância fundamental, pois, para ele, a interação social é parte imprescindível da formação do psiquismo do indivíduo, já que é por ela que o indivíduo é determinado.

            Na teoria de Vygotsky, o conceito de mediação é importantíssimo. Segundo Rego (1995), a mediação refere-se ao processo em que existe um elemento intermediando uma relação. Nesse caso, a relação é entre o homem e seu mundo e o homem e seus pares. O elemento intermediário, ou mediador, poderá ser de duas categorias: a primeira, aquilo que Vygotsky chamava de instrumento; a segunda, o signo. O instrumento regula as ações sobre o objeto, enquanto o signo regula as ações sobre o psiquismo humano. Os instrumentos são usados para ampliar e facilitar a realização da atividade humana, ou seja, o seu trabalho (por exemplo, para caçar, o homem criou a flecha, que permite que alcance o animal à distância). Já os signos auxiliam o indivíduo nas suas atividades psíquicas, internas (por exemplo, no trânsito, a cor vermelha do semáforo é o signo que indica a ação de parar). A linguagem (verbal, escrita, artística, gestual, musical, etc), que é um sistema simbólico, organiza os signos em estruturas mentais complexas e permite a comunicação entre os indivíduos. Logo, é um mediador fundamental nas interações humanas e, portanto, na formação e no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, elevando a consciência. Assim, podemos entender a grande transformação psíquica exercida na interação entre os membros de um grupo, sobretudo se também houver a mediação da arte, o que se mostra, por exemplo, nos depoimentos do texto anteriormente citado, “O Poder do Grupo”.

Na concepção do psicólogo russo Vygotsky, o desenvolvimento do ser humano acontece pela interação constante dele com o seu contexto social, e as formas psicológicas superiores, mais sofisticadas, surgem a partir da vida social. Assim, segundo Rego (1995, p. 60-61), “o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas do grupo cultural), que indica, delimita e atribui significados à realidade”. Logo, “as conquistas individuais resultam de um processo compartilhado”. Dentro dessa perspectiva, o indivíduo se desenvolve aos poucos e sempre dentro de um contexto social; vai se diferenciando do grupo, mas é formado a partir dele  ̶  é singular, mas constituído socialmente. De acordo com Zanella et al (2007), a singularidade se forma na apropriação, pelo sujeito, dos aspectos da realidade que lhe são significativos e é representada pela forma única com que ele se apropria desses aspectos.

Assim, percebe-se que, para Vygotsky, a troca ocorrida entre indivíduos num determinado contexto social representa uma forma de crescimento e desenvolvimento psicológico, o que corrobora nossa percepção da importância do trabalho de grupo. Em arteterapia, essa importância adquire, também, outros significados. Segundo Philippini (2011), compartilhar o universo criativo num grupo arteterapêutico facilita o desbloqueio afetivo e criativo, além de ativar novas percepções sobre si e sobre o mundo, muitas vezes guardadas no inconsciente. Além disso, para ela, o espaço do grupo “funciona como um círculo sagrado, um têmeno, onde benéficas transformações podem acontecer”, entre elas a renovação do contato ancestral com a forma circular, mandálica, que coopera para a “restauração do senso de integridade, totalidade e inteireza psíquica” (PHILIPPINI, 2011, p. 73). O grupo terapêutico, segundo a autora, pode atuar como uma tribo, ou seja, um espaço em que se revivem experiências de proteção, aconchego e conforto, experimentadas no nosso primeiro grupo social, a família.

Há diversas vantagens num trabalho de grupo com objetivos terapêuticos. Liebman (2000 apud Sei e Gonçalves, 2010), enumera, de forma sintética, algumas delas, a saber: o apoio mútuo entre pessoas com necessidades semelhantes, o aprendizado através da experiência do outro e a possibilidade de experimentação de novos papéis. Além disso, potencialidades que estavam latentes podem aflorar e há um compartilhamento democrático de responsabilidades e vivências.

De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2009), a psicologia social de orientação sócio-histórica, também conhecida como abordagem sociointeracionista, desenvolvida por Vygotsky, estuda a relação indivíduo-sociedade e a maneira como um modifica o outro e vice versa, pois entende que o sujeito age sobre o mundo, transforma a si mesmo e, ao mesmo tempo, transforma o mundo em que vive. Ainda de acordo com esses autores, dentro desta abordagem, é fundamental que se trabalhe o sujeito terapeuticamente de forma a que ele compreenda e se aproprie de sua maneira de estar no mundo e que possa se entender como alguém que pode transformar a sociedade em que vive, buscando melhores condições de vida para si mesmo e para o coletivo à sua volta. Assim, a abordagem de Vygotsky permite-nos pensar sobre a importância do grupo e da sociedade para o nosso desenvolvimento pessoal e singular, mas também nos leva a perceber o nosso papel social como indivíduos que podem conduzir a uma mudança da sociedade em que vivemos e atuamos.

            Esse texto foi produzido no início de janeiro. Portanto, muito antes da pandemia do coronavírus. Mas continua atual, pois, hoje, apesar do distanciamento físico exigido pelo momento, o grupo continua sendo a melhor forma de apoio e resistência às questões decorrentes dessa crise mundial, tais como medo, angústia e ansiedade, além da doença e da morte. A dificuldade que muitos vivenciam de ficar em casa decorre exatamente do fato de sermos gregários, de precisarmos do outro, do grupo, como Vygotsky nos mostra. E felizmente nossa era tecnológica nos permite manter o contato com esse outro tão importante através do mundo digital, fato inédito na História da Humanidade. Em nenhum outro momento de crise e quarentena, como, por exemplo, na peste bubônica, houve a possibilidade de manter um isolamento físico dos indivíduos e, simultaneamente, continuar a haver comunicação e união grupal, o que hoje é possível através dos meios virtuais existentes. Façamos bom uso desse privilégio, para ficar em casa e evitar que o vírus se propague de forma incontrolável, mas sobretudo para que as redes sociais se tornem, mais do que nunca, espaços de troca, apoio, solidariedade, resistência, crescimento e, conforme Vygotsky nos prova, de elevação da nossa consciência. Que a importância e a força do grupo nos dê ânimo e coragem nessa batalha contra o inimigo invisível externo e contra nossos piores temores internos. Que sigamos juntos nesta jornada!




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROCO, S.M.S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade. Paraná, 26 (1). Pp. 22-31, 2014. Disponível em: <https://www.researchgate.net/journal/1807-0310_Psicologia_e_Sociedade> Acesso em: 30/09/2019.

BOCK, A.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M.L. Psicologias – uma introdução ao estudo da psicologia. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MORAES, E. et al. O poder do grupo. Blog não-palavra. Disponível em: <https://nao-palavra.blogspot.com/2019/>. Acesso em: 05/01/2020

PHILIPPINI, A. Grupos em arteterapia: redes criativas para colorir vidas. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.

REGO, T. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

SEI, M.B.; GONÇALVES, T. (org.). Arteterapia com grupos: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

ZANELLA, Andréa Vieira et al . Questões de método em textos de Vygotski: contribuições à pesquisa em psicologia. Psicologia &  Sociedade,  Porto Alegre ,  v. 19, n. 2, p. 25-33,  Aug.  2007 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04/02/2020.

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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires



Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®,  Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo

A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.

2 comentários:

  1. Isabel,
    estava ansiosa aguardando por este texto. Muito bom esse conteúdo, digno de leitura várias vezes ! Tal qual o seu texto anterior, que li mais de uma vez, pois a cada frase, me surgia uma ideia, uma reflexão.
    Parabéns pelos 2 textos.
    Simplesmente adorei.
    E que venham mais para que eu continue lendo e refletindo !
    Um grande abraço,
    Claudia Abe - Arteterapeuta e Farmacêutica

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  2. Claudia,
    Muito obrigada pelo seu feedback! Fico muito feliz em saber que meus textos tenham podido conduzir a ideias e reflexões. Grata, mais uma vez, por compartilhar sua opinião! Em breve, virá mais um texto.
    Abraços,

    Isabel

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