segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

DIÁLOGOS ENTRE ARTE, TARÔ E ARTETERAPIA: O CARRO E OS CAMINHOS DE CHIQUINHA GONZAGA


Por Mercedes Duarte - RJ

Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos. Nesse artigo, trago o Arcano VII, o Carro, em diálogo com a biografia da artista Chiquinha Gonzaga.

 

Aqui não há a pretensão de esgotar as dimensões do arquétipo, o que seria inalcançável, tampouco explanar com profundidade a biografia da artista. O escopo é trazer um recorte que privilegie as afinidades entre ambos.

 

O intuito desse diálogo, portanto, entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões e possibilidades arteterapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, buscando, assim, contribuir para a ampliação do repertório arteterapêutico. 

O Carro – Arcano VII 


O carro parece simbolizar com propriedade o poder transportante da psique. A psique não é um objeto, uma coisa; é um processo.

Sua essência é o movimento (NICHOLS, 1997, p. 150).



 
                                                                        Tarô de Marselha

                                                                                                        Tarô de Waite e Smith


O arcano VII, apesar de a imagem do Carro, ou Carruagem, parecer estar parada – como no Tarô de Marselha com suas rodas ao fundo, em posição não favorável ao deslocamento, ou, como no Tarô de Waite e Smith, com duas esfinges deitadas a frente da carruagem - ele nos fala de movimento, desenvolvimento, deslocamento, travessia. Não por acaso esse arcano encarna o número sete, o sétimo lugar dos arcanos. De acordo com diferentes tradições, a escala de evolução é setenária. Desse modo, na organização do tarô que Sallie Nichols (1997) se apropria, há uma divisão constituída por três fileiras de sete cartas.[3] O Carro, portanto, compõe a última posição da primeira fileira, como vemos abaixo, encerrando a síntese de uma primeira escala evolutiva. Do Reino dos Deuses - essa primeira fileira onde o herói entra em contato com grandes poderes, sejam as divindades ou os arquétipos da Mãe, do Pai e do primeiro Mestre -, o Carro nos transporta para a segunda fileira, o Reino da Realidade Terrena, do Caminho das leis e da Consciência do ego.     


     

Partindo da concepção de que os arcanos maiores do tarô podem representar etapas de nosso desenvolvimento psíquico e pessoal, compreende-se um diálogo entre as etapas. O Enamorado, arcano anterior ao Carro, pressupõe uma escolha que pode envolver abandonar antigos paradigmas, ou mesmo o seio familiar, e ir em direção ao Reino da Realidade Terrena, com intuito de conquistar um lugar no mundo. É nesse processo, contemplado pela fileira intermediária, que o indivíduo, ou o herói, que pode ser representado pelo Arcano 0, o Louco, desenvolve a consciência de leis que regem o mundo e a experiência humana, assim como a consciência de seu ego. 

É o Carro então que anuncia que o herói está pronto para conquistar um novo reino. Entretanto, é preciso equilibrar e integrar as dualidades constitutivas da psique, encarnadas seja nos dois cavalos ou nas duas esfinges, para que o carro não se desgoverne, para que seja possível um movimento efetivo ao passo que as charadas, das esfinges, forem desvendadas. 

Chiquinha Gonzaga e o Carro 

A musicista, maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935) nos aproxima desse arquétipo do Carro ao tomarmos contato com sua história. Chiquinha Gonzaga compôs mais de 2.000 músicas que integravam mundos distintos, polaridades da cultura brasileira. Uniu o erudito e o popular em gêneros variados como choros, valsas, polcas, quadrilhas, fados, serenatas, maxixes, lundus, tangos e mazurcas. 

Curiosamente a artista era filha de uma mulher negra, integrante das camadas populares, Rosa Maria de Lima, filha de uma ex-escrava. E de um homem branco, aristocrata, José Basileu Neves Gonzaga, general do exército imperial brasileiro, que constituía a tradicional família de Duque de Caxias. Chiquinha, portanto, integrava em si dois universos distintos, exprimindo assim tal união em sua música, a qual a fez ganhar o mundo. 

Entretanto, sua ascensão no mundo não foi algo que obteve com facilidade. Precisou abrir mão dos padrões de conduta vigentes, esperados de uma “moça de família”, e lutar contra sua família e organização social em várias instâncias. Não era aceito na época da artista, finais do século XIX, que uma mulher desenvolvesse uma carreira profissional. As mulheres eram formadas para serem mães e esposas. As moças de famílias abastadas aprendiam a tocar piano apenas para o entretenimento familiar. Não se esperava que uma mulher lançasse mão desse recurso para disputar o palco de teatros, bares e salões com outros homens. 

Mas Chiquinha, apesar de ter toda uma configuração social e familiar desfavorável a sua atuação profissional, não se rendeu, e chegou em lugares que até então não haviam sido conquistados antes. Como o posto de primeira maestrina brasileira.  

Vemos em sua história uma série de semelhanças com o arquétipo do Carro, seja relativa à integração e equilíbrio entre dualidades, o que Chiquinha Gonzaga representa com seu próprio corpo e sua música, seja pela decisão de abrir mão de seu seio familiar para conquistar o mundo, o reino intermediário da Realidade Terrena. E, por fim, conquistou seu lugar, com toda a coragem e movimento diretivo encerrado pelo Carro. 

Proposta Terapêutica 

Na oficina da Jornada Arteteterapêutica Arte e Tarô, com algumas músicas da Chiquinha Gonzaga, as participantes dançaram com o lápis sobre o papel, desenhando linhas, caminhos, de modo espontâneo. Após esse exercício, buscaram observar as imagens que emergiam dos traçados espontâneos, e coloriram essa formação identificada. O estímulo era para perceberem as linhas desenhadas, e imagens, como os seus próprios caminhos, propósitos e diretivas. 

O que me chamou atenção foi que na maior parte das imagens que surgiram estavam presentes elementos relativos a asas, pássaros e, sobretudo, voo.

O voo

                                                                                               Asas para voar

                                                                                Escolhe, aconchega, ilumina e voa


                                                                                      O andar, o voo e o mergulho


A participante da primeira imagem dizia sobre começar a sentir o momento necessário de alçar voo em sua vida profissional, o que começou a ocorrer em seguida da produção dessa imagem. Sem dúvida esse voo já estava sendo gestado por longo período. 

A noção de voo nos remete à ideia de expandir horizontes, de crescer (abrir as asas), se desenvolver (movimentar-se), de libertar-se do que limita, do que aprisiona. É relevante salientar que não houve menção a essa palavra, ou a nenhuma outra relativa, ao longo da apresentação da oficina, o que nos aponta para uma metáfora que atravessa o imaginário social, ou o inconsciente coletivo, quando falamos de caminhos em desenvolvimento. 

Aqui é possível refletir também sobre que a cada passo dado para dentro, para baixo, ou seja, rumo ao conhecimento interior, crescemos para fora, nos desenvolvendo familiar e socialmente. E é essa jornada que o tarô e a arteterapia propõem. Não por acaso, a cada fileira que percorremos da sequência do tarô, adotada aqui, adentramos um nível inferior, relativo ao anterior. E especialmente no Reino da Realidade Terrena, a maior parte das personagens das cartas estão a realizar movimentos para baixo, apontando assim para o Reino da Auto-realização. 



[1] DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/

[2] A Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô consiste em oficinas, remotas, inspiradas nos arcanos maiores do tarô em diálogo com determinados elementos da arte.

[3] Esse tema foi explanado no texto Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução, (DUARTE, 2021). Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/


Referências bibliográficas 

DINIZ, Edinha (2009). Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Editora Zahar, 2009. 

DUARTE, Mercedes. Diálogos entre Arte e Tarô: uma introdução. Blog Não-Palavra. 31 de maio, 2021. http://nao-palavra.blogspot.com/2021/05/

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte


Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

AH, O TEMPO...

 


Releitura da obra “A Persistência da Memória” - Salvador Dalí

por Claudia Abe

 

Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

Instagram: @claudia_abe_

 

Ah, o tempo...o que você fez com o tempo que lhe foi dado em 2021?

Essa pergunta fez parte da vivência que ofereci para várias pessoas, em atendimento individual e grupal, em dezembro de 2021, como uma proposta de encerramento de ciclo.

A vida é um fluxo constituído de ciclos... Mutação e ciclo são necessários para que aconteça a renovação da vida. É preciso ir para ciclos novos, evoluir. Quando respeitamos os ciclos, a vida flui, se renova e permitimos nossa própria evolução. (OTSU, 2006, p. 25-27)

Participaram desta vivência públicos diferentes, ao longo de uma semana, em atendimento online, e trabalhamos logo de início com uma pintura de Salvador Dalí – “A Persistência da Memória” (1931), cuja obra original está exposta no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova York, Estados Unidos.

Salvador Dalí, pintor espanhol, pertenceu ao movimento Surrealista. Suas obras são capazes de nos deixar perplexos, provocar muitas reflexões, além de atiçar nossa curiosidade. Na cidade onde nasceu, Figueres, construiu um lindo e enorme museu – o Teatro - Museu Dalí, onde logo na entrada, num pátio aberto, várias estátuas douradas recebem os visitantes de braços abertos. Há um curioso Cadillac estacionado, cujo interior está repleto de plantas artificiais por sobre alguns bonecos/manequins, estes representando um motorista e um casal sentado no banco traseiro. Ao depositar uma moeda de euro, literalmente chove no interior do automóvel. Suas obras instigantes estão expostas ao longo de todo o museu. Dalí presenteou Gala, sua esposa e musa inspiradora, com um castelo medieval em Púbol – a Casa-Museu Gala Dalí – e teve como residência uma casa em Portlligat, hoje também museu. Todos na região da Catalunha, Espanha. Vale a pena uma visita a esse três locais!

Com a imagem da pintura “A Persistência da Memória”, na tela de seus computadores e aparelhos celulares, pedi aos participantes que escrevessem três momentos, a partir da observação da obra:

          1-    O que você vê? Faça uma descrição, observe cada detalhe.

          2-    O que você sente ao ver a obra? Deixe suas emoções virem, anote suas sensações e sentimentos.

      3-    O que você imagina? O que você acha que está acontecendo nesta cena ou o que pode vir a acontecer?

E assim foram surgindo:

       1-  Relógios deformados, árvore seca, um entardecer na praia com as falésias ao fundo, areia escura, rochedo, mar, perfil humano, piscina suspensa. Três relógios de bolso derretem ao tempo.

      2-    Sinto que o tempo passa... ansiedade, tristeza, solidão, sem vida, tudo é fluido, o tempo é fluido, incontrolável...me dá tristeza, solidão, dureza do cubo, a rigidez do inútil.

      3-    Imagino a imensidão do tempo para alguns e o momento (brevidade) para outros. O mar nos traz uma espécie desconhecida. A praia – inquietação do mundo científico. Local abandonado. Fim, sensação de morte, finitude incontrolável. Praia e montanha eternos, calmos, destoam do resto.

Surpreendente o que cada participante observou, aliás, nem eu havia percebido tantos detalhes na pintura, pois ouvi relatos de muitas pessoas que passaram por esta experiência.

Passamos para o momento de relaxamento onde fui conduzindo os participantes, de olhos fechados, a fazerem uma retrospectiva sobre o seu trajeto ao longo do ano de 2021, ainda em período de pandemia pela Covid-19.

Percorremos os meses, fazendo uma profunda reflexão sobre como haviam utilizado o tempo em relação à sua própria pessoa, sua saúde, seus relacionamentos com família e amigos, seu trabalho, estudos, lazer, finanças e o tempo que utilizaram para se reconectarem com aquilo que acreditam, com a sua fé.

Fizemos uma pausa para reflexão do momento atual, no caso, dezembro 2021. E em seguida, pedi para planejarem como pretendiam utilizar o tempo no novo ano que iria iniciar.

Passaram para a construção de seus relógios, de posse da imagem da obra de Dalí, e com os materiais escolhidos por cada participante. Considerei como materiais obrigatórios folhas sulfite brancas e lápis de cor. Tesoura e cola se estivessem disponíveis. Percorreram seus espaços para encontrarem mais dois materiais usando a intuição nessa escolha (sugerido: papel de alumínio, lãs, linhas, botões, grãos, lantejoulas, papéis coloridos etc.).

Qual o significado do tempo para você? – Essa foi a grande pergunta.

 

Compartilhamento

Nesse momento, alguns dos participantes mostraram seus trabalhos pelo vídeo, fazendo um breve relato. De acordo com Hungria (2020, p.101), “...dois artistas não produzem trabalhos iguais, mesmo que a partir de um mesmo tema e técnica. Uma obra é o fruto das vivências do seu criador: suas emoções, percepções, sentimentos e valores.” 


 “Relógio da Vida”

Palavra final: Reflexão

“Procurei colocar no relógio as partes que usei e como vou usar o tempo em cada área da vida. Percebo que tudo está conectado...então, temos que nos dedicar a tudo!!!!”

 


“Reflexo do Tempo – Um Oásis no Deserto”

Palavra final: Surpreendente

“Explorando as possibilidades dos materiais. Apenas criando. No término do Tempo. Surpresa do resultado. Visão do Todo e decodificando a impressão inconsciente e expressa na imagem.” 


“Gratidão pela Vida”

Palavra final: Busca

“Muita gratidão por estar viva e poder planejar meu futuro: viver com meus amados. Buscar a felicidade e a simplicidade. Buscar minhas verdades. Minha essência. Viver! Amar! Aproveitar o tempo que me resta, vivendo com os seres vivos que amo.” 


“O Único Tempo”

Palavra final: Precioso

“Diferente de Dalí, o tempo é macio e suave. A hora é única, tudo é 1. Sempre em movimento. Único, não é igual, não tem mostrador, não consegue marcar. Tem uma borboleta fluindo. O relógio inteiro anda. Cores para o movimento. Pássaros voando. Indo no amanhecer e no entardecer. Muitas coisas únicas fluindo, indo junto.”

 

E agora eu te pergunto:

Ah, o tempo...o que você fará com o tempo que lhe está sendo dado em 2022?

 

Nota: fotos e relatos autorizados pelos participantes.

 

Bibliografia:

HUNGRIA, Heloisa Soares. Um percurso compartilhado entre Arte Contemporânea e Arteterapia. Arteterapia no processo do envelhecimento. Selma Ciornai, Marcia Bombarda Pires de Oliveira, Renata Gabriel Schwinden ( orgs.). Rio de Janeiro: Wak Editora, 2020.

OTSU, Roberto. A sabedoria da natureza. Taoísmo, I Ching, Zen e os ensinamentos essênios. São Paulo: Ágora, 2006.

https://www.wikiart.org/pt/salvador-dali/a-persistencia-da-memoria-1931 : Acessada em 10 dezembro 2021.

https://www.salvador-dali.org/en/museums/  : Acessada em 03 janeiro 2022.

 

Se você quiser ler meus textos anteriores neste blog, são eles:

As Cores em Marilyn Monroe – 13/12/21

Um Desafio – 11/10/21

O Branco no Branco – 23/08/21

Tudo Começa em Pizza – 28/06/21

Um Material Inusitado – O Carimbo de Placenta – 10/05/21

As Vistas do Monte Fuji – 22/03/21

É Pitanga! – 07/12/20

O que é que a Baiana tem? – 26/10/20

Escrita prá lá de criativa – 27/09/20

Fazer o Máximo com o Mínimo – 01/06/20

Tempo de Corona Vírus, Tempo de se Reinventar – 13/04/20

Minha Origem: Itália e Japão – 17/02/20

Salvador Dalí e “As Minhas Gavetas Internas” – 11/11/19

“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” – 19/08/19

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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe 


 

Arteterapeuta e Farmacêutica-Bioquímica

Atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.

Voluntária com o projeto online “Cuidando do Cuidador”, para cuidadores familiares de pessoas com a Doença de Alzheimer, no grupo GAIAlzheimer, São Paulo.

Idealizadora do projeto “Simplesmente Eu” com atendimento grupal online, para pessoas que não conhecem a arteterapia.

Autora do texto “Salvador Dalí e as minhas gavetas internas”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes, 2020, Semente Editorial.

Participante da Live “Cuidados na Doença de Alzheimer” do Instituto Alzheimer Brasil – IAB – com o tema “Arteterapia”, disponível no canal do IAB no Youtube, 2021.

Palestrante especialista do tema Arteterapia na disciplina "Cuidado integral ao longo do ciclo da vida à luz das Práticas Integrativas" – Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – EACH – USP, 2021.

Atendo em domicílio e online, individual e grupal.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

PARA 2022, O REPENSAR DAS RELAÇÕES

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Abre-se 2022, um novo ciclo com suas dores e delícias. Mais um ano que se inicia com suas interrogações e incertezas: o que temos pela frente? O que está por vir? No campo da escuta clínica, dos temas trabalhados com mais frequência são o lidar com a flexibilidade, a habilidade de “naturalizar os imprevistos” (com todo o paradoxo que esta expressão carrega), a tolerância ao não controle da vida, saber planejar-se e organizar-se à curto prazo, o ancoramento interno em meio às oscilações externas, a liberdade individual perante os movimentos coletivos.

Nesse cenário, tenho estimulado aos terapeutas de minha rede que agucem sua escuta para outras temáticas, além dessas, para que possamos buscar instrumentalizações teóricas e práticas previamente. Tomando emprestado a expressão cunhada por Ezra Pound, a qual se refere aos artistas como “antenas da raça”, acredito que os arteterapeutas são participantes da alma do artista, além de carregar em si a sensibilidade do terapeuta. Exercendo assim, a função de “antena da raça”, um dos temas que mais tem me atravessado para a escuta de 2022 são os relacionamentos humanos.

O tema “relacionamentos” sempre fez parte da escuta terapêutica. Entretanto, observo que dos últimos anos até aqui, esta temática tem tomado um lugar cada vez mais central e específico nas angústias trazidas pelos pacientes, culminando neste ano que se inicia. Ao que tudo indica teremos um ano extremamente desafiador em vários aspectos políticos, econômicos, sociais, que naturalmente se configurarão em angústias individuais que irão carecer de acolhimento dentro do setting terapêutico. Dentro disso, os encontros e desencontros interpessoais fatalmente se farão bastante presentes.

Encontrei eco nas palavras de Beatriz Cardella, aos quais compreendo que se encaixam como uma luva para as reflexões atuais:

Observo no cotidiano da clínica as formas do sofrimento produzidas pela contemporaneidade; muitos sofrem ao viverem num mundo excessivamente competitivo, de relações superficiais e de dilaceramento dos vínculos humanos; testemunho o anseio de meus pacientes por viverem relações significativas, amorosas, de confiança e de intimidade.

Vivemos, como nos diz o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, num mundo líquido, do homem sem vínculos; as relações foram substituídas por conexões, que implicam sempre a facilidade de desconectar, característica do descartável. A clínica revela que muitas pessoas estão ávidas e carente de vínculos, porém pouco disponíveis e preparadas para a desarrumação que uma verdadeira relação certamente provoca. Amar e ser amado implica consentimento para ser perturbado. (CARDELLA, 2020, 34)

Receber, ouvir, acolher, tolerar. Aqui estão grandes desafios para aqueles que desejam relacionar-se mas esquecem que para isso, é necessário dialogar com o outro.

Por outro lado, embora um movimento tão desafiador, Beatriz nos lembra que aspectos envolvidos com os relacionamentos fazem parte das necessidades ontológicas do ser humano. Estas são necessidades do ser, em oposição às necessidades concretas, ônticas:

Há formas de sofrimento que têm sua origem no registro ontológico... que implicará o conhecimento do paciente como ser humano. (REHFELD, 2009)

Na clínica isto significa que o terapeuta precisará reconhecer as necessidades fundamentais da dignidade humana que constituem o Ethos, como por exemplo: a hospitalidade, o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a responsabilidade, a transcendência, entre outras...

Essas formas de sofrimento se caracterizam como desenraizamentos, a perda das raízes na condição humana. (CARDELLA, 2020, 52-53)

 

Grupos arteterapêuticos em 2022

Neste contexto, tenho pensado e retomado meus estudos e produção de conteúdos sobre um dos temas mais próprios da Arteterapia: as práticas em grupos arteterapêuticos em suas mais variadas modalidades.

Estar em grupo dentro de um setting terapêutico significa não apenas “falar” sobre as relações, mas “vivenviar” relações no contexto de um espaço para o autoconhecimento. Assim, um grupo arteterapêutico se configura como:

... uma subversão ao convite tão subjetivo de nossa cultura, os participantes de um grupo de arteterapia têm a oportunidade de saírem de sua zona de conforto, se deslocarem ao encontro com outros seres humanos e a partir das propostas expressivas e criativas se perceberem, se pensarem como sujeitos (de) em relação e se assim desejarem, ensaiarem movimentos de mudança que certamente transbordarão para suas relações em outras esferas. (MORAES, 2018, 109)

Desta forma, acredito que como arteterapeutas poderemos exercer nossa micropolítica: em tempos tão propício aos desencontros, a prática arteterapêutica poderá servir como um vetor de encontros, vínculos, saúde integral individual e coletiva:

[Grande é] a importância dos grupos para constituir redes sociais criativas, base para a construção de comunidades mais harmônicas, fraternas e saudáveis, que são geradas e multiplicadas a cada grupo arteterapêutico...  (PHILIPPINI, 2011, 14)

Mas uma das especificidades que a Arteterapia nos oferece é, de fato, inserir a arte – o ato criativo e a linguagem ampliada através das imagens – na presença, diálogo e coparticipação do outro. Com a introdução da arte, a teia afetiva, projetiva e relacional, sem dúvida, ganha outros contornos e dinâmicas dentro do setting, aos quais o arteterapeuta deve buscar aprofundar-se em seus estudos, seja em literatura teórica, supervisões, grupos de estudos e diálogos com seus pares.

De posse deste propósito, no último dia dois de fevereiro, iniciamos nossa jornada com o primeiro Webinar para o diálogo sobre diversos olhares sobre o tema, com as participações de Paula Ribas, Lidia Lacava, Silvia Quaresma e mediação de Regina Rasmussen do Espaço Crisântemo. A partir de nosso próprio olhar e os tantos feedbacks que recebemos, percebemos que este foi um encontro muito potente para o estímulo e instrumentalização de arteterapeutas para a adesão ao convite de investirmos em grupos com energia e atenção específicos neste ano que se inicia.

Para fechar a webinar e concluir este primeiro texto de 2022, mais uma vez escolhi a poesia para sintetizar nossa reflexão e nos sensibilizar de forma mais profunda. E encontrei nas palavras de Leminsky uma grande inspiração do porquê nós arteterapeutas devemos investir em grupos arteterapêuticos neste ciclo que se inicia:

Contranarciso

em mim
eu vejo
o outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente centenas

o outro
que há em mim é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

 

Paulo Leminsky

 

Referências Bibliográficas:

CARDELLA, Beatriz. De volta para casa. Ética e Poética na Clínica Gestáltica Contemporânea. 2020.

MORAES, Eliana Pensando a Arteterapia Vol 1, 2018.

PHILIPPINI, Angela. Grupos em Arteterapia: Redes criativas para colorir vidas. Ed Wak, Rio de Janeiro, 2011.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"