Por
Eliana Moraes MG/RJ
naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra
Ao ouvirmos os movimentos da
dinâmica grupal, o grupo de estudos “Teorias da Arte e a Arteterapia” sofreu
uma atualização de sua proposta neste ano. Antes estudávamos “Do Espiritual na
Arte” de Wassily Kandinsky, que ainda permanece como uma grande referência para
nós. Atualmente optamos por estudar “Criatividade e Processos de Criação” de
Fayga Ostrower. Novas participantes, novo horário, mas a energia investida no
estudo e construção do conhecimento em Arteterapia, permanece.
Compreendemos que a Arteterapia
possui duas pernas para caminhar: a imagem e o processo. Podemos nos
instrumentalizar em uma pluralidade de teorias sobre a leitura das imagens,
sendo a teoria mais estabelecida em nossa formação, a Psicologia Analítica que,
de fato, nos oferece fonte inesgotável sobre a leitura simbólica das imagens.
Entretanto, como arteterapeutas estudiosos, não podemos nos esquecer da outra
perna que nos sustenta: o processo.
Antes da imagem constelada,
uma série de experiências, expressões, insights, movimentos e leituras
acontecem, e cabe ao arteterapeuta ter uma escuta atenta a este processo. A
clínica nos mostra não raras vezes em que, antes de nos debruçarmos sobre a
imagem resultante de um trabalho arteterapêutico, a vivência do processo nos
oferece tanto material para elaboração e integração à consciência, que ela em
si se torna a questão terapêutica a ser trabalhada nas próximas sessões.
A prática nos mostra também que a introdução do processo criativo desperta o que temos chamado de "deslocamento de discurso": o paciente traz uma certa demanda terapêutica quando se expressa pela linguagem verbal, entretanto a abertura para a expressão não verbal provoca o deslocamento para um outro discurso, com novas demandas, muitas vezes mais profundas do que a primeira expressão. Esse potencial deve ser compreendido e manejado pelo arteterapeuta de forma consciente. E aqui entra o conhecimento das linguagens dos materiais para que o arteterapeuta ofereça o mais facilitador deste processo. Sobre o tema dos materiais influenciando o processo criativo falaremos em uma outra oportunidade.
O processo está diretamente
ligado ao criar. E é neste contexto que Fayga Ostrower nos estende a mão, pois
ela teoriza sobre o fenômeno da criação. No grupo de estudos, nosso exercício é
ler sobre este fenômeno, pensando sobre suas aplicações para dentro do setting
arteterapêutico: um ambiente em separado que conta com a presença/transferência
com o arteterapeuta – variáveis que potencializam em muito tudo o que o criar
nos proporciona.
Através de Fayga,
“entendemos o fazer e o configurar do homem como atuações de caráter
simbólico.” (OSTROWER, 2014 p 5) Ou seja, o ato criativo humano também é objeto
de nossa leitura simbólica, sobre seu modo de funcionamento, seu jeito de ser,
jeito de viver. Desta forma, acolhemos o processo criativo como a expressão de
conteúdos que devem ser ouvidos com a escuta mais refinada do arteterapeuta
pois segundo a autora:
“Em cada ato nosso, no exercê-lo, no compreendê-lo e no
compreender-nos dentro dele, transparece a projeção de nossa ordem interior.”
(OSTROWER, 2014, p9)
Entendemos que as
experiências com o ato criativo dentro do setting arteterapêutico devem,
continuamente, serem relacionadas com as experiências de vida dos pacientes, cooperando
assim para que a criação sirva para seu processo de autoconhecimento mas também
para que ele compreenda que a criatividade não é apenas uma questão de “arte”,
mas antes, uma postura de vida, um jeito de pensar, um desenvolvimento do
olhar. Como nos afirma Fayga, criar e viver se interligam:
“Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a
realização desse potencial uma de suas necessidades.
As potencialidades e os processos criativos não se restringem,
porém à arte. Em nossa época... unicamente o trabalho artístico é qualificado
de criativo. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode
ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De
fato, criar e viver se interligam.” (OSTROWER, p 5)
Fayga também nos adverte
sobre o processo de alienação que o homem vem sofrendo, ao se distanciar de
algo que lhe compõe como ser humano, seu potencial criador:
“Admitimos que, em nossa época, o consciente esteja sendo
reprimido, manipulado, massificado, enrijecido. Acreditamos, também, que a
pessoa rígida, altamente racionalizada, vivendo em um meio cultural que em sua
filosofia de vida é racionalista e reducionista, não seja capaz de criar,
entretanto, consideramos essa consciência, repressiva e esmagadora, como uma
deformação de consciente...
... o homem contemporâneo, colocado diante das múltiplas funções
que deve exercer, pressionado por múltiplas exigências, bombardeado por um
fluxo ininterrupto de informações contraditórias, em aceleração crescente que
quase ultrapassa o ritmo orgânico de sua vida, em vez de integrar como ser
individual e social, sofre um processo de desintegração. Aliena-se de si, de
seu trabalho, de suas possibilidades de criar e de realizar em sua vida
conteúdos mais humanos...
Procurando recuperar certos valores humanísticos tentamos,
contudo, fornecer alguns elementos para que se enfrente melhor uma época como a
nossa, em que dos sistemas e dos processos dirigidos de massificação, só vemos
resultar um condicionamento muito grande para os indivíduos, um aviltamento e
um esmagamento do seu real potencial criador.” (OSTROWER, p 6-7)
A partir desta leitura,
compreendemos que compõe o ofício do arteterapeuta sustentar um espaço que
promova um reencontro do ser humano com seu potencial criativo, pois a cada
atendimento fazemos um convite para o profundo contato entre o experienciador da
Arteterapia e sua criatividade.
O processo de escrita deste
texto se deu no início do mês de março, antes da explosão do fenômeno coletivo
que estamos vivendo em decorrência da batalha que travamos contra o coronavírus
no Brasil. Nos últimos dias adentramos um período extremamente difícil em que
precisaremos nos resguardar em isolamento social e reclusão em nossos lares.
Todos os desdobramentos emocionais são possíveis neste momento e já percebo o
grande número de terapeutas atuando (ainda que não na linha de frente como
nossos colegas das equipes de saúde em hospitais, mas) na retaguarda para a
sustentação da saúde psíquica de nós seres humanos neste momento desestabilizador
e sem precedentes.
Como arteterapeuta atuante e
consciente do meu papel no social, não poderia me furtar de acrescentar uma
nota neste texto: o que nos especifica como terapeutas que se sustentam na
arte? O estímulo à CRIATIVIDADE! Fayga afirma que "O homem cria não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando." (OSTROWER, 2014, 10)
Em tempos de caos, escassez, isolamento e reclusão, nós arteterapeutas somos agentes para a recuperação de algo que nos caracteriza como humanos, que nos fornece elementos para enfrentarmos esta época (e qualquer época, porque somente através dela chegamos até aqui). É tempo de resgatar algo que nos é inerente e uma de nossas necessidades: nosso potencial criador, não “apenas” na arte, mas na vida. E assim poderemos crescer. É tempo de rompermos o processo de massificação e desenvolvermos um olhar criativo diante do imenso desafio que tempos pela frente. Não nos demorando no primeiro olhar perplexo, mas buscando recursos e soluções para além do obvio. Em meio a tantos impossíveis, buscar possíveis dentro de casa ou através da tecnologia (graças a Deus por ela neste momento), para nossas produções, contribuições, relações. Pois, mais do que nunca, em nossos tempos, criar e viver se interligam.
Em tempos de caos, escassez, isolamento e reclusão, nós arteterapeutas somos agentes para a recuperação de algo que nos caracteriza como humanos, que nos fornece elementos para enfrentarmos esta época (e qualquer época, porque somente através dela chegamos até aqui). É tempo de resgatar algo que nos é inerente e uma de nossas necessidades: nosso potencial criador, não “apenas” na arte, mas na vida. E assim poderemos crescer. É tempo de rompermos o processo de massificação e desenvolvermos um olhar criativo diante do imenso desafio que tempos pela frente. Não nos demorando no primeiro olhar perplexo, mas buscando recursos e soluções para além do obvio. Em meio a tantos impossíveis, buscar possíveis dentro de casa ou através da tecnologia (graças a Deus por ela neste momento), para nossas produções, contribuições, relações. Pois, mais do que nunca, em nossos tempos, criar e viver se interligam.
E a criatividade nos manterá de pé.
Referência Bibliográfica:
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Editora
Vozes, 2014.
Sobre a autora: Eliana Moraes
Arteterapeuta e Psicóloga.
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia.
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2
Parabéns pelo exelente artigo.
ResponderExcluirObrigada Gilmar! Bem vindo!
ExcluirObrigada Eliana por esse texto vivificador!!!
ResponderExcluirMuito obrigada querida!
ExcluirComentário enviado por Tania Salete:
ResponderExcluirDe novo, excelente texto e oportuno. Um alerta para retornarmos nosso olhar para dentro a fim de resgatar nosso potencial criativo. Porque viver e criar se interligam e dão vida!* Tania Moreira - Caminhartes.arteterapia
Excelente texto, Eliana. Muito claro e preciso sobre a importância da Arte como processo terapêutico. O ser humano é um criador por natureza e necessidade para se manter saudável e o momento atual pede que nós, arteterapeutas, duvulguemos esse recurso maravilhoso através da criatividade que"nos manterá de pé".
ResponderExcluirQuerida! Muito obrigada pelo feedback e pela companhia nesta jornada!
ExcluirComentário enviado por Beatriz Coelho:
ResponderExcluirParabéns Eliana por nos lembrar sempre esta ideia. Criar e Viver são o mesmo processo. Qdo nossos desejos estão colonizados pelas forças consumistas, atuando de formas visíveis e invisíveis é a nossa Vida que está em perigo, uma vida incapaz de criar novos olhares, novas sensibilidades, novas relações. Entramos em decadência. Obrigada pelo texto.