segunda-feira, 27 de julho de 2020

CRIATIVIDADE COMO MITO (PARTE 2)


Por Selma Lessa RJ-PE
slessa.rj@terra.com.br

Este texto é a segunda parte de um fragmento da minha monografia da Pós Graduação em Psicologia Junguiana intitulada “INTERFACES ENTRE CRIATIVIDADE E OPUS ALQUÍMICO SOB O VIÉS DA PSICOLOGIA ANALÍTICA”. Para acessar a primeira parte CLIQUE AQUI

Mircea Eliade fala que tudo que existe é criado por um mito, o mito é uma narrativa da criação e está presente em todas as mitologias seja ela Grega, Asteca, Babilônica, Judaica, Yorubá, Egípcia, Mitos Yanomani, etc.

Neumann (2014), na História da Origem da Consciência, faz um relato acerca do mito da criação ser o primeiro ciclo do mito, a saber:

A mitologia, no entanto, é produto do inconsciente coletivo e quem conhece a psicologia primitiva deve ficar estupefato diante da sabedoria inconsciente que se eleva das profundezas da psique humana em resposta a essas dúvidas inconscientes. (NEUMANN, 2014, p. 30)                     
 
No livro História da Origem da Consciência, Neumann (2014, p. 26), cita Cassirer, mostrando que, em todos os povos e religiões, a criação aparece como a criação da luz. Daí o advento da consciência, manifesta como luz em contraste com a treva do inconsciente, ser o verdadeiro “objeto” da mitologia da criação.

Tomando como base o Livro do Gênesis, no seu capítulo primeiro, as origens do mundo e da humanidade, sendo a primeira referência ao ato criativo: “No princípio, criou DEUS os céus e a terra” (Gen. 1:1) – onde o termo “princípio” nos remete a ideia de ponto de partida.
Ao pensarmos na evolução do homem, a criatividade esteve sempre presente toda vez que precisou se utilizar dos recursos do ambiente para sobreviver e construir o seu entorno.  Impossível determinar o momento em que o homem teve o insight de começar a responder às necessidades que o meio ambiente lhe solicitava, ou seja, encontrando soluções do cotidiano da vida, mas foi sem dúvida um grande avanço e uma tomada de controle do homem sobre os demais animais, a criatividade foi e é o diferencial nessa dinâmica de desafios e encontro de soluções.



Para tornar mais claro o que quero dizer com criatividade, trago uma cena do filme 2001- Uma Odisséia no Espaço, em que o macaco pega um osso e bate até transformá-lo numa ferramenta e na seqüência, joga o osso para cima até aparecer uma nave interestelar, esta cena especificamente mostra com destreza a evolução do homem.

Para explicitar o que quero demonstrar sobre criatividade, vou me ater ao primeiro ato.
2001 - Uma Odisséia no Espaço começa exibindo o primeiro momento em que o macaco descobre o poder da ferramenta através da transformação do osso e, logo em seguida, mostra a espaçonave em contraposição ao osso: a primeira ferramenta, querendo dizer que o macaco/homem estava em sua mais avançada jornada em busca do conhecimento, mas lembrando que esta busca se revolvia aos primórdios da humanidade.

Esta cena do filme talvez seja uma das mais lindas já filmadas: um hominídeo evolui e se “transforma” no Homem. Aquele ser observa uma carcaça de ossos no chão e, aos poucos, muito hesitante, pega um dos ossos mais robustos e começa a bater no chão e nos demais ossos. É a primeira vez que uma ferramenta é usada por ele ou por qualquer outro ser. Assim, acaba-se a fome da tribo, pois as antas passam a ser abatidas para alimentá-los e, quando a tribo inimiga invade o território novamente, o osso é usado como ferramenta de dominação, marcando a tribo vencedora como a que, em alguns milhões de anos, tomaria o planeta Terra.
É nesse momento que, literalmente, acontece o nascimento do Homem. E o que ele faz ao nascer? Ora, ele usa um instrumento de violência e morte, instrumento esse que, em uma brilhante transição, se transforma em um satélite militar orbitando a Terra. Somos definidos pela capacidade de criar, de transformar a matéria em algo que possa nos servir e nos ajudar a viver melhor.
Naqueles poucos segundos em que aquele osso é lançado para cima, e transformado numa espaçonave, podemos visualizar ali, todo o processo criativo da humanidade, em uma evolução que perpassa desde o homem das cavernas ao astronauta, do osso à nave estelar. Toda a existência dos processos criativos culmina na tecnologia, naquela época, mais avançada: uma nave espacial, onde o homem ainda poderia continuar sua busca por desbravar novas fronteiras do Universo.

Esta é uma cena que condensa toda a atividade humana e contém todos os elementos criativos. É uma cena mítica, é in illo tempore (naquele tempo), que possui desafios, inovações, erros, acertos, todas as nuances da trajetória mítica da criatividade, sendo uma síntese do mais alto grau de arrebatamento da tomada de consciência. 

A absurdamente brilhante síntese dessa cena se caracteriza pelo, recorte histórico proposto por  Kubrick, de  um avanço de milhões de anos em segundos com a câmera transitando do osso rodopiando no céu para uma nave estelar flutuando no espaço. De forma extraordinária, a história da humanidade é contada, através da demonstração do uso da tecnologia como criação humana. Mostro aqui o aspecto mítico que Mircea Elíade (2000) fala da criação e os mitos da criação estão contidos nesta cena.

Neste recorte, demonstro que a criatividade é a capacidade de dar forma e ressignificar. Nesta cena, o macaco apresenta uma nova forma de uso do osso, transformando-o em ferramenta. Neste momento sublime, nasce, na obra, o homem e todas as potencialidades inatas a ele.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, Eunice Soriano de. Como Desenvolver o Potencial Criador. 8ª Edição - Editora Vozes 1990.
Dicionário Houaiss.
https://www.youtube.com/watch?v=7E9CD3Hucws acessado em 13 de Novembro de 2019.
LIMB, Charles J. e BRAUN, Allen R. - “Substratos neurais do desempenho musical espontâneo: um estudo de fMRI de improvisação de jazz”. PLos ONE, vol. 3, edição 2, fevereiro de 2008.
ELIADE, Mircea – O Mito da Alquimia. Rio de Janeiro. Editora Fim do Século, 2000.
HILLMAN, James. O Mito da Análise: três ensaios de psicologia arquetípica; tradução de Norma Abreu Telles. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. (Coleção Psiquê; v.1)
JUNG, C. G. Determinantes psicológicas do comportamento humano. In: ______. Obras Completas de C. G. Jung. Volume VIII: a dinâmica do inconsciente. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. 3ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.
_______. Mysterium Coniunctionis: Pesquisas sobre a separação e a Composição dos Opostos Psíquicos na alquimia / C.G. Jung., com a colaboração de Marie-Louise von Franz; tradução Valdemar do Amaral; revisão literária Orlando dos Reis; revisão técnica Jette Bonaventure. - Petrópolis. RJ: Vozes .2015.
JUNG, C.G. Psicologia e Alquimia, vol. 12, Vozes: Petrópolis, 1994.
JUNG, C. G. Psicologia e poesia. Tradução de Dora Ferreira da Silva e Ruben Siqueira Bianchi. In: ______. Obras Completas de C. G. Jung. Volume XV: O espírito na arte e na ciência. Tradução de Maria de Moraes Barros. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
KANDINSKY, Wassily Do Espiritual na Arte; tradução Àlvaro Cabral, Antonio e Pádua Danesi. – 3. Ed. – São Paulo: Martins fontes – Selo Martins, 2015.
NEUMANN, Erich – História da Origem da consciência. Ed. São Paulo: Cultrix, 2014.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 13. Ed. Petropólis: Vozes,1991.
WILHELM, Richard. I Ching - O Livro das Mutações. São Paulo. Editora Pensamento – Cultrix, 2009.

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Sobre a autora: Selma Lessa





Psicóloga/ Arteterapeuta/Artista visual/ Instrutora de Yoga Integral
Pós-Graduada em Arteterapia
Pós-Graduanda em Psicologia Analítica
Colaboradora e professora do Ateliê de Artes e Terapias Eveline Carrano.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

BUSCANDO NOVAS TÉCNICAS


Por Sheila Leite - RJ 
entrelinhas.artepsi@gmail.com


A palavra-chave é isolamento social. Uma retirada compulsória da vida lá fora, que chega como um convite à vida pulsante no lado de dentro, no interno. Tanto o interior físico, que é a nossa casa e o nosso espaço, quanto o interior do nosso eu. E é nesse espaço, no encontro de si, que a Arteterapia chega com uma grande colaboração – sua função terapêutica pode facilitar que conteúdos inconscientes, não assimilados e não trabalhados, sejam trazidos para a consciência.

A questão nesse momento é: o consultório, com mesa farta de material para uso da arteterapia na clínica, encontra-se totalmente distante da realidade do nosso cliente. O setting terapêutico no modo online está dividido em dois ambientes ligados virtualmente por uma tela, seja de computador ou de celular. Dessa forma, existe o lado de lá – e é um momento de escassez, pois o cliente, em seu isolamento social, muitas vezes não tem material disponível para que ocorra o processo de criar.

De acordo com Philippini (2009), a arte tem um grande potencial curativo. “Seu poder é imenso e é capaz de nos trazer fortes experiências transformadoras e demonstrar vários aspectos da mesma realidade simultaneamente. É uma facilitadora da criatividade e uma ponte para que conheçamos aspectos desconhecidos de nós mesmos, que precisam ser descortinados de forma que vivamos uma vida mais inteira, coerente com nossa Totalidade Genuína”.

Na busca constante de técnicas com utilização de materiais de fácil acesso aos pacientes, muitas vezes nos vemos surpreendidos com os trabalhos que surgem após o processo. Uma dessas técnicas foi experimentada por mim mesma no grupo de estudos de Arteterapia. Procurando maneiras de trabalhar, nesse momento de pandemia, surgiu a ideia do trabalho com tesoura e papel, inspirada em Henri Matisse[i]. A técnica utiliza como material uma folha de papel, que pode ser de qualquer tipo ou cor, tesoura e cola (opcional). A gente convida o cliente a olhar para seu medo, sua angústia, seja o que for que estiver incomodando. Pegue o papel e desenhe com a tesoura, cortando imagens que forem surgindo de sua mente.                                                                                                                                                        
O corte pode ser de figuras humanas, coisas, elementos geométricos ou outras formas. Depois de recortadas as figuras, monta-se um cenário. As figuras podem ser coladas em outra folha ou deixadas soltas, dando a possibilidade de serem deslocadas ou até mesmo retiradas. É importante lembrar: o corte das figuras e a montagem dos cenários podem ser feitos ao som de uma música ou num momento de reflexão do cliente.


     Na montagem acima, optei por deixar as figuras soltas para mostrar uma forma dinâmica, em que poderia caminhar e escolher por onde ir.  As imagens foram surgindo à medida em que o Ego, angustiado, marginalmente consciente, começa a se dar conta do confinamento e sente a necessidade de entrar em contato com os conteúdos disponibilizados em forma de símbolos pelo inconsciente. O externo é deixado para trás e migramos para esse interior, no qual temos a oportunidade de olhar para os conflitos e até para parte de nossa sombra.

O espaço de deslocamento lá fora se reduz, assim como as nossas perspectivas exteriores na busca de objetivos. No entanto, as possibilidades de olhar para si descobrindo potencialidades latentes - muitas não vividas outras esquecidas - tornam-se mais extensas. O universo de conteúdos a serem explorados amplia-se internamente.

Como psicoterapeuta junguiana, procuro fazer da arteterapia mais um instrumento na minha clínica e busco com o cliente uma maneira de despertar a sua criatividade. Isso para que, de forma terapêutica, possamos encontrar um elo para acessar conteúdos que precisam ser elaborados e até mesmo ressignificados. A utilização de materiais expressivos, apropriados a cada situação apresentada pelo cliente, pode dar início ao processo criativo. Este vai conduzi-lo ao encontro da sua criação, da sua arte e dos símbolos que chegam através de imagens.

E você, através dessa técnica, pode criar também o seu cenário! Vamos?

Referências bibliográficas:
Philippini, Angela. Linguagens, materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak Ed, 2009.




[i]Henri Matisse (1869-1954) foi um pintor desenhista, gravurista e escultor francês. Pintar com tesoura foi a técnica de colagem que ele criou quando ficou de cama por conta de uma doença e não pode mais pintar.
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Sobre a autora: Sheila Leite


Psicóloga e Arteterapeuta em formação

Pós Graduação em Psicologia Junguiana
Psicóloga convidada da Rádio Rio de Janeiro, 1400 AM,  Programa Ouvindo Você.
Atendimento Clínico: individual e grupo. Crianças, adolescentes e adultos na Ilha do Governador


segunda-feira, 13 de julho de 2020

TERCEIRO ENCONTRO COM LA FONTAINE

                                                           
                                                             Marc Chagall

Por Beatriz Coelho
biacoelho017@gmail.com

Na época de La Fontaine, a Academia de Letras passou a se reunir no próprio Palácio de Versailles, conferindo assim maior prestígio ao poder de Luís XIV. Ali, alimentavam-se várias querelas, entre elas a da impropriedade dos temas arrebatados pelas fantasias da imaginação. Por exemplo: animais não falam.

La Fontaine, em diversas estórias, faz irônicas alusões a estas posturas rígidas, dogmáticas, formais e ridículas. Na dedicatória da primeira coletânea das Fábulas dirigida ao Príncipe Luís, o Delfim, então com sete anos de idade, lança algumas luzes sobre o propósito destas narrativas. Vejamos:

                              Ao Delfim

São filhos de Esopo os heróis que eu canto.
São mentirosas suas estórias - mas eu canto.
As mentiras contêm verdades no meu canto.
Tudo fala na minha obra: até os peixes.
E o que dizem vale para qualquer humano:
Utilizo os animais para ensinar aos homens.
Pequeno Príncipe, amado sob estes céus,
Os olhos do mundo se voltam para ti;
Muitas cabeças se inclinarão sob teu olhar,
Fruto das conquistas que hás de acumular.
Outro poderá contar com voz mais forte
Os feitos de teus ancestrais, do Sul, ao Norte;
Eu te distrairei apenas com aventuras,
Esboçando, em versos, leves pinturas;
E se não fores por eles cativado
Terei ao menos a honra de haver tentado.

Outra questão que os versos suscitam é a questão do ensinamento contido na fábula. Ora, La Fontaine é um espírito livre. À medida em que avança na produção, vai tomando distância  desta missão educativa da narrativa. Sempre e cada vez mais é o ato de criar que transporta La Fontaine. Inspira-se dos clássicos, mas sem a eles se escravizar. André Gide dirá, no século XX, que a rigidez que o classicismo impôs aos artistas permitiu, por outro lado, a constituição de um patrimônio artístico homogêneo e sólido. É sempre válido observar um problema de perspectivas diversas.

Jean-Claude Carrière, escritor e roteirista dos filmes de Buñuel, privilegia a arte de contar. Ao longo da vida, colecionou estórias pitorescas do mundo inteiro ao estilo das fábulas e as publicou. Diz ele no Prefácio do Cercle des Menteurs  (Círculo dos Mentirosos):  Como  vermes fecundando a terra - pelo menos é  o que se espera -, atravessando-a às cegas, as estórias passam de boca em boca e dizem há muito tempo, o que ninguém mais pode dizer. Algumas giram e se enroscam num povo. Outras, como que feitas de matéria sutil, furam muralhas invisíveis que nos separam uns dos outros, ignorando tempo e espaço e simplesmente se perpetuam. Assim como a entrada bem conhecida do palhaço no picadeiro procurando um objeto perdido no círculo luminoso, não porque ele tenha ali se perdido, mas porque lá  existe luz(...). Assim acontecem com as fábulas que nos veem de um tempo remoto.

Imaginemo-nos sentados em círculo ouvindo mais uma fábula de La Fontaine: mentirosa?



A Rã deseja ser do tamanho do Boi
       (Livro I, fábula 3)

Uma rã avistou um Boi:
Eis o porte ideal! Pensou;
Ela que maior do que um ovo nunca foi.
Invejosa, se esticou, inchou, se pesou...
Para chegar às proporções do animal.
Perguntou: _Olha Arcimbal,
Estou bem? Diga-me; não é suficiente? _
Ainda não, fala o colega. Ela insiste: _E agora?_
Desiste, diz Arcimbal. A rãzinha carente
Inchou tanto que estourou na mesma hora.

O mundo gira com pouca sabedoria:
O burguês sonha com palácios medievais;
O príncipe escamado com bailes triunfais;
O visconde com espigas de filosofia.


Para ler os textos anteriores CLIQUE AQUI e CLIQUE AQUI

Bibliografia: 
Idem para as matérias anteriores e ainda: Jean-Claude CARRIÈRE, Le Cercle des Menteurs, p. 7, Pocket, Plon Ed., 2009, Paris

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Sobre a autora: Beatriz Coelho



Sou mesmo é multifacetada.
Em Paris, fiz mestrado em Sociologia.
Lá, me casei e tive a primeira cria.
De volta ao Brasil, a Vida fez arrelia.
    Abandonei a Sociologia.
Consacrei-me aos amores da minha família.
Mas as letrinhas faziam uma falta danada.
Estava meio despetalada.
Escrevi Cadernos do Silêncio com vírgulas
E de La Fontaine traduzi as Fábulas. 

segunda-feira, 6 de julho de 2020

PINTAR & BRINCAR JUNTOS, ARTE QUE NASCE DO ENCONTRO


Por Maria Matina - Portugal
matinarte@gmail.com
Instagram @matinarte
Youtube Pintar Brincar só começar 


É com muita alegria que volto ao blog ‘Não Palavra’ partilhando desafios e descobertas da minha prática cotidiana de relação com o mundo através da arte. Hoje, partilho com vocês o projeto ‘Pintar & Brincar juntos’, que nasceu da necessidade de conectar com o público apesar do isolamento que vivemos durante a quarentena. Minha motivação inicial para a criação desse projeto foi individual, sentia que precisava de um espaço de troca e da ajuda dos outros para conseguir criar artisticamente e superar a sensação de paralisia que o isolamento começava a me causar.

A ideia inicial era criar a partir da fala e interação com o público durante uma transmissão ao vivo, e com uma folha em branco a minha frente iria convidar o público a criar junto a mim, ir desenhando, pintando e construindo uma imagem que pudesse traduzir nossas ideias e nosso encontro, e foi assim que nasceu o primeiro ‘Pintar & Brincar juntos!’, a  partir das lives no instagram e YouTube fui perguntando aos espectadores o que viam pela janela, ou o que gostariam que entrasse na imagem, qual era a cor que lhes vinha à mente, o que estavam pensando, sentindo… e assim foi  se revelando uma imagem que me inspirou a improvisar uma história.



E lá se vão 12 encontros, todos com criações e propostas artísticas diversas e 12 histórias improvisadas. Histórias que nasceram como uma interpretação narrativa daquela imagem, utilizando elementos sonoros, objetos e movimentos. Sempre encerro o encontro estendendo o convite para que cada um dos participantes vá além da criação da imagem e desdobre as possibilidades daquela obra, felizmente esse convite é acatado por diversos participantes que criam histórias, dançam e utilizam elementos para complementar a narrativa. (os resultados podem ser vistos no instagram @matinarte)

Apesar de eu estar desenhando ao longo do encontro, minha intenção não é apresentar o desenho que faço como um modelo ou referência a ser seguido, pelo contrário, reforço sempre que cada um deve fazer seus elementos como quiser (com as cores, formas ou como lhe vierem à mente), e é possível perceber pela interação do público que naquele momento estamos todos em processo de criação, cada um concentrado em seu fazer artístico.

Os encontros têm em média uma duração de 90 minutos, e durante esse período estão todos (crianças, idosos e adultos) envolvidos no processo de criar a partir das ideias e contribuições do coletivo.

Outra característica muito interessante destes encontros têm sido a frequência dos mesmos participantes, vez ou outra temos novos participantes, mas desde o início um grupo constante de 10 pessoas participa regularmente e têm nesse encontro um espaço de autocuidado, além das diferente faixas etárias (6 a 60 anos) existem diferentes configurações de grupos, alguns estão sozinhos em suas casas, enquanto outros estão em coletivo, participando como família de forma individualizada porém vivenciando a experiência juntos.

Por ter esse grupo constante pude ir aumentando o nível de dificuldades ou desafios longo do encontros, ampliando a integração entre as diferentes manifestações artísticas, incluindo poesia, dança, música e teatro, além de propor temas subjetivos e abstratos como o sentir juntos, a vida e a morte. Temas esses que poderiam ser muito desafiadores para uma dinâmica realizada a distância, mas que resultaram em processos criativos muito diversificados e enriquecedores, além de excelentes resultados artísticos.

Apesar das plataformas (instagram e Youtube) não terem o recurso de acompanhar todo o processo de criação dos participantes ao fim dos encontros existe sempre o espaço para o diálogo e convite à partilha de tela, onde os participantes que desejarem partilham suas criações e como se sentiram ao longo do encontro. A observação das obras criadas por cada um e a partilhar o processo, fortaleceu o grupo, e criou a noção de pertencimento real.

As obras também são partilhadas posteriormente nas redes sociais como exposição permanente desses encontros.

Atualmente os encontros ao vivo estão em pausa, pois Portugal já está voltando a uma ‘normalidade’ e minha demanda de trabalho aumentou muito. Porém, para não deixar os participantes desatendidos faço semanalmente vídeos de sugestão de atividade para Pintar & Brincar. Espero que quem leu até aqui também possa se inspirar a criar, olhar fundo dentro de si e partilhar com o mundo sua arte.

“A tua visão tornar-se-á clara quando olhares para dentro do teu coração; quem olhar para fora sonha, quem olha para dentro desperta” Carl Jung


Referências:
RODRIGUES, DALILA D’ALTE. A infância da arte, A arte da infância, Fund. Caixa Agrícola do Noroeste, Viana do Castelo, 2016.
TEATRAL, CIA. DE MUSICA. Ecos de Opus Tutti, Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.
KRENAK, AILTON. ‘O amanhã não está a venda’, Cia das Letras, 2020.

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Sobre a autora: Maria Matina


Formação: Artista e Arteterapeuta
Área de atuação/ Projetos/Trabalhos: Artista, educadora e arteterapeuta, nasceu no Rio de Janeiro numa família de artistas. Formada em Gravura - Belas Artes UFRJ ministra aulas de arte desde 2007. Também têm grande experiência no trabalho de estimulação precoce e artística para bebés. Atualmente coordena de forma nômade a Casa Benet Domingo no Rio de Janeiro. Residindo em Portugal desde 2016 participa regularmente de exposições com o coletivo Aveiro Arte além de realizar workshops e atividades artísticas em festivais e diversas cidades de Portugal.