segunda-feira, 29 de julho de 2019

GRANDES ARTISTAS NA PRÁTICA DA ARTETERAPIA: BEATRIZ MILHAZES



Por Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra

No último ano estive dedicada ao estudo sobre uma artista brasileira bastante instigante: Beatriz Milhazes. O despertar para esta artista nasceu no grupo de estudos “Teorias da Arte e Arteterapia” ao qual temos como leitura mestra o livro “Do espiritual na arte” de Wassily Kandinsky. Nesta obra, dentre tantos pontos tão profundos, Kandinsky nos fala da expressão artística com alma, ao qual o artista entrava em contato com o “belo interior”. 

Ao nos debruçarmos sobre o conceito de “belo” na arte, que está muito além da conotação banal que dele utilizamos no sendo comum (para saber mais sobre este tema, veja o texto “Para 2019, a fúria da beleza”), nos deparamos com Beatriz Milhazes, considerada por alguns críticos como “o oásis do belo na arte contemporânea”. 

No aprofundamento na vida e obra de Beatriz, nasceu em mim a sensação de que esta artista, de fato, é um oásis na arte contemporânea e na contemporaneidade como um todo. A pesquisa sobre possíveis inspirações (diretas ou indiretas) e aplicabilidades de seu trabalho para a Arteterapia foi um deleite. Este estudo foi compartilhado em alguns encontros do grupo de estudos e palestras e hoje trago uma síntese do que (até aqui) pude ouvir deste encantador diálogo entre Beatriz Milhazes e a Arteterapia. 

Beatriz Milhazes


Beatriz, artista-mulher-brasileira-viva, nasceu no Rio de Janeiro, 1960.  É pintora, gravadora e ilustradora. Realizou sua formação em artes plásticas na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no período de 1980 a 1983. Participou das exposições que caracterizaram a Geração 80 - grupo de artistas que buscaram retomar a pintura em contraposição à vertente conceitual dos anos de 1970.

A partir dos anos 1990, destacou-se em mostras internacionais nos Estados Unidos e Europa e integra acervos de importantes museus pelo mundo. É a artista brasileira mais bem cotada no mercado exterior. O quadro “Mágico” foi arrematado em 2009 por mais de 1 milhão de dólares em um leilão na Sotheby’s em NY. É o maior preço pago por um quadro de artista brasileiro vivo até hoje.  

Beatriz mistura abstração, geometria, modernismo, pop art, concreto e neoconcretismo brasileiros. Mas a cor é um elemento estrutural na obra da artista. São cores intensas e padronagens que atraem o olhar, intensificam sensações. A manufatura é muito importante nos trabalhos da artista, que tem por característica a pesquisa de novas técnicas e materiais. Também faz colagens sobrepondo camadas de cor com materiais como embalagens de bala e chocolate, e papéis de diversas cores e texturas.  

Inspirações para a Arteterapia

“[Na tela em branco] posso construir meu mundo... Desenvolver minhas ideias, meus conceitos...” Beatriz Milhazes 

1)    A construção de um estilo próprio

No início de seu percurso como artista, seu trabalho era diferente de tudo que se fazia na época, mas fiel a si, insistiu em seu “caminho solo”. 
Fazia parte de um grupo de artistas que buscavam o resgate da pintura em contraposição a vertente conceitual em vigor. Mas ainda assim, diferente de seus pares,  buscava uma pintura não gestual, geométrica. Certa vez, quis incluir em sua pintura um pedaço de chitão ou renda, o que causou grande espanto em seus professores, mas seguiu na construção de seu caminho autoral. 

Em Arteterapia, nos inspiramos em Beatriz, quando um sujeito está em busca de si e seu estilo. Em busca de sua singularidade e seu aprimoramento. Mas este processo demanda um trabalho de construção e um grande investimento de energia psíquica.  

2)    Pesquisa de técnicas e materiais

Este percurso de construção é calcado na busca dos recursos necessários e possíveis. E por isso o trabalho da artista tem por característica a pesquisa de novas técnicas e materiais, fazendo com que a manufatura seja muito importante no processo. 

A artista conta que sempre teve um olhar voltado para a colagem e que desejava incluí-la em seu trabalho. Em meio às suas pesquisas descobriu a técnica da tinta acrílica sobre o plástico para criação de camadas, alcançando a colagem, mas com o intuito de permanecer no bi apesar da sensação de tridimensional.

Em Arteterapia nos inspiramos em Beatriz em sua pesquisa e persistência na busca de recursos e soluções no processo de construir(-se). Este percurso é construído com tentativas, erros e acertos, rumo ao encontro de seus desejos. 

3)    Construção em camadas



Para mim, uma das grandes riquezas do trabalho de Beatriz está no processo de construção em camadas. Em seus trabalhos, a artista também faz colagens sobrepondo camadas de cor, tanto com materiais como embalagens de bala e chocolate, e papéis de diversas cores e texturas, mas também colagens com suas próprias imagens. Sendo assim, seu processo criativo se dá em camadas, como um passo a passo, em um mesmo trabalho.

Descobri em Beatriz a inspiração para a permanência em uma mesma imagem ao invés de a cada sessão arteterapêutica iniciar um trabalho novo. Afinal, o processo de construir-se se dá com a permanência e o aprofundamento do olhar para um cenário de vida. O convite ao paciente é para que antes de partir para algo novo,  que ele não se contente com uma (falsa) sensação de conclusão mas possa experimentar a continuação e o aprofundamento da imagem: “O que mais?”, “Qual é o próximo passo?”, “Como continuar?”, “Como aprofundar?”.

Na prática este processo pode ser feito alterando os materiais a cada reencontro com a imagem: de uma pintura podemos propor uma segunda camada de materiais de desenho e uma terceira camada com materiais de colagem, por exemplo. Eis um verdadeiro caminho de construção. 

Pintura

Desenho

Colagem


4)    O tempo: lento

Naturalmente este processo criativo de permanência do olhar demanda um demorar-se sobre a imagem e a experiência. 

Beatriz é conhecida por ser uma artista bastante meticulosa, que dá muita atenção aos detalhes. Tem o hábito de ficar de seis a sete horas por dia no ateliê, num processo que ela afirma ser muito lento. A produção se mantém a mesma até hoje: no máximo 10 telas por ano. 

Em nossa contemporaneidade tão acelerada naturalmente ficamos prejudicados quando é necessário um aprofundamento. Beatriz nos convida ao demorar-se no processo criativo, ao permanecermos na imagem e entrarmos em contato com sua essência. A cada camada somos convidados a reencontrá-la, explorá-la, reinventá-la, aprofundá-la.   

5)    Preenchimento

“Por enquanto o que mais me desafia é a possibilidade de preencher uma tela em branco.” Beatriz Milhazes 

As obras de Beatriz têm como marca os múltiplos elementos que se harmonizam de forma bem equilibrada. Integrar muitos elementos sem que se dê um aspecto entulhado demanda a capacidade de organização. Naturalmente esta capacidade não é algo que alcançou com facilidade, mas demandou bastante investimento para o desenvolvimento do método. 

Em Arteterapia, nos inspiramos em Beatriz quando buscamos o preenchimento do vazio, mas no encontro do ponto de equilíbrio entre o vazio e o excesso. A prática nos mostra que quanto mais exploramos o método do trabalho em camadas, mais compreendemos a forma de composição dos elementos de maneira harmônica. 


6)    Beatriz Milhazes, palavras chave:

Tenho por hábito buscar as palavras chave de cada técnica ou material, para que oriente minha escuta e manejos arteterapêuticos no momento do atendimento. No mergulho na obra e processo da artista pude destacar algumas palavras chave. 

Cor.
Abstrato, geometria.
Preenchimento, estruturação, organização, equilíbrio, integração.
Lentidão, demorar-se, aprofundar-se.
Mergulho, introspecção, introversão, intuição.
Camadas, etapas, sobreposição, crescimento, composição, construção.
Experimentação, pesquisa, persistência, disciplina, busca de recursos, encontrar soluções. 
Continuação, explorar mais, evolução. 

7)    Técnica mista, intermediária, de interseção e integração:

O processo criativo em camadas, principalmente ao autorizar-nos a abertura para o tridimensional, se dá na integração de diferentes linguagens da arte: pintura, desenho, colagem, assemblagem, escultura e outros. Sendo assim, uma técnica mista. 

Os trabalhos arteterapêuticos inspirados na obra de Beatriz, têm como  propriedade a integração por ser uma técnica de expansão e contenção, uma técnica de expressão de sentimentos através da cor ao mesmo tempo que estruturante e organizadora. Sendo assim, acessa simultaneamente as funções sentimento e pensamento. 

8)    Estimulação cognitiva:

A prática com idosos mostrou que este processo criativo é bastante estimulante cognitivamente em várias funções. Neste texto destaco o potencial do estímulo da atenção, sendo ela um processo cognitivo pelo qual o intelecto focaliza e seleciona estímulos, estabelecendo relação entre eles. Sua função é focar a consciência, distinguir prioridades e estabelecer critérios de raciocínio. 

Dentre as múltiplas subdivisões da atenção, todo o processo criativo descrito acima é rico no estímulo da atenção concentrada (quando os outros estímulos menos importantes, passam a fazer parte do “fundo” e a capacidade de retenção de informações relevantes) e da atenção sustentada (capacidade de focalizar um estímulo e se manter em uma mesma atividade contínua por tempo prolongado sem distrações).

O diálogo entre Beatriz Milhazes e possíveis inspirações diretas ou indiretas para as práticas da Arteterapia deu-se como um grande deleite dentro dos meus estudos. Beatriz me ensinou sobre o trabalho em camadas e com ele o demorar-se, o aprofundar-se e o construir-se. 

_______________________________________________________________________________

Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga. 


Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI

segunda-feira, 22 de julho de 2019

A CONTRIBUIÇÃO DA ARTETERAPIA EM PACIENTES COM TUMOR CEREBRAL


Por Juliana Ohy - Jundiaí, SP
julianaohy@gmail.com
Instagram: @psi_julianaohy


Estima-se que, para cada ano (2018/2019), sejam diagnosticados 11.320 novos casos de tumores cerebrais (TC) do sistema nervoso central, sendo 5.810 em homens e 5.510 em mulheres, no Brasil. A taxa de sobrevida dos tumores do sistema nervoso central varia e depende do seu tipo, localização e estadiamento. Em geral, a probabilidade de uma pessoa desenvolver um tumor cerebral maligno durante sua vida é inferior a 1% (INCA, 2018). 

Os principais sintomas de pacientes com TC são: crises convulsivas, cefaleia, náuseas, vômitos, visão turva, hemiparesia, sonolência, angústia, boca seca, problemas de equilíbrio e alteração da marcha, alteração de comportamento e comprometimento cognitivo. Ao longo da doença, os sintomas podem aumentar e diminuir, desaparecer completamente ou emergir latentemente. Sabe-se que o avanço do tumor diretamente em áreas cerebrais eloquentes pode contribuir ainda mais para déficits cognitivos. Consideram-se áreas eloquentes aquelas relacionadas à linguagem, funções motoras e sensoriais.  (Klein; Duffau, 2012; Cahill et al, 2012).

O desempenho cognitivo de pacientes oncológicos pode ser afetado por questões que vão além do tratamento quimioterápico (Chemobrain) ou radioterápicos e que devem ser considerados em qualquer avaliação cognitiva, tais como: depressão, ansiedade, fadiga e distúrbios do sono (Ascher, 2011). O funcionamento cognitivo pode servir como um indicador precoce da progressão da doença e ter significado prognóstico (Klein; Duffau, 2012).

Diante dessa realidade, faz-se necessário novas práticas de atuação com o paciente, tanto no âmbito emocional quanto no cognitivo. 

A Arteterapia vem crescendo ao longo dos anos, mas ainda precisamos de mais evidências científicas em diversos contextos para que o alcance de sua prática possa beneficiar ainda mais pessoas. Neste caso, com pacientes oncológicos, com TC em especial, a Arteterapia pode ser um método que abrange as necessidades emocionais e cognitivas.  

Pode-se utilizar técnicas em que o paciente entre em contato com seus medos, suas angústias diante da ameaça que um tumor causa em sua vida. 

Atualmente, existem nas redes sociais grupos de discussão e troca de experiências de pacientes com tumor cerebral, principalmente de pessoas com a faixa etária de 30 anos. Isso indica a necessidade de falar sobre, de compreender o que está acontecendo, o significado da vida e a aceitação da fragilidade humana. Através de técnicas expressivas, que incitam as emoções mais profundas, como a pintura, por exemplo, podemos atingir pontos de angústia que nem sempre a fala alcança. 

Com relação aos déficits cognitivos que, por ventura, possam aparecer, podemos aplicar a reabilitação através da arte. O nosso cérebro adora a relação da interação cognitiva e motora. A técnica expressiva através da arte, facilita a tríade cognitiva, motora e emocional. Além disso, nosso cérebro também precisa criar, ser estimulado, desenvolver, sonhar e fantasiar. É através das experiências e vivências que aprendemos que praticamos a neuroplasticidade. Neuroplasticidade pode ser definida como a capacidade que o sistema nervoso tem de alterar sua estrutura e sua função através das exigências ambientais e experiências que podem se dar através do processo de aprendizagem ou reabilitação. É moldar o cérebro através das experiências (Amaral e Ohy, 2018, p. 32).

O diagnóstico de um tumor cerebral para pacientes, em qualquer faixa etária, causa dor, medo, angústias, desesperança e cabe a nós, profissionais, saber utilizar as ferramentas adequadas para minimizar o sofrimento, cuidar e tratar desses pacientes.

A Arteterapia, ao meu ver, ainda é uma das abordagens mais completas quando precisamos cuidar do ser humano como um todo. Com música, arte, cores e sensações, atingimos mais áreas cerebrais fazendo uma reabilitação mais intensa e genuína.

Referências Bibliográficas

Amaral, A.; Ohy, J. Aprendizagem sob olhar da Psicomotricidade. Revista Escola Particular. Ano 22, No 241, 2018: 32.
Asher A. Cognitive dysfunction among cancer survivors. Am J Phys Med Rehabil. 2011;;90(5):S16–26.
Cahill J, Lobiondo-Wood G, Bergstrom N, Armstrong T. Brain Tumor Symptoms as Antecedents to Uncertainty: An Integrative Review. J Nurs Scholarsh. 2012.
Instituto Nacional do Câncer. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil / Instituto Nacional de e Câncer José Alencar Gomes da Silva, Coordenação de Prevenção e Vigilância-Rio de Janeiro.. INCA. 2018;1– 130.
Klein M, Duffau H, De Witt Hamer PC. Cognition and resective surgery for diffuse infiltrative glioma: An overview. Journal of Neuro-Oncology. 2012.

_________________________________________________________________________

Sobre a autora: Juliana Ohy


Formação: Psicóloga, Arteterapeuta, Psicopedagoga, Especializada em Psicogeriatria e Neuropsicologia, Mestre em Saúde Mental e Doutoranda em Ciências da Saúde

Área de atuação/projetos/trabalhos:
Sócia-diretora da Clínica Synapse: Geriatria e Estimulação Cognitiva (Jundiaí – SP), Professora dos cursos Arte e Cognição: Estimulando o cérebro através da arte e Jogos Cognitivos, membro da equipe e professora do curso Neurociências da Educação do CBI of Miami, palestrante na área de Neurociências, Gerontologia e Arteterapia, autora do Livro: Jogos Cognitivos: Um olhar multidisciplinar, pela editora WAK e pesquisadora na área de Neurocirurgia pelo Hospital Sírio-Libanês - SP.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

ARTETERAPIA COM IDOSOS EM ATENDIMENTO DOMICILIAR




Sonia Santos - RJ 
soniamsantos442@gmail.com

É com imenso prazer que recebo convite do blog “Não Palavra” para compartilhar um pouco da minha experiência de Arteterapia com idosos, em atendimento domiciliar.
O primeiro passo para um bom atendimento é a entrevista com o familiar, acompanhante e  também com o idoso, onde conheceremos um pouco da sua história, como se sente naquele momento e observamos o ambiente onde vive.
 Muitas vezes aos idosos já faltam palavras para se expressarem, mas podem fazê-lo através de formas, cores, materiais diversos e gestos. E que tal acrescentar música aos encontros? Ah! Quantos resgates através da música. Uma sugestão é selecionar um repertório de músicas antigas de artistas como: Lupicínio Rodrigues, Nélson Gonçalves, Ângela Maria, Cartola, etc, não esquecendo das marchinhas de carnaval, valsas e dos chorinhos. Há idosos que gostam muito de Roberto Carlos, músicas sertanejas, Martinho da Vila e até de cantores atuais, mas a preferência (com relação aos idosos que atendo) é sempre por músicas antigas.
A música é grande facilitadora no processo criativo.
A poesia é também bem aceita. Quem não se encanta com “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu? Mário Quintana, Cora Coralina, Castro Alves, Rubem Alves ...
De uma poesia podemos partir para um trabalho plástico e até uma “escrita criativa” e caso esse idoso tenha dificuldade em escrever usamos a “escuta criativa”. Há também a possibilidade de gravar a sua fala (mas muitos não se sentem à vontade com essa proposta). Precisamos estar atentos ao que dá ou não prazer ao idoso.
Apesar de utilizarmos diversas técnicas como pintura, desenho, construção, modelagem, canto, dança sênior, dobradura, a colagem é normalmente muito bem aceita por essa faixa etária, por ser de pouca complexidade. Muito importante por ser a organizadora do pensamento. 
 Costumo usar a colagem também como base para uma atividade que envolva desenho e/ou pintura. Como exemplo: a colagem de um belo vidro de perfume (escolhido pelo paciente) pode se transformar num belo vaso de flores, com a ajuda de lápis de cor, lápis cera, pastel oleoso ou até guache. 

Importante termos sempre uma pasta com diversas gravuras de figuras masculinas, femininas, família, crianças, animais, lugares, religiosidade, dentre outras.
Ao trabalhar com idosos podemos trazer exercícios de memória, mas devemos ter o cuidado de não infantilizá-los, como também não sugerir atividades que eles não consigam finalizar devido ao grau de dificuldade e assim, frustrá-los.
O idoso deve ser sempre estimulado e temos observado que às vezes ao chegarmos para o atendimento, o encontramos triste, apático, desanimado e no final do encontro nos dizem: 
-  Já vai? Quando voltas?
Pode acontecer também o contrário, o encontramos sem desejar participar de nenhuma atividade (pode ter dormido mal, ter mudado ou acrescentado algum medicamento, etc), mas nossa presença pode ser revitalizante, pois o afeto é, normalmente, o que aquele idoso mais precisa. Então sentar ao seu lado, acolhê-lo com carinho, respeitar o seu momento, colocar uma música, pois a música pode levar-nos a um lugar mágico, belo e transformador, é muito importante.
Nos atendimentos uso letras de música, desafios com imagens, jogos, atividades diversas para que sejam estimulados cognitivamente. Alguns jogos podem ser adaptados e até criados.
Podemos e devemos usar nossa criatividade e criar jogos como os das fotos a seguir: 
  



 Dominós com figuras geométricas em EVA, frutas, flores, botões coloridos e jogos da memória através do tato (principalmente para idosos com deficiência visual) utilizando materiais diversos como rolhas, lacres de refrigerantes, algodão, lixa, bombril, prendedor de roupa, e demais jogos que a imaginação construir. 
Existe muito material de baixo custo, como os criados pelo professor Anderson Amaral, e que são grandes aliados para os nossos atendimentos. 
             Atender idosos através da arte e com atividades que estimulem a memória é muito importante.
________________________________________________________________________
Sobre a autora: Sonia Santos


segunda-feira, 8 de julho de 2019

SÉRIE OLHARES SOBRE OS MITOS: HADES E A DEPRESSÃO


Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro
lai_ajt@hotmail.com
Nos outros textos dessa série “Olhares sobre os mitos” enfatizei a importância que a psicologia profunda atribui aos mitos. Estes não apenas carregam meras narrativas descrevendo sobre o comportamento humano, mas trata da vida da alma. Diz HILLMAN: “Os mitos governam nossas vidas. Governam uma história de caso a partir de baixo, através da história de alma.” (20011, p. 93)
Considerar a perspectiva pela história da alma é diferente da perspectiva pela história de caso. Numa história de caso temos como metodologia a descrição e a interpretação dos eventos e das emoções. E o tratamento, nessa perspectiva, se molda por essas colocações, trazendo luz as questões até então obscurecidas. Portanto, seguindo por esse caminho “de dar luz” ou “trazer à luz” partimos do pressuposto que a luz representa um critério que diz respeito a algo saudável e adequado. No entanto, quando nos atemos à história da alma, esta nos coloca em contato com aquilo que subjaz da EXPERIÊNCIA. A alma reclama a experiência! Ao invés de debruçarmos na tentativa de desvendar o que quer dizer essa experiência, nós vamos para as profundezas do que o indivíduo está experenciando. Tiramos, desse modo, qualquer tipo de parâmetro ou critério que indique que algo é adequado ou inadequado, sadio ou patológico, bom ou mal. Apenas ficamos com a escuta para alma daquele sujeito.
Peguemos uma das experiências psíquicas mais discutida da atualidade, a depressão. Ao imaginá-la nós já conseguimos agrupar certas associações e parâmetros a respeito da “doença”. Felizmente, já há um progresso na conscientização da depressão, ou seja, já existe um movimento de profissionais da saúde e outras áreas que a qualifica como algo sério e que a condição depressiva ultrapassa a força de vontade (força egóica) do sujeito. Este fica completamente vulnerável e à mercê da depressão. Essa experiência o consome, consome seu ego e sua orientação consciente, pondo-se à vista a natureza psíquica, a alma.
Na ótica da psicologia analítica, dentro da estrutura psíquica proposta por Jung, a condição depressiva é justamente a perda de energia psíquica que o ego possuía. Uma pessoa que se mantém ativa, com a capacidade cognitiva intacta e sem alterações nas suas necessidades físicas detém de uma quantidade específica de energia que a permite desenvolver suas atividades cotidianas. Sem essa energia concentrada na consciência nenhum movimento do ego é possível. A energia, portanto, regrediu às profundezas, isto é, há uma regressão da libido. Isso nos dá um panorama muito elucidativo da situação específica, que consiste naquilo que anteriormente foi mencionado como história de caso. No entanto, para a história da alma a linguagem é outra. Aí adentramos ao mito. 


HADES 
Hades é o deus que reina o submundo ou mundo das trevas, assim também designado como o reino dos mortos. Como Hécate (já mencionada em outro texto CLIQUE AQUI) ele é um deus ctônico. Esses deuses são deuses que residem na escuridão, no subterrâneo. Não se tem certeza de como eram o rosto desses deuses, uma vez que, o que está debaixo dos nossos pés, além da terra, não passa pelo nosso campo de visão, não sabemos o que jaz nessa escuridão desconhecida. 
Hades é “(...) o escuro reverso não só de Zeus, mas também de Hélio.” (KERÉNYI, 2015, p. 208). Esses dois últimos deuses estão associados com a luz e o reino celeste e Hades, no entanto, nos puxa para seu reino sombrio de escuridão, para baixo. Vemos no rapto de Perséfone exatamente essa dinâmica. Resumidamente, Core, filha de Deméter, estava colhendo flores quando de repente a terra se abriu e dela se irrompeu Hades em sua carruagem com seus corcéis negros. Hades a raptou e a levou para seu reino ctônico. Core a princípio, tentou lutar contra o raptor, mas foi levada à força. Deméter ficou desesperada pelo sumiço da filha, até que descobriu, por Hélio - aquele que tudo vê - que foi Hades quem a raptou. Ao tentar resgatar sua filha, viu que esta se tornara a rainha do submundo, Perséfone, esposa do deus temível. E constatou também que esta comera sementes de romã e que quem come no Hades não sai mais de lá. Porém, a insistente Deméter reivindicou a Zeus o retorno de sua filha junto a ela, alegando que se isso não acontecesse a terra não ia mais prosperar, já que ela era a deusa da vegetação e fertilidade. Zeus conseguiu negociar com seu irmão Hades de que Perséfone ficaria com ele um terço do ano e o resto com sua mãe. Fazendo a terra florescer quando as duas se encontram.     
Esse rapto por Hades, ou seja, esse puxar para baixo é exatamente a experiência da depressão. Estamos como Core, colhendo flores nas pradarias da vida, quando, de repente, o chão se abre para o caminho das profundezas. Descemos aos ínferos, ou seja, a energia psíquica cai nas trevas. Os gregos chamavam essa queda de katabasys. Vemos esse motivo da queda em muitos mitos e contos, e como sendo uma experiência arquetípica, sofremos ou sofreremos essa experiência. Por isso podemos dizer que a depressão é uma das katabasys da mitologia atual. Frases tais como “estou no fundo do poço”, “estou caindo num abismo”, “perdi o chão”, “me sinto fraco e impotente”, revelam que a experiência do rapto de Hades ao reino da morte é o começo de um processo de morte propriamente dito.

O REINO DE HADES
Ao chegar no reino dos mortos, forçadamente, nós nos defrontamos com o desespero e o tédio. Como afirmam CHEVALIER & GHEERBRANT (2009) o reino de Hades é "(...) lugar invisível, eternamente sem saída (salvo para os que acreditava nas reencarnações), perdido nas trevas e no frio, assombrado por monstros e demônios, que atormentam os defuntos."(p. 505). É a escuridão total! De nada adianta puxar o indivíduo para a luz, pois ele já está mergulhado nesse reino de trevas. Aqui, quando vemos pela perspectiva da clínica, é imperativo que o terapeuta abrace a experiência do rapto de Hades. Ficar erguendo seu paciente para a direção da luz em tentativas de tirá-lo do reino da morte é perder o processo que alma pede daquele paciente. Ao invés de se perguntar “como faço para tirá-lo dessa condição sombria?” se propor fazer a pergunta “o que a alma quer com essa experiência sombria?”.
Por estar no reino da morte, uma das respostas para essa pergunta é justamente a morte. Ela tem que se apresentar para ambos envolvidos no processo – o paciente e o terapeuta. Fugir dela é não permitir que Core se transforme em Perséfone. Como diz HILLMAN (2011) “(...)cada morte é a nossa própria criação.” (p. 73-74). No entanto, a tendência é que sintamos uma angústia demasiada na presença dela e que, assim, queiramos acelerar o processo. Dessa forma, é importante salientar aqui que no reino de Hades não existe tempo, o deus Cronos (cronológico) que estamos acostumados no mundo “de cima” não existe aqui embaixo. Por isso que o depressivo entra em outro estado de tempo, bem mais vagaroso e pesado, se culpando, inclusive, por não conseguir fazer as coisas no tempo em que as outras pessoas estão. Exigir essa aceleração do depressivo é praticamente deixá-lo mais culpado no mundo de Hades.
Como foi mencionado acima, estar preso a esse reino é ser assombrado por monstros e demônios. Nessa experiência, como o ego não tem energia psíquica pois essa regrediu, esse é um momento precioso para a alma. Quando o eu está em “bom estado e funcionamento”, as resistências estão em dia e são facilmente consteladas, além do que, as personas estão firmemente encaixadas com as propostas do ego. Porém, sem a força usual desse, somos obrigados a ver o que jaz nas nossas profundezas, aspectos esses bem escondidos pelos mecanismos do bom funcionamento. Nossos monstros e demônios já são da casa de Hades e são eles, justamente, o alimento que necessitamos para essa experiência, como são as sementes de romã ingeridas por Perséfone. São monstros que viram valiosos materiais psíquicos. 
Hades também é chamado de Plutão que significa “o rico”. "Então Plutão refere-se às riquezas escondidas ou às riquezas do invisível." (HILLMAN, 2013, p. 53). Portanto, por mais temível e perturbador que possa ser o caminho ao passar por essa experiência em que reina a morte, só se possibilita dar esse mergulho nas riquezas escondidas quando o ego não está em seu trono na luz. 
Assim podemos perceber que algo tão ameaçadoramente desestruturador, cujo nome damos de patologia (relacionando-a com termos tais como desordem, doença e desvio), mostra-se, no final das contas, como uma criação feita pela alma. Olhar a depressão pela ótica do trono na luz é olhá-la por esse perfil negativo e tomar todas as providências para tirar a pessoa do reino das trevas. Quando Hillman afirma que a alma patologiza, ele quer dizer que a é através de manifestações “não normais e sadias” que o indivíduo é forçado a olhar para sua individualidade; individualidade esta que está além desses termos: normal e adequado. Pelo contrário, a alma que se individua tem que ir além do que o coletivo afirma como sujeito adaptado, para assim poder se diferenciar como indivíduo. Um indivíduo, portanto, a serviço de seu Self e não das personas coletivas. Esse é o processo de individuação.     
 A subida então, como Perséfone faz para encontro de sua mãe, a terra, é o percurso de saída do estado depressivo. O mundo é outro porque se adquire uma nova percepção do mesmo: “Não sou mais aquele que foi raptado”, uma amiga um dia me afirmou: “Aquilo foi em outra existência.” Passado pela morte, agora o indivíduo se vê mais “psiquizado”, ou seja, muitas coisas se tornaram psíquicas; as cascas que antes eram sustentadas pelo ego foram derrubadas e as essências foram reveladas. O olhar de Perséfone é justamente o olhar para essência das coisas, diz BERRY (1997): 
Com isso entendo que a percepção das diferenças no reino da natureza de Deméter é também uma percepção de essências no reino de Perséfone - onde essência é o “Não-visto”, a semente oculta da romã, ou o “invisível”. Desse modo, notar as diferenças do mundo da superfície é ter, ao mesmo tempo, uma percepção através de uma consciência dos invisíveis do mundo inferior.” (p. 89)  
É olhar as coisas e as situações pela perspectiva da alma. Esse olhar de Perséfone para as essências é imprescindível aos terapeutas, pois enxergar através do aparente, seja ele um sintoma ou o discurso literal, é poder enxergar o que a alma pede. Além do que, a Perséfone tem uma função psicopompa, ou seja, ela é a guia que tem familiaridade com os dois reinos, o terrestre e o submundo; o material e o psíquico. Assim, o terapeuta é o guia que ajuda a travessia do paciente, permitindo e vivenciando a experiência do reino da morte, mas não se dissolvendo junto com o paciente. A Arteterapia é o campo que também proporciona uma atitude de Perséfone, que no manuseio do material (Perséfone com Deméter), traz o reino das essências (Perséfone com Hades).
Portanto, o olhar para o mito, na sua própria linguagem, nos permite o aprofundamento naquilo que se apresenta. Temos uma psicologia muito voltada para as histórias de caso, onde a percepção e a abordagem para a depressão pegam um outro rumo. No entanto, quando nos voltamos para aquele indivíduo e paramos para escutar (com Eros) seu rapto, sua katabasys, sua estadia no mundo de Hades e sua subida, de forma que nenhuma outra pessoa terá igual, estamos pegando o rumo da psicologia da alma.        

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BERRY, Patricia. Encarando os Deuses (org. James Hillman). São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. RJ: José Olympio, 2009.
HILLMAN , James. Sonho e o mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
 _______________. Suicídio e Alma. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
KERÉYNI, Karl. A mitologia dos gregos: vol I: A história dos deuses e dos homens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015
_______________________________________________________________________
Sobre a autora: Laila Alves de Souza

Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos.