segunda-feira, 25 de abril de 2022

PELÍCULA CINEMATOGRÁFICA, UM RECURSO NA ARTETERAPIA ou, simplesmente, CINEMATERAPIA. (Parte 1)

 


Por Milena Medeiros - Volta Redonda - RJ
milolmedeiros@gmail.com
 
O texto a seguir é síntese e fruto do Trabalho de Conclusão de Curso com base na casuística apresentada no período prático de especialização em Arteterapia - realizado na Clínica Pomar - junto a significativos elementos de pesquisa continuada e experiências colhidas, por parte de meu repertório de aplicabilidade no atendimento individual na atualidade, inclusive, no que abrange o setting arteterapêutico digital. A temática refere-se a Cinematerapia, termo criado por profissionais da psicologia, para uma técnica específica que se utiliza de Películas Cinematográficas e suas narrativas fílmicas, como recurso terapêutico. Uma cena, um diálogo, imagens com um ou mais personagens, o impacto sinérgico da música, os efeitos sonoros.  Detalhes de histórias contadas através de uma película (filme), que por retratarem dubiedades da própria vida, surpreendem por sensações e reflexões inesperadas, capazes de criar novas formas de subjetividade no observador. Em vista disso, a relação entre a psicologia e o cinema é objeto de estudos há décadas, pois está em função de um método que aponta a possibilidade em comunicar o efeito de fragmentos emocionais do paciente/cliente, no que diz respeito ao bom uso dos insights obtidos a partir de enredos fílmicos e trabalhados no setting terapêutico de forma detalhada e pontual.  O referente texto foi estruturado em três partes e elaborado da seguinte forma: A primeira - no encontro de hoje - as informações estarão a serviço da Sétima Arte e o que ela representou na sociedade, inclusive na de nosso país; na segunda parte: A Cinematerapia e o processo terapêutico no mundo, com tópicos sobre os benefícios no processo arteterapêutico, características e técnicas de aplicação; compondo a terceira e última parte:  Relatos de casos nas modalidades presencial e online. 

Com tais considerações, adentro o Território sagrado “Não Palavra” com o intuito de facilitar um encontro entre você leitor, a Sétima Arte: o cinema e a Arteterapia. Convidando-o a passear pelos contextos da relação entre Cinema- História e Poder, chegando ao Cinema Novo. Uma maneira diferente de fazer cinema, na década de sessenta, em que vários novos cineastas surgiram dispostos a revolucionar tanto a maneira de realizar as películas, quanto a forma de pensar as relações entre seus conteúdos e a sociedade brasileira. Assim, poderemos observar que o contexto evidencia em toda a sua linha do tempo - intervenções, rupturas e quebras de paradigmas. O que faz sentido com a busca do equilíbrio psíquico, conceito esse que a Arteterapia propõe. 

 Múltiplas são as formas de expressão artística utilizadas no setting de Arteterapia, apontadas como fonte de influência a favor da saúde. Dessa maneira, cada arte, considerada como ferramenta da criatividade no campo arteterapêutico, permitindo-se a liberdade de expressão sobre os sentimentos vivenciados pelo paciente/cliente - a cada momento da vida - pode comunicar o efeito de um mundo interno fracionado; sendo a arte, o material que está a serviço da cura.  Nessa circunstância, destaco a arte do cinema que se manifesta no indivíduo por influência, tratando-se de um encontro de ideias disseminadas e produzidas por histórias contadas que transmitem mensagens e valores. Um expressivo instrumento que imita a vida e provoca a identificação com os reveses, anseios e desejos mais humanos. Nesse enfoque, a Película Cinematográfica, realização última do cinema, é utilizada como recurso no processo terapêutico desde a década de cinquenta. Facilitando a auto compreensão e movimentando opções de ação que podem desencadear na transformação do Ser Ativo.

 Oliva et al. (2010) explicam que tomando como base a Biblioterapia[1], os psicólogos Berg-Cross, Jennings e Baruch, criaram o termo Cinematerapia. Sendo ela uma técnica que envolve películas aplicadas com o direcionamento do terapeuta e nos formatos individual e de grupo.

Ilustrando aspectos de uma experiência prática com um grupo de mulheres, em ambiente corporativo e na modalidade presencial, a aplicabilidade de uma Película Cinematográfica direcionada - com base na técnica da Cinematerapia - como estímulo a uma possível hipótese diagnóstica, produziu a composição entre o grupo e a sua própria comunicação. A materialidade expressiva acercou-se de conteúdos trabalhados em uma história fictícia que influenciou por comportamento, o mundo interno do indivíduo em comum na formação especifica do grupo em questão; Tal fenômeno abriu espaço para que novas concepções fossem acolhidas. Por consequência, pôde-se observar que a aplicação da técnica marcou de forma concreta o diagnóstico grupal. Viabilizando assim, a estruturação sobre o ciclo seguinte até o fechamento de todo o processo arteterapêutico. 

Tal experiência suscitou um tema que me propus a investigar: Como a arte do cinema, em Películas Cinematográficas, pode, como recurso, influenciar no processo arteterapêutico? Processo esse de significativo valor no ambiente arteterapêutico digital, experenciado pelo contexto COVID-19. 

... E PORQUE A SÉTIMA ARTE?
 
Ismail Xavier, professor e crítico de cinema, explica o motivo:  em 1911 o intelectual e cinéfilo Italiano, Ricciotto Canudo, morador de Paris e interessado na nova versão de diversão popular, cunhou tal expressão e escreveu um manifesto com a ideia organizada em um sistema. Havia estruturalmente três artes de espaço: a pintura, a escultura e a arquitetura; e três artes de tempo: a música, a dança e a poesia. Para Canudo, o cinema era a grande síntese das seis artes descritas; portanto, a sétima. Por essa vertente, reivindicou a condição de arte para o próprio cinema, ligando-o de forma simultânea a dinâmica social e espacial da tecnologia, do movimento, das máquinas e de um período caracterizado pelo modo de vida urbano. Desde então, ao Cinema foi atribuído o caráter estético, reconhecido na qualidade de linguagem com a capacidade de renovar, transformar e disseminar as demais artes.

O professor Xavier (2017), em seu livro A Sétima Arte: Um culto Moderno, explica que “o valor positivo do cinema estaria [...] em sua modernidade, concebido dentro de um pensamento que entendia a modernidade como esquecimento e oposição à tradição, como ruptura radical com o passado”. Um passado surgido no século dezenove, quando a película e as pesquisas sobre o tema, segundo Julia Lemos Lima (2006), especialista em Comunicação Social, eram realizadas em volta da possibilidade de reproduções de sequências de ações que buscavam representar temas do cotidiano comum e que eram promovidas por movimentos naturais dos humanos em frente às câmeras. Retomando as ocorrências sobre a movimentação da Sétima Arte a partir das intervenções de Canudo, no início do século vinte, Lima (2006) informa que o cinema se expandiu pelo mundo, conduzido pelo interesse do público que via em seu meio de comunicação próprio a compreensão de mudanças no cotidiano da sociedade. E foi nos Estados Unidos que tal expansão se estabeleceu, dentro de uma indústria cinematográfica e acompanhada de uma tecnologia mais aprimorada: as películas tornaram-se mais longas e com enredos mais complexos; tanto a linguagem narrativa clássica quanto as oportunidades artísticas, iniciaram-se após esse movimento de expansão, configurando-se como a principal maneira de se criar cinema, dando espaço a cinematografia ilusionista com cenas apresentadas na forma linear e destacadas pela continuidade, levando o telespectador a transportar-se da realidade, inserindo-se no espaço e no tempo do que se contava.

Jose D’ Assunção Barros (2007), doutor e professor em história, nos esclarece que:
 
O cinema é ‘produto da história’ – e, como todo produto, um excelente meio para a observação do ‘lugar que o produz’, isto é, a sociedade que o contextualiza, que define sua própria linguagem possível, que estabelece seus fazeres, que institui suas temáticas. Por isso [...]a mais fantasiosa obra cinematográfica de ficção carrega por trás de si ideologias, imaginários, relações de poder, padrões de cultura. [...]e também as histórias política, social e econômica devido ao fato de que as alçadas de relação de poder (poderes público e privado) são contempladas pela indústria cinematográfica. 

Barros (2007) conclui que tal relação de poder revela-se ambígua e igualmente complexa. Por  um lado há a relação política em que o cinema - em momentos oportunos - é utilizado pelo viés da dominação, pela  adoção de ideias ou crenças e pelos agentes sociais (instituições governamentais,  partidos políticos,  igrejas,  universidades e as múltiplas associações que possuem a mesma composição social); que   compreendem a importância de estilos fílmicos como o documentário, a ficção e películas sobre  propagandas políticas, como veículos de comunicação e de ampliação  -  ligadas a um sistema de manipulação do pensamento e de ideias a serviço do poder. E, por outro lado, o Cinema que permaneceu, evidentemente, com   a sua independência em relação aos agentes sociais, inclusive, os governamentais, e por esse motivo funciona também como contrapoder, ou seja, opondo-se a um poder, anteriormente, definido.  “Neste sentido, se o Cinema com sua produção fílmica pode ser examinado como instrumento de dominação e de imposição hegemônica, ele também pode ser examinado como meio de resistência “(BARROS, 2007, p.8).

Dois conflitos históricos exemplificarão ambas as relações sobre o contexto acima mencionado: Tratar-se-á o cenário do cinema como agente de dominação no conflito referente à Primeira Guerra Mundial.  A especialista em história cultural, Patrícia Mariuzzo (2014), esclarece que em 1914, a Sétima Arte, tornou-se ferramenta para divulgar a guerra e recrutar soldados. As cenas eram capturadas de forma distante e fixa, não somente pela limitação técnica da época, mas também pelas proibições de filmagens por parte dos militares. Tais edições se tornaram grandemente populares junto ao público, sendo verdadeiras ou não e reforçavam a superioridade militar e moral sobre um antagonista.   Havia filmes produzidos especialmente com a missão de influenciar pessoas a financiar o esforço de guerra, recrutar e apoiar a indústria de forma geral, ligada à guerra, como material bélico, por exemplo.

Exemplificando o cenário como agente de resistência, infere-se o Cinema Novo, movimento vigoroso de ação popular que agregou à sociedade variados recortes cultural, político e social. Segundo Mariana Barbedo (2011), mestre em História Social, o país vivenciou um   período capital, marcado pela disputa de classes em que muitas eram as esperanças depositadas num traçar de mudanças para a sociedade brasileira. Neste contexto, surgiram produções marcantes da cinematografia nacional em que o foco era a arte empenhada em uma função social.  Nessa vertente, Ismail Xavier (2001) coloca-se da seguinte maneira: 

[...] o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. Aqui, atualidade era a realidade brasileira, vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social. Tal busca se traduziu na “estética da fome”, na qual escassez de recursos técnicos se transformou em força expressiva e o cineasta encontrou a linguagem em sintonia com os seus temas. (BARBEDO, 2001, p.13 apud XAVIER, 2001, p.63)
 
Com base na tônica explicitada sobre as relações entre cinema-história e poder junto à influência que o contexto abrange na sociedade - portanto, no indivíduo, podemos inferir que como análise de mundo, o cinema exerce um papel de grande importância e caminha de mãos dadas não somente com a história e a política, mas também com outras áreas das ciências humanas como a Filosofia, a Sociologia e a Psicologia. Essa, relacionando-se com o cinema como recurso narrativo e técnica de intervenção psicoterápica complementar às demais atuações na conduta clínica, recorte temático que comunicarei em nosso próximo encontro. 

Convido você a continuar esse passeio pela tônica da Cinematerapia acompanhando a abordagem em nosso segundo encontro, aqui no Blog “Não Palavra”, de tópicos sobre técnicas de aplicação, características, postura do arteterapeuta e a execução do processo. 

Até lá!
 
 


[1]  Tratamento de doenças ou distúrbios psíquicos através da leitura e da relação do indivíduo com o conteúdo dessa leitura. "biblioterapia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/biblioterapia [consultado em 27-08-2020].
 
 
REFERÊNCIAS
 
CHAVES, Ismail. Porque o Cinema é conhecido como a “Sétima Arte”? Disponível em https://www.sescsp.org.br/online/revistas/ .Acesso em: 10 jul.2020. 

LIMA, Julia Lemos. Cinema e transformação social: variações sobre uma relação tensa. 2006. 84 f. Trabalho de Conclusão de Curso - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 

OLIVA, Vitor; VIANNA, Andréa; NETO, Francisco. Cineterapia como Intervenção psicoterápica: características, aplicações e identificação de técnicas cognitivo-comportamentais. Revista Psiquiatria Clínica, São Paulo, v.37, n.3, 2010. Disponível em: <  https://doi.org/10.1590/S0101-60832010000300008 > Acesso em: 20 jul.2020.
 
     MARIANA, Barbedo. Carlos Diegues entre o CPC e o Cinema Novo, uma reflexão sobre a função do artista no início da década de :1960. Tempos Históricos, São Paulo, 1º semestre de 2011, n.15, p. 170-190. Disponível em:   file:///C:/Users/Dell/Downloads/5698-20982-1-PB%20(2).pdf. Acesso em: 17 jun.2020. 

BARROS, José d’AssunçãoCinema e história :as funções do cinema como agente, fonte e representação da históriaLer História, v.52, 2007, posto online no dia 20 março 2017, <http://journals.openedition.org/lerhistoria/2547>Acesso em:22jul.2020. 

MARIUZZO, Patrícia. A Primeira Guerra Mundial pelas lentes do Cinema. Ciência e Cultura, v.66, n.2, São Paulo, jun.2014. Disponível em< http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200024> Acesso em 19 jul.2020.
 

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Sobre a autora: Milena Medeiros




Arteterapeuta AARJ1122

Olá, Sou Milena Medeiros, uma arteterapeuta com mais de 15 anos de experiência em Gestão de Pessoas no mercado Corporativo. Decidi-me por unir ambas as experiências e hoje atuo, além dos atendimentos individuais arteterapêuticos online, com a Arteterapia no ambiente empresarial.

Algumas formações como preparação a minha profissão de arteterapeuta foram concretizadas e hoje também as utilizo como abordagem no setting: Practicioner em PNL (Programação Neuro Linguística); Análise Transacional - UNAT Brasil - Abordagem psicológica de Erick Berne que trata de maneira prática e compreensível os aspectos importantes da personalidade e das relações entre as pessoas; Visão Sistêmica pessoal e Organizacional com base psicoterapêutica de Bert Hellinger. Também sou Colagistas Digital e analógica, processo que aprendi pós introdução à técnica de Soul Collage®. Como Hobbie, tenho a alimentação Viva no coração, também conhecida como crudivorismo que aplico no setting como técnica expressiva com o foco na memória afetiva por meio dos sentidos sensoriais. A pintura com aquarela faz parte de minha vida e por meio dessa técnica estou finalizando a ilustrações de um livro infantil. 

Maior do que um prazer é a alegria por estar no espaço “Não Palavra”! Esses são os meus contatos: (24)999619963, Instagram: @milenaoliveiramedeiros. 


 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

A ARTE DA DOBRADURA DE PAPEL: ORIGAMI E ARTETERAPIA

 



Por Isabel Pires - RJ

bel.antigin@gmail.com 

            O papel é um dos suportes mais usados em trabalhos artísticos. Mas, além de suporte, também pode ser meio para a realização de belas obras de arte. Participa da vida de todo ser humano de maneira praticamente indispensável. “É nele que começamos a dar nossos primeiros rabiscos, a formular nossas primeiras letrinhas. Nele, registramos nossos maiores segredos” (CARRANO & REQUIÃO, 2013). Basta lembrarmos a linda homenagem que Toquinho fez na sua música “O Caderno”, na qual um caderno se descreve como “confidente fiel”, “amigo” e aquele que vai “seus problemas ajudar a resolver”. Daí, talvez, a relação de afeto que muitos nutrem pelo papel, pelo toque e cheiro dele, por exemplo, num livro novo.

            Inventado pelos chineses, o papel foi o instrumento de registro e armazenamento da história da sociedade através dos tempos. Logo, participa de nossa memória arquetípica, pois aporta um saber ancestral. Com ele, é possível pintar, recortar, colar, desenhar, construir e... dobrar.

Desde a invenção do papel na China em torno de 105 D.C., os japoneses desenvolveram a arte da dobradura de papel ou origami (que, em japonês, significa literalmente “dobrar papel”). Segundo Kanege e Imamura (1999), pesquisadores do origami acreditam que ele tenha surgido quando um monge budista chinês trouxe para o Japão o método de fabricação do papel. No início, como o papel era caro, o origami era usado apenas em cerimônias específicas e religiosas. Pode ter surgido “de ornamentações (katashiro) divinizadas nos templos xintoístas, que eram feitas de papel” (KANEGE & IMAMURA, 1999). Existem origamis utilizados até hoje em cerimônias, como, por exemplo, a representação de duas borboletas (feminino e masculino) expostas em casamentos, e o noshi, um enfeite colocado sobre embrulhos de presente, que demonstra que o doador do presente deseja fortuna ao receptor.  Assim, percebe-se que o origami sempre possuiu um caráter simbólico. Por exemplo, o origami do grou ou tsuru, popularíssimo no Japão e, também, no Ocidente atual, é símbolo de felicidade eterna e longevidade. E os símbolos são a base do trabalho da arteterapia, porque nos trazem notícias do inconsciente dos indivíduos, o qual desejamos trabalhar terapeuticamente.

Em meados do século XIX, o origami passou a ser utilizado como recurso educativo no Japão, mas só foi internacionalizado na década de 30 por Akira Yoshizawa, quando “passou a ser visto como um exercício de criatividade livre e uma importante ferramenta educacional” (YAMADA et al, 2014). Assim, hoje, é frequente seu uso no ensino de geometria nas salas de aula.

De acordo com Yamada et al (2014, p.231), “na terapia, o origami é um recurso benéfico e simples, pois o material é facilmente encontrado, de baixo custo, próximo da vida cotidiana e não oferece perigo ao ser manuseado”. Além disso, segundo as autoras, o origami ativa os dois hemisférios do cérebro, pois desenvolve a coordenação motora e a inteligência não-verbal, a acuidade visual e a visualização tridimensional. Como técnica arteterapêutica, as autoras citadas declaram que o origami permite o “desenvolvimento cognitivo e afetivo, estruturação e ordenação lógica e temporal, expressão plástica e prevenção do sistema nervoso”. Assim, beneficia todas as faixas etárias. Mas esses aspectos e outros, como o desenvolvimento da coordenação motora, tornam o origami excelente sobretudo para o trabalho com idosos. Segundo Yamada et al (2014), a utilização da técnica com grupos da terceira idade provou uma melhora na memória e na autoestima dos participantes do estudo.

Primeiramente, o potencial de utilização do origami no setting arteterapêutico advém do fato de ele ser realizável por qualquer pessoa, independente de idade, sexo e nível social, econômico e cultural. Em atendimentos online, torna-se uma técnica bastante acessível, pois o papel é um material presente em todos os lugares, e o uso de vídeos demonstrativos na internet facilita o processo. Assim, a simplicidade e a praticidade do origami representam vantagens relevantes do seu uso no setting arteterapêutico.

Em segundo lugar, o origami se vale do trabalho das mãos, que gera, entre outros benefícios, prazer e bem-estar e contribui para a autoimagem positiva dos indivíduos. Uma das particularidades do trabalho da arteterapia é justamente o de utilizar a inteligência emocional, inconsciente, que existe nas mãos, o valor do “colocar a mão na massa”, ou, como diz Moraes (2018, p. 75), o “agir criativo”.

Além disso, na visão de Yamada et al (2014, p. 231), o ato de fazer origami em grupo “pode estreitar laços de amizade e afetividade, relaxar pessoas estressadas” e aguçar a criatividade, a concentração e a coordenação motora.

A meu ver, os ganhos da utilização do origami são imensos e vão além dos já citados acima. Para começar, dobrar papeis remete diretamente à nossa infância. Quem nunca brincou de fazer aviões e barquinhos de papel? Assim, é possível estimular um despertar da criança interior do nosso paciente/cliente, o que pode ativar lembranças de sua infância e trazer à tona memórias afetivas.  Além disso, tem o potencial de levar ao resgate da leveza, da ludicidade e da curiosidade inerentes às crianças. A reação de um adulto, ao concluir uma dobradura, é frequentemente de satisfação e alegria. Para muitos, significa sucesso na conclusão de um desafio, um estímulo à persistência e à coragem.

Na execução das peças de origami, é necessário seguir uma determinada sequência, numa posição específica, a cada passo do trabalho. Assim, requisita-se do indivíduo observação, atenção, concentração e disciplina. É preciso enfatizar a marcação dos vincos, a firmeza, o capricho, a precisão e a paciência. Desta forma, a maneira como o sujeito reage às diferentes etapas e exigências do trabalho com o origami informa ao arterterapeuta sobre várias características comportamentais e emocionais do paciente/cliente. É possível, por exemplo, verificar a presença ou ausência de cuidado, controle, delicadeza, calma, para a feitura das peças de origami. Com essa técnica, o arteterapeuta consegue perceber, por exemplo, um paciente ansioso; meticuloso (por exemplo, ao juntar ponta com ponta do papel); impaciente; que tem dificuldade para deixar sua marca / marcar o papel (na hora de fazer os vincos) e/ou para seguir limites (as dobras seguem quase sempre uma linha, ou vinco, do papel).

Além disso, para muitos, o origami pode estimular a paz interior, pois representa uma forma de meditação, já que nos coloca no aqui e agora. Em tempos de valorização do mindfulness, a técnica da dobradura de papeis é excelente ferramenta para o desenvolvimento da atenção plena, o que é importante não apenas para pacientes ansiosos e depressivos, mas para todos os seres humanos.

Para além de tudo o que já foi abordado sobre o origami, não podemos nos esquecer de que as peças dessa técnica são esculturas em papel e, como tal, estão no plano da tridimensionalidade, que envolve o desafio da organização espacial, de equilíbrio e, até, de movimento. Da mesma forma que a escultura tradicional, o trabalho de origami retira a forma que já está potencialmente no material, no caso, o papel. Igualmente, pode-se escolher o suporte, isto é, o tipo de papel, na cor e textura desejados. O resultado são trabalhos de extrema beleza, harmonia, delicadeza e genialidade. E o origami pode ser usado como amplificação de um símbolo surgido na sessão, já que existe dobradura para quase todo tipo de objeto e animal.

Finalmente, a arte da dobradura de papel representa o poder ilimitado de transformação da criatividade humana. Imagine converter um simples pedaço de papel quadrado em diversas formas, das mais simples às mais complexas, dentro de um número sem fim de possibilidades. Mas, nesse caso, diante da folha em branco à nossa frente, não existe a ansiedade do desconhecido, do medo do não saber o que fazer, pois já se sabe, de antemão, o que será realizado. Neste sentido, as etapas pré-definidas representam um campo delimitado, que permite trabalhar organização e estruturação psíquicas. Porém, isso não nos tira o prazer do resultado final, do senso de tarefa cumprida com eficiência e satisfação. A magia dessa transformação, através de movimentos precisos e cuidadosos de nossas mãos, num material simples e delicado como o papel, sempre nos surpreenderá como um truque de mágica bem-sucedido. E a beleza e engenhosidade das obras criadas sempre nos trarão encantamento.

Por isso, convido vocês, arteterapeutas, a levarem essa arte para o seu setting arteterapêutico e oferecer a seus pacientes/clientes a possibilidade de descobrir as infinitas e inesperadas formas escondidas numa simples folha de papel e ousar revelar essas formas em peças de delicada beleza e profundo simbolismo.

 


 

Referências Bibliográficas:

CARRANO, E.; REQUIÃO, M.H. Materiais de arte: sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. 

KANEGAE, M.; IMAMURA, P. Origami: arte e técnica da dobradura de papel. 10ª edição. São Paulo: Palas Athena, 1999. 

Yamada, T.; FARIAS, I.; PEREZ, N. Origami na terceira idade. VII World Congress on Communication and Arts: The Challenge of Developing Creative Artists in a Standardized World, Vila Real, Portugal, pp. 230-234, abril 2014.

MORAES, E. Pensando a Arteterapia. 1 ed. Divino de São Lourenço, ES: Editora Semente Editorial, 2018. 

SILVA, L. Arte e terapia com origamis. Blog Cursos CPT. Minas Gerais. Disponível em: https://www.cpt.com.br/noticias/arte-e-terapia-com-origamis. Acesso em: 09/04/2022.

 

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 Sobre a autora: Isabel Pires

 


Oi! Eu sou Isabel Pires psicóloga, professora de línguas e arteterapeuta. Também possuo formação em Jornalismo e em Antiginástica® Thérèse Bertherat e pós-graduação em Psicologia Junguiana. Já publiquei alguns textos aqui no blog do Não Palavra e um deles, “Vygotsky e a arte”, faz parte do livro Escritos em Arteterapia: coletivo Não Palavra (2021). Faço atendimentos individuais e em grupo (presencial e online), nos quais, volta e meia, convido meus pacientes a criarem esculturas de papel e experienciarem a arte da dobradura de papel. Adoro gatos e viagens, presenciais ou através dos livros, que tenho em abundância. Se quiser falar comigo, pode me contactar pelo Whatsapp: (21) 97567-568; pelo e-mail: bel.antigin@gmail.com ou pelo Instagram:@isabelpires.artepsi.

 

 

 

           

segunda-feira, 11 de abril de 2022

A CONTRATRANSFERÊNCIA NA ARTETERAPIA – Um relato de experiência

 


Por Sheila Leite – RJ 

shenterlai@gmail.com

     Dentro do setting terapêutico, o arteterapeuta precisa voltar sua atenção também para os aspectos que permeiam a relação, a transferência e a contratransferência. A transferência se dá pelo olhar do cliente, através da projeção no terapeuta, de conteúdos afetivos internos e inconscientes, e personagens da sua relação tais como pai, mãe, cônjuge e outros. Essa projeção dos mais diversos conteúdos sobre o terapeuta é inerente. 

     Assim como o cliente, o terapeuta tem suas questões pessoais, sua história de vida como qualquer ser humano e, de certa forma, essas questões podem aparecer na terapia. Podem ser estimuladas pelos conteúdos levados pelos clientes, os quais podem despertar sentimentos e emoções no terapeuta, emergentes dessa relação terapêutica. É o que se denomina contratransferência – esta é muitas vezes despercebida, mas pode até mesmo aparecer nos sonhos, pois chegam pelas vias do inconsciente. Em relação ao valor terapêutico da contratransferência, Jacoby nos fala que “Jung sentia que o analista não poderia evitar ser por vezes afetado, até profundamente, pelo seu paciente e que seria melhor aceitar esse fato e estar o mais consciente possível.” (Jacoby, 2011) 

     Conhecer a contratransferência é essencial para o profissional que está vivenciando dentro do setting terapêutico essa relação com o cliente, para que possa distinguir o que é dele e o que é do cliente. Se o terapeuta consegue ter essa percepção, isso vai contribuir com o seu crescimento, pois coloca em evidência conteúdos que precisam ser elaborados. “O analista tem que estar consciente de seus impulsos de poder, ou de suas necessidades de ser pai ou mãe, de forma a mantê-las sob um certo controle e não buscar satisfazê-las inconscientemente através da relação analítica.” (Jacoby, 2011) 

Relato de experiência 

   Durante o período de isolamento causado pela pandemia trazida pelo vírus SARS-COV-2, impactos de toda ordem, em todas as áreas, colocou toda a população mundial em alerta – alerta este também em relação a saúde mental. 

Muitos indivíduos começaram a apresentar sintomas de angústia devido aos medos, lutos e estresses ao lidar com vários setores da vida num mesmo ambiente. E foi nesse contexto, no curso de formação em Arteterapia, utilizando uma técnica de colagem, com o objetivo de fazer uma análise da contratransferência, que foi proposto um trabalho para a turma. 

   De que forma o que é trazido pelo cliente reverbera nesse profissional? 

   Primeiro foi pedido que levássemos uma imagem de uma sombra, que poderia ter sido criada ou captada naturalmente. Depois, que pensássemos em um cliente, trazendo uma situação voltada para algum tipo de neurose, contando o que o estava afligindo e que, de certa forma, pudesse ser representado pela imagem da sombra levada (Figura 1). Feito isso, observando a imagem, escrever sobre a demanda do cliente e a seguir descrever nossa percepção dessa mesma imagem.


    A descrição a seguir fala da demanda desse cliente e os motivos que o levaram procurar uma terapia: “Nesses últimos meses, venho tentando colocar minhas tarefas em dia, mas não consigo concluir nada. Tenho a impressão de que o tempo deixou de ter 24 horas. Estou me sentindo muito atarefada, sem tempo e ânimo para fazer todas as tarefas que sei que devo fazer. No momento, sinto as coisas muito emboladas para mim. Estou de home office e está difícil separar o trabalho das tarefas de casa. Ainda tem as aulas das crianças, o marido. Não consigo mais me sentar para relaxar. Estou ansiosa e ando com medo do futuro.  Tenho palpitações, angústia e vontade de chorar. Não tenho mais tempo para nada e não consigo dar conta das tarefas. Tem hora que me sinto sufocar e tenho vontade de desligar um botão que me tire de tudo isso. Toda essa situação, já está influenciando meu sono, meu modo de ser e tudo. É isso doutora. O que eu posso fazer?”   

     A cliente fala das muitas tarefas que precisam ser cumpridas e elas vêm representadas pelo conteúdo trazido na cabeça, que me parece um peso. Vejo uma flor que sai de dentro desse conteúdo, que junto a esse peso precisa de cuidados e equilíbrio para que não caia. As mãos erguidas, mas sem tocar, provavelmente demonstrando a falta de controle, tornam-se cansativas, causando angústia e ansiedade. Não consegue focar em mais nada pelo medo de tudo desabar. E assim permanece em alerta, tentando equilibrar tudo sem focar em nada. 

    Utilizando a técnica da colagem, foi pedido que fizesse uma imagem que pudesse traduzir o que essa imagem passou para mim, ou seja, que conteúdo dessa cliente tem a ver comigo dentro desse contexto. Os materiais utilizados foram: pedaços de papel coloridos, rolinho de papel higiênico, lápis de cor, giz de cera, cola e um papel A4. A tarefa foi representar o que eu senti em contato com essa imagem. 

     Como ser humano, deixando de lado a persona de arteterapeuta, me percebi também vivenciando esse momento da pandemia, em que o número de coisas para serem vistas, estudadas e elaboradas ultrapassa o limite do tempo que temos. O desconhecimento de algo novo (e que ainda não se tem um prognóstico definitivo) gera insegurança e causa dúvidas. O ego acaba se fragilizando e se desorganizando numa mistura de emoções e sentimentos. Toda essa problemática estava me afetando e eu precisava estar consciente para que o meu conteúdo não se misturasse com as questões do cliente. Uma forma de poder representar tudo isso foi em um mandala. 


     Toda essa demanda trazida não conseguia encontrar uma organização, o momento da busca do equilíbrio já estava sendo ultrapassado. A psique precisava urgentemente ser colocada em ordem.           

     Ao analisar o trabalho resultante, senti essa desorganização que estava também em mim e precisava ser arrumada, ser levada também para minha terapia e trabalhada.   

    No momento em que me deparei com o resultado, ficou claro a importância da compreensão da contratransferência e, para isso, a necessidade de o profissional estar sempre em supervisão, constatando seus sentimentos contratransferenciais. Dentro de qualquer relação, essa bilateralidade de projeções e transferências vão estar sempre presentes. 

   Como diz Jacoby, o analista deve estar ciente de suas potenciais projeções inconscientes e de suas percepções genuínas, para que possa diferenciá-las da melhor forma que conseguir. 

   No contato com o outro eu afeto e sou afetada. E a pergunta que está sempre presente numa relação e que deve ser conscientizada é: o que eu projeto em você e o que você projeta em mim? 

 

Referência Bibliográfica

JACOBY, Mario. O Encontro Analítico Transferência e Relacionamento Humano. Petrópolis: Vozes, 2011.

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Sobre a autora: Sheila Leite


Psicóloga e Arteterapeuta em formação

Pós Graduação em Psicologia Junguiana
Psicóloga convidada da Rádio Rio de Janeiro, 1400 AM,  Programa Ouvindo Você.

Atendimento Clínico: individual e grupo. Crianças, adolescentes e adultos na Ilha do Governador

segunda-feira, 4 de abril de 2022

A ARTE DO FIO FAZENDO ARTE – Parte 2



Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com 

O presente texto dá seguimento à publicação anterior deste blog, através do qual Silvia Quaresma, arteterapeuta de SP, iniciou nosso registro e compartilhamento da palestra “Os trabalhos com fios nas práticas da Arteterapia” oferecido pelo Não Palavra e o Espaço Crisântemo no último mês de março. 

Percebo que um dos assuntos mais recorrentes nos espaços de supervisões em Arteterapia que sustento, se dá sobre as linguagens e materiais e suas aplicabilidades em Arteterapia. E de fato, considero esse um dos temas principais que compõem a formação continuada do arteterapeuta, e assim:

 

Tenho pensado no arteterapeuta como um “promotor de encontros” entre o sujeito que fala e um material que será facilitador de seu discurso, da elaboração de conteúdos psíquicos e de retificações subjetivas a partir do ato criativo. Nesse sentido é estrutural que o arteterapeuta dedique-se a conhecer e aprofundar-se cada vez mais na riqueza e pluralidade de materiais passíveis de serem aplicados no setting arteterapêutico.

 

O arteterapeuta deve trabalhar com metáforas. Investir em apresentar para seu paciente/cliente a analogia entre a questão trazida por ele e aquele material. Sem o devido investimento na construção desse simbolismo, o paciente pode não compreender e não investir de si naquela criação, tornando o processo sem sentido e inócuo. A delicadeza e a destreza da construção das metáforas e analogias entre as questões subjetivas e os materiais expressivos vêm sendo dos pontos mais trabalhados em supervisões que ofereço para arteterapeutas em construção. (MORAES, 2020, 17) 

Neste contexto, tenho investido em produzir conteúdos sobre as linguagens e materiais de arte e suas aplicabilidades na Arteterapia. Textos sobre a música, a colagem, a pintura, a esculta e a escrita criativa já foram publicados neste blog e compilados na série de livros “Pensando a Arteterapia”. Compreendi que para ampliar este estudo seria interessante dialogar com outros arteterapeutas que tenham mais experiência e aprofundamento com outras linguagens da arte e assim nasceu esta parceria com Silvia,  arteterapeuta que possui uma relação íntima e pessoal com os fios. 

Nesta palestra Silvia nos mostrou o quanto os fios fazem parte da nossa vida. E a partir da sua fala pude elencar algumas propriedades de seu uso para orientar o arteterapeuta no momento de lançar mão desse recurso nas diversas práticas da Arteterapia.  

Propriedades dos trabalhos com fios 

Inicialmente é interessante pensar que fios são linhas que ganharam volume e cor. Desta forma podemos retomar as propriedades destes elementos antes de pensar as propriedades dos fios propriamente ditos. 

Das propriedades da linha podemos resgatar o movimento e o ritmo, a dimensão do tempo sendo inscrito no espaço e neste processo fazemos um contato com o movimento corporal. Através da linha firmamos nossos caminhos e limites. E pela perspectiva Junguiana, a função principal ativada em seu uso é a Função Pensamento. (Para saber mais sobre as propriedades da linha, veja ESTE TEXTO) 

Das propriedades da cor podemos incluir sua vibração e potência (palavras de Kandinsky) e sua energia. A cor nos coloca em contato com emoções e nos proporciona um investimento de energia psíquica. Sua contemplação ativa nosso contato com a Função Sensação e o que é acionado a partir dela, com a Função Sentimento. 

Quanto às propriedades dos trabalhos com fios, propriamente ditos, podemos elencar: o acesso de memórias afetivas; a experiência com o tempo kairós, o demorar-se, o aprofundar-se e o estar em contemplação; promove o estar presente e a atenção plena;

abre canais expressivos e estimula a fala em associações livre e quando em grupo, promove a comunicação e vinculação. É possível também se refletir sobre cada etapa e material envolvido no processo: pensar sobre o suporte (o bastidor, tecido, isopor, papel...); pensar sobre os diferentes tipos de nós, laços simbólicos; pensar sobre os tipos de fios, suas grossuras e cores; refletir sobre o firmar caminhos e processos, firmar limites; lidar com o entrelaçar, cortar e emendar; lidar com o avesso. Estes são apenas alguns exemplos das possíveis metáforas a serem exploradas, cabendo ao arteterapeuta desenvolver esta escuta e proposta simbólica.

 Verbos, ações fora e dentro

No contexto arteterapêutico, a produtividade da tecelagem é grande: tecer, tramar, urdir, produzir tessituras, dominar o fio e com ele formar estruturas. (PHILIPPINI, 2018, 60)

No processo arteterapêutico, tecer equivale a ordenar, a articular, a entrelaçar, a organizar, a apropriar-se do próprio fluxo criativo e existencial. (PHILIPPINI, 2018, 61)

Colocar o sujeito na experiência com o material significa coloca-lo para agir sobre ele em suas questões psíquicas. Dessa forma, é interessante ao arteterapeuta atentar aos “verbos” ou ás ações que cada material proporcionará externa e internamente em  seu paciente.

As ações provocadas no processo com fios envolvem o tecer, tramar, urdir, fiar, emendar, reaproveitar, cortar e “costurar”, “tecer”. Alinhavar, entrelaçar, ligar, relacionar, vincular, conectar, articular. Ordenar, organizar, estruturar. Firmar, apertar, afrouxar, desmanchar, desapegar, refazer, atar,  desatar. Enrolar, desenrolar. Preencher, deixar vazio. Delinear, firmar limites. Firmar caminhos. Rememorar, ressignificar. Comunicar, expressar, associar, falar. Demorar-se. Focar, atentar-se

Potenciais de resistência 

A reflexão quanto aos materiais também envolve pensar sobre os potenciais de resistência no experienciador para que o arteterapeuta tenha o devido cuidado de construir seu processo de desbloqueio criativo. 

Nos trabalhos com fios podemos citar os preconceitos sobre uma arte do feminino ou a prática com o uso da(s) agulha(s). 

Ocorrem preconceitos também sobre a dificuldade manual com a técnica envolvida e aqui cabe a reflexão sobre a importância do arteterapeuta conhecer a técnica proposta para passar segurança para o experienciador se lançar ao desafio e fazer seus enfrentamentos confiando no suporte de seu arteterapeuta. O ofício do arteterapeuta não reside no ensino de arte ou artesanato, porém isto não o isenta de conhecer as técnicas que oferece ao experienciador para que possa lhe passar segurança em sua experiência. 

Em alguns casos ocorre a dificuldade com trabalhos minuciosos, o demorar-se e a atenção plena. É possível também o acesso a memórias pessoais não agradáveis que poderá acarretar no bloqueio com o material. 

Em todos esses casos, o caminho se dá em buscar outras alternativas dentro da riqueza de possibilidades dentro dos trabalhos com fios. Por exemplo, se a dificuldade for com o manuseio da agulha, é possível a experiência do macramê. Se resistência for com trabalhos minuciosos, é possível a experimentação do tricô de braço, e assim por diante. 

Herança Simbólica

 

A origem do ato de tecer perde-se na noite dos tempos na memória humana. Surgiu da necessidade de cobrir e proteger o corpo das intempéries. A criatividade do ser humano cuidou de transformar a necessidade de sobrevivência em experiência e expressão artística.” (PHILIPPINI, 2018, 60) 

Dentre a tamanha potência e propriedades dos trabalhos com fios nas práticas da Arteterapia, fica para mim a herança simbólica que esta linguagem carrega  e seu grande potencial em proporcionar o contato com memórias oriundas do inconsciente individual e coletivo, além do contato com a ancestralidade e os ensinamentos que são transmitidos de geração em geração.


Bibliografia:

MORAES, Eliana. Pensando a Arteterapia Vol 2. Semente Editorial, ES. 2019

_____________ (org). Escritos em Arteterapia – Coletivo Não Palavra. Semente Editorial, ES. 2020

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades. Wak Editora, RJ, 2018.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"