segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

PARA 2022, O REPENSAR DAS RELAÇÕES

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Abre-se 2022, um novo ciclo com suas dores e delícias. Mais um ano que se inicia com suas interrogações e incertezas: o que temos pela frente? O que está por vir? No campo da escuta clínica, dos temas trabalhados com mais frequência são o lidar com a flexibilidade, a habilidade de “naturalizar os imprevistos” (com todo o paradoxo que esta expressão carrega), a tolerância ao não controle da vida, saber planejar-se e organizar-se à curto prazo, o ancoramento interno em meio às oscilações externas, a liberdade individual perante os movimentos coletivos.

Nesse cenário, tenho estimulado aos terapeutas de minha rede que agucem sua escuta para outras temáticas, além dessas, para que possamos buscar instrumentalizações teóricas e práticas previamente. Tomando emprestado a expressão cunhada por Ezra Pound, a qual se refere aos artistas como “antenas da raça”, acredito que os arteterapeutas são participantes da alma do artista, além de carregar em si a sensibilidade do terapeuta. Exercendo assim, a função de “antena da raça”, um dos temas que mais tem me atravessado para a escuta de 2022 são os relacionamentos humanos.

O tema “relacionamentos” sempre fez parte da escuta terapêutica. Entretanto, observo que dos últimos anos até aqui, esta temática tem tomado um lugar cada vez mais central e específico nas angústias trazidas pelos pacientes, culminando neste ano que se inicia. Ao que tudo indica teremos um ano extremamente desafiador em vários aspectos políticos, econômicos, sociais, que naturalmente se configurarão em angústias individuais que irão carecer de acolhimento dentro do setting terapêutico. Dentro disso, os encontros e desencontros interpessoais fatalmente se farão bastante presentes.

Encontrei eco nas palavras de Beatriz Cardella, aos quais compreendo que se encaixam como uma luva para as reflexões atuais:

Observo no cotidiano da clínica as formas do sofrimento produzidas pela contemporaneidade; muitos sofrem ao viverem num mundo excessivamente competitivo, de relações superficiais e de dilaceramento dos vínculos humanos; testemunho o anseio de meus pacientes por viverem relações significativas, amorosas, de confiança e de intimidade.

Vivemos, como nos diz o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, num mundo líquido, do homem sem vínculos; as relações foram substituídas por conexões, que implicam sempre a facilidade de desconectar, característica do descartável. A clínica revela que muitas pessoas estão ávidas e carente de vínculos, porém pouco disponíveis e preparadas para a desarrumação que uma verdadeira relação certamente provoca. Amar e ser amado implica consentimento para ser perturbado. (CARDELLA, 2020, 34)

Receber, ouvir, acolher, tolerar. Aqui estão grandes desafios para aqueles que desejam relacionar-se mas esquecem que para isso, é necessário dialogar com o outro.

Por outro lado, embora um movimento tão desafiador, Beatriz nos lembra que aspectos envolvidos com os relacionamentos fazem parte das necessidades ontológicas do ser humano. Estas são necessidades do ser, em oposição às necessidades concretas, ônticas:

Há formas de sofrimento que têm sua origem no registro ontológico... que implicará o conhecimento do paciente como ser humano. (REHFELD, 2009)

Na clínica isto significa que o terapeuta precisará reconhecer as necessidades fundamentais da dignidade humana que constituem o Ethos, como por exemplo: a hospitalidade, o pertencimento, o reconhecimento, a singularidade, a criatividade, a responsabilidade, a transcendência, entre outras...

Essas formas de sofrimento se caracterizam como desenraizamentos, a perda das raízes na condição humana. (CARDELLA, 2020, 52-53)

 

Grupos arteterapêuticos em 2022

Neste contexto, tenho pensado e retomado meus estudos e produção de conteúdos sobre um dos temas mais próprios da Arteterapia: as práticas em grupos arteterapêuticos em suas mais variadas modalidades.

Estar em grupo dentro de um setting terapêutico significa não apenas “falar” sobre as relações, mas “vivenviar” relações no contexto de um espaço para o autoconhecimento. Assim, um grupo arteterapêutico se configura como:

... uma subversão ao convite tão subjetivo de nossa cultura, os participantes de um grupo de arteterapia têm a oportunidade de saírem de sua zona de conforto, se deslocarem ao encontro com outros seres humanos e a partir das propostas expressivas e criativas se perceberem, se pensarem como sujeitos (de) em relação e se assim desejarem, ensaiarem movimentos de mudança que certamente transbordarão para suas relações em outras esferas. (MORAES, 2018, 109)

Desta forma, acredito que como arteterapeutas poderemos exercer nossa micropolítica: em tempos tão propício aos desencontros, a prática arteterapêutica poderá servir como um vetor de encontros, vínculos, saúde integral individual e coletiva:

[Grande é] a importância dos grupos para constituir redes sociais criativas, base para a construção de comunidades mais harmônicas, fraternas e saudáveis, que são geradas e multiplicadas a cada grupo arteterapêutico...  (PHILIPPINI, 2011, 14)

Mas uma das especificidades que a Arteterapia nos oferece é, de fato, inserir a arte – o ato criativo e a linguagem ampliada através das imagens – na presença, diálogo e coparticipação do outro. Com a introdução da arte, a teia afetiva, projetiva e relacional, sem dúvida, ganha outros contornos e dinâmicas dentro do setting, aos quais o arteterapeuta deve buscar aprofundar-se em seus estudos, seja em literatura teórica, supervisões, grupos de estudos e diálogos com seus pares.

De posse deste propósito, no último dia dois de fevereiro, iniciamos nossa jornada com o primeiro Webinar para o diálogo sobre diversos olhares sobre o tema, com as participações de Paula Ribas, Lidia Lacava, Silvia Quaresma e mediação de Regina Rasmussen do Espaço Crisântemo. A partir de nosso próprio olhar e os tantos feedbacks que recebemos, percebemos que este foi um encontro muito potente para o estímulo e instrumentalização de arteterapeutas para a adesão ao convite de investirmos em grupos com energia e atenção específicos neste ano que se inicia.

Para fechar a webinar e concluir este primeiro texto de 2022, mais uma vez escolhi a poesia para sintetizar nossa reflexão e nos sensibilizar de forma mais profunda. E encontrei nas palavras de Leminsky uma grande inspiração do porquê nós arteterapeutas devemos investir em grupos arteterapêuticos neste ciclo que se inicia:

Contranarciso

em mim
eu vejo
o outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente centenas

o outro
que há em mim é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

 

Paulo Leminsky

 

Referências Bibliográficas:

CARDELLA, Beatriz. De volta para casa. Ética e Poética na Clínica Gestáltica Contemporânea. 2020.

MORAES, Eliana Pensando a Arteterapia Vol 1, 2018.

PHILIPPINI, Angela. Grupos em Arteterapia: Redes criativas para colorir vidas. Ed Wak, Rio de Janeiro, 2011.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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