segunda-feira, 18 de maio de 2020

OS LIMITES E A CRIATIVIDADE – Parte 1




naopalavra@gmail.com


Já se passaram dois meses que nossas vidas foram absolutamente atravessadas pelo fenômeno corona vírus. Antes de sermos terapeutas, somos seres humanos também inseridos neste fenômeno e inicialmente, no meu íntimo, precisei de um tempo para me compreender em meio ao caos e compreender como eu poderia atuar e contribuir nas funções de psicóloga e arteterapeuta. Afinal, terapeutas, precisamos também acolher nossas humanidades.

Desde que publiquei meu último texto neste blog, chamado “Criar e viver se interligam” CLIQUE AQUI no dia 23 de março, em meio a minha própria organização pessoal, todo meu trabalho e energia psíquica foram direcionados para o acolhimento dos pacientes nesse período de tamanha instabilidade, a migração dos atendimentos presenciais para o on line (inicialmente respaldada pela psicologia e posteriormente a partir da autorização temporária da UBAAT para os atendimentos arteterapêuticos on line) e a supervisão de terapeutas atuantes no tempo presente. (Cabe aqui observar, como sair de nós mesmos e nos disponibilizar ao outro tem, por si só, um efeito organizador)

No campo do estudo, desde o início apostei na pesquisa sobre a CRIATIVIDADE na busca de embasamentos e instrumentos para a travessia deste enorme desafio no coletivo e nas biografias de cada sujeito. Este estudo foi aquecido nos encontros (agora virtuais) dos grupos de estudos e palestras, aos quais eu pude além de teorizar, dialogar e debater com meus pares sobre como podemos atuar como terapeutas, cooperando para a saúde mental neste cenário tão atípico. (E então, instigada pelo grupo encontrei o caminho para minha contribuição)

No primeiro texto referido, parti de Fayga Ostrower e seu livro “Criatividade e processos de criação”, e pelas palavras da autora, me apropriei da ideia de que “criar e viver se interligam”, sendo assim a criatividade, não apenas pertencente ao campo da arte, mas antes, um jeito de pensar e uma forma de lidar com a vida. Seguindo o estudo em diálogo com as parcerias que me compõem, foi-me sugerido o livro “Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte” de Stephen Nachmanivitch, e este vem ampliando belamente minhas reflexões sobre a criatividade. Já em suas primeiras páginas, as palavras do autor me afetaram:

O conhecimento do processo criativo não substitui a criatividade, mas pode evitar que desistamos dela quando os desafios nos parecerem excessivamente intimidadores e a livre expressão parece bloqueada. Se soubermos que nossos inevitáveis contratempos e frustrações são fases do ciclo natural do processo criativo, se soubermos que nossos obstáculos podem se transformar em beleza, poderemos perseverar até a concretização de nossos desejos. Essa perseverança é muitas vezes um verdadeiro teste, mas há meios de passar por ele, há placas de sinalização. E a batalha, que é certamente para toda a vida, vale a pena. É uma batalha que gera um incrível prazer e uma enorme alegria. Todas as nossas tentativas são imperfeitas, mas cada uma dessas tentativas imperfeitas traz em si a oportunidade de desfrutar um prazer que não se iguala a nada neste mundo. 

O processo criativo é um caminho espiritual. E essa aventura fala de nós, de nosso ser mais profundo, do criador que existe em cada um de nós, da originalidade, que não significa o que todos nós sabemos, mas que é plena e originalmente nós. (NACHMANOVITCH, 1993, p.23)

É sabido que vivemos tempos de inevitáveis contratempos e frustrações. Mas segundo o autor, “se soubermos que nossos obstáculos podem se transformar em belezas, poderemos perseverar”. E aqui está um dos pontos que mais têm me intrigado nos atendimentos e supervisões clínicas: a maneira como cada um tem lidado com as impossibilidades que forçosamente os impele o tempo presente em sua vida prática. Afinal, como disse o autor: “essa aventura fala de nós... do criador que existe em cada um de nós”.  

Este livro tão rico em reflexões sobre aspectos da criatividade, na música, na arte e na vida, traz um capítulo em especial chamado “O poder dos limites”. Afinal, nas palavras do autor:
Olhando agora, sobre o mar, os pássaros, a vegetação, vejo que absolutamente tudo na natureza nasce no confronto entre o poder da livre expressão e o poder dos limites. Os limites podem ser intrincados, sutis e duradouros... (NACHMANOVITCH, 1993, p.41)

Sendo os limites tão naturais e corriqueiros na vida, o autor nos apresenta o poder que os limites podem imprimir em cada um de nós:

Os limites estimulam a intensidade... descobrimos que a contenção amplifica a força... Como escreveu Igor Stravinsky: ‘Quanto mais limites nos impomos, mais libertamos nosso ser dos grilhões que aprisionam o espírito’...

Trabalhar dentro dos limites impostos pelo meio nos obriga a mudar nossos próprios limites... (p 83-84)

Por fim, o autor chega a nos inspirar com a constatação de que a partir da restrição por estreitos limites, podemos alcançar outras dimensões de liberdade:

Se certos valores estão contidos dentro de estreitos limites, outros estarão livres para variar com mais força. É por isso, por exemplo, que um quarteto de cordas, solos e outras formas limitadas podem alcançar uma maior intensidade emocional do que as sinfonias, e fotos em preto e branco podem revelar maior força do que as coloridas... Se tivermos todas as cores disponíveis, às vezes estamos demasiadamente livres. Com uma dimensão restrita, a expressão se torna mais livre em outras dimensões. (p 84)

Os limites e a criatividade na vida prática

Quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre as pedras. Liberdade caça jeito.
Manoel de Barros

Há alguns anos uma máxima da psicanálise marcou minha memória: “Você é o que o impossível produz em você.” Ou seja, quando você se depara com uma situação em que ao primeiro olhar lhe parece impossível, como você lida com ela? Paralisa? Desiste? Nega? Enfurece-se? Ou “teimosamente” tenta encontrar algum pequeno espaço aparentemente imperceptível de possível? É neste pensamento que hoje temos, por exemplo, sobreviventes de guerras para contar os possíveis que encontraram dentro do maior impossível de suas vidas.

Neste contexto, minha primeira reflexão se dirige aos terapeutas e suas humanidades: Quais limites o fenômeno atual têm imposto a você? Como você lida com eles? Em meio aos impossíveis, é possível amplificar sua força? Trabalhar dentro dos limites impostos pelo meio e ampliar seus próprios limites? Experimentar outras dimensões de liberdade? Transformar os obstáculos em beleza? Conectar-se com seu caminho espiritual e encontrar o sentido?

Uma vez respondidas estas perguntas, é tempo de ir à campo.

A partir da autorização da UBAAT para que arteterapeutas atuassem em atendimentos on line, um primeiro limite nos apresenta: como atender em Arteterapia com tamanha restrição de materiais?

Este é o objeto do próximo texto. Afinal, nós arteterapeutas sabemos que a criatividade caça jeito!



Referência Bibliográfica:
NACHMANIVITCH, Stephen. Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e  na arte.


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Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

6 comentários:

  1. Parabéns pelo texto instigante, Eliana! Sinto que realmente a contenção pode servir para ampliar a força. A prisão, paradoxalmente, permite o vôo. Cabe a nós, descobrirmos as potencialidades destes tempos de pandemia.

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  2. Parabéns pelo texto instigante, Eliana! Sinto que realmente a contenção pode servir para ampliar a força. A prisão, paradoxalmente, permite o vôo. Cabe a nós, descobrirmos as potencialidades destes tempos de pandemia.

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  3. Parabéns! Instigada a responder estas perguntas com dados da realidade de tres anos,acrescida do novo componente: COVID19.

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  4. Parabéns! Instigada a responder estas perguntas com dados da realidade de tres anos, acrescida do novo componente: COVID19.

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  5. O limite que delineamos pode ser fonte de novas potências! Maravilhoso.E nós temos trabalhado tanto esta questão do limite, não é? Adorei!Suas palavras,vêm, como sempre, carregadinhas de generosidade. Obrigada, Eliana.

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