segunda-feira, 30 de março de 2020

O OLHAR SOB NOVAS PERSPECTIVAS EM ARTETERAPIA


Colagem tridimensional de Ferreira Gullar

Por Patricia Serrano -  RJ

Por ocasião do trabalho de conclusão do módulo Gestalt da Arte – Percepção e tomada de consciência do curso de formação em Arteterapia que participo, tive a oportunidade de entrar em contato com os principais conceitos da Gestalt e articular com as técnicas expressivas da Arteterapia. 
Trabalhamos duas ferramentas da Gestalt Terapia: o conceitos maximizando e minimizando. Juliano (1999) nos traz as seguintes definições: 
Maximizando – quando o cliente fica preso a detalhes, incapaz de ter uma visão geral e ampla, é possível sugerir que mude de lugar na sala, assuma outra posição, concretamente olhando por um outro ponto de vista (...) que assuma uma posição na qual possa ter uma perspectiva totalmente diferente. 
Minimizando – ocorre quando o cliente precisa “retirar” energia de um certo tema e é necessário trabalhar novas perspectivas. 
Desses conceitos extraímos basicamente a ideia de uma mudança de ponto de vista, uma nova perspectiva, mudança de posição e ampliação do olhar. Muitas vezes, diante do sofrimento psíquico, o indivíduo paralisa e tem dificuldade de identificar um novo olhar sobre o problema e encontrar saídas. 
Segundo Dalgalarrondo (2008) nas síndromes depressivas, por exemplo, dentre vários sintomas, há uma predominância de sentimentos de tristeza e tédio, desesperança, ruminações com mágoas antigas e dificuldade de tomar decisões. O referido autor nos traz a poesia de Fagundes Varella que representa bem esse estado de sofrimento psíquico: 
E pouco a pouco se esvaece a bruma,
Tudo se alegra à luz do céu risonho
E ao flóreo bafo que o sertão perfuma.
Porém minh’alma triste e sem um sonho
Murmura olhando o prado, o rio, a espuma:
Como isto é pobre, insípido, enfadonho! 
O poeta nos fala de um olhar empobrecido, insípido e enfadonho, e nós terapeutas de que forma nos colocamos diante dessa demanda na clínica tanto individual quanto grupal? De que forma podemos nos utilizar das técnicas expressivas para minimizar esse sofrimento e proporcionar no setting terapêutico um novo olhar e/ou um novo posicionamento? 
A partir desses questionamentos entramos em contato com a possibilidade criativa através do trabalho com o tridimensional. 
Segundo Moraes (2019) o tridimensional tem como propriedade a possibilidade de deslocar o olhar, de explorar outras perspectivas, obter novas percepções de um mesmo objeto, cenário ou imagem, bastando para isso movimentar-se. Estimula a busca de soluções, o reconhecimento dos recursos, a criação de estratégias e suas execuções, além de trabalhar a proatividade, o pensar fora da caixa, em especial quando explorada a pluralidade dos materiais. 
TRABALHO DESENVOLVIDO 

Colagem tridimensional de Ferreira Gullar
Munidos desses conceitos, desenvolvemos a técnica grupal com o seguinte tema: Ferreira Gullar e a Colagem Tridimensional. Ferreira Gullar, poeta, escritor e crítico de arte, poucos anos antes de sua morte, em 2016, enveredou pelas artes plásticas, fazendo colagens em relevo que, segundo ele, nasciam do acaso, conforme recortava materiais de cores diversas. Com a palavra o escritor descrevendo seu processo criativo: 
“Estava recortando um papel de cor verde, quando de repente o avesso desse papel, que era de outra cor, se mostrou: colei o recorte assim mesmo, isto é, a forma verde que recortara e mostrando o avesso de cor cinza, que passei a fazer em formato maior.”
Inspirados por esse artista das palavras e por que não das cores, também nos utilizamos de sua poesia para sensibilizar o grupo antes da atividade em si. Segue “Traduzir-se”: 


Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.



Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.



Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.



Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.



Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.



Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.



Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte? 

Ferreira Gullar , Na Vertigem do Dia. 1980.
Sensibilizados visualmente e através das palavras de Ferreira Gullar, iniciamos a atividade propriamente dita. 
Inicialmente propomos aos participantes que entrassem em contato com as folhas A4 coloridas e fizessem a escolha de duas delas de cores distintas colando uma na outra. Disponibilizamos tesouras, estiletes e cola para que através do recorte, colagem e dobradura eles fossem encontrando formas que saíssem do bidimensional para o tridimensional. 
Após essa etapa, sugerimos que a produção fosse manuseada de maneira que o participante pudesse observar novos ângulos e perspectivas da forma tridimensional que criou. 
Segundo Moraes (2019) colocar o sujeito na experiência com o material significa colocá-lo para agir sobre ele em suas questões psíquicas. Sugere que o arteterapeuta atente para os “verbos” ou às ações que cada material proporcionará externa e internamente em seu cliente. No caso da construção da escultura, por exemplo, portanto o tridimensional, a referida autora nos fala que as ações provocadas são: estruturar, construir, reconstruir, edificar, concretizar, materializar, dar corpo, fazer crescer, levantar, ficar em pé, erguer, verticalizar, buscar soluções, formar estratégias, executar, realizar, “batalhar”, persistir.
Importante estar atento a esses verbos pois eles vão nos possibilitar fazer a ligação entre o discurso do cliente, portanto a sua necessidade, com a técnica expressiva de escolha para trabalhar a questão.

No compartilhamento da atividade foi visível o quão surpreendente e potente se deu o processo de criação e esses “verbos” estavam tão presentes nos discursos dos participantes. E para além desse processo criativo inicial, que por si só já é riquíssimo de reflexões, essa técnica ainda nos permite propor o estímulo a um novo olhar sobre o objeto como um exercício concreto de ver as situações de vida sob uma nova perspectiva - o que muitas vezes se faz necessário para a manutenção da saúde mental.
 Esse trabalho foi desenvolvido em dezembro de 2019 e hoje, março de 2020, ao escrever sobre ele é possível identificar a sua perfeita aplicabilidade no momento atual em que estamos vivendo as consequências da pandemia do Corona Vírus no Brasil.
 Um cenário da doença que ainda era algo distante da nossa realidade mas que em pouco tempo se fez presente através da necessidade premente de isolamento social. Como psicóloga não pude deixar de observar através das redes sociais as consequências deste distanciamento na saúde mental das pessoas – inicialmente sentimentos de medo, angústia, dúvidas e insegurança mas também por outro lado manifestações de criatividade em que para algumas pessoas foi possível enxergar esse momento por outros ângulos e possibilidades, resgatando encontros familiares através do virtual, criando redes de apoio para pessoas mais vulneráveis nesse momento e até mesmo encontrando os benefícios pessoais de desacelerar o ritmo da vida.
 Ainda temos muitos enfrentamentos daqui pra frente e num nível alto de complexidade mas deixo aqui o convite para a possibilidade de um olhar criativo, um olhar que saia do bidimensional e vá para o tridimensional na busca por novas perspectivas e ângulos do que estamos vivendo.
 Para finalizar, a arte da poesia para aquecer o nosso coração: 
Estamos distantes
e com a saudade
enxergamos os detalhes
Zack Magiezi

Referência Bibliográfica:
DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.
GULLAR, F. Traduzir-se In: GULLAR, FERREIRA. Na Vertigem do Dia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
JULIANO, J.C. A arte de restaurar histórias: diálogo criativo no caminho pessoal. São Paulo: Summus editorial, 1999.
MORAES, E. Pensando a Arteterapia, Vol. 2. Divino de São Lourenço: Semente Editorial, 2019.
KAZ, L. A revelação do avesso de Ferreira Gullar. Texto publicado do site da revista Veja, Rio de Janeiro, 2014 (Acesso em: https://www.uqeditions.com/artigo-ferreira-gullar)

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Sobre a autora: Patrícia Serrano


Psicóloga 
Arteterapeuta em formação 
Pós-graduada em Psicologia Hospitalar pela FIOCRUZ
Atendimentos clínicos individuais
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos materiais e eventos

3 comentários:

  1. Comentário enviado por Simone Miranda:
    Parabéns, Patrícia! Ficou excelente seu texto! Ficou sensível, poético e significativo!

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  2. Comentário enviado por Tania Salete:
    *Parabéns, Patricia! Riqueza de conteúdo, de experiências e reflexões! Grata pelo compartilhamento e convite à experimentacão*! Tania Salete

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  3. Parabéns pelo trabalho, Patrícia! ótimas reflexões!

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