segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O AUTOMATISMO SURREALISTA E A ASSOCIAÇÃO LIVRE


            Fiquei surpresa ao aprender que embora seja através das artes plásticas que o Surrealismo se tornou conhecido do grande público, em certo sentido elas são “auxiliares” ao movimento. Na realidade, os principais interesses eram poesia, filosofia e política.
O Manifesto Surrealista se apresentou como um movimento literário, mencionando a pintura apenas como uma nota de rodapé. Nele continha a seguinte definição para o Surrealismo.
“Puro automatismo psíquico, através do qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência de todo o controle exercido pela razão, e à margem de qualquer preocupação estética ou moral.” *

            Os surrealistas defendiam que o automatismo revelaria a “verdadeira natureza individual de quem o praticasse”, uma técnica muito mais completa do que as “criações conscientes”, pois este seria o meio “mais perfeito para alcançar e desvendar o inconsciente”.*
André Breton, líder Surrealista, psiquiatra de formação, afirmava que seu interesse pelo automatismo se originava em Freud. Escreveu no Manifesto:
“Completamente ocupado com Freud, como eu ainda estava nessa época, e familiarizado com os seus métodos de observação, que eu tivera ocasião de aplicar em pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que tentamos obter deles, um monólogo pronunciado o mais rapidamente possível, sobre o qual a mente crítica do indivíduo não deve produzir qualquer julgamento, e que portanto, não seja embaraçado por nenhuma reticência e seja, tão exatamente quando possível pensamento falado”.*
            Em parceria com Philippe Soupault, Breton produziu inúmeras páginas de escrita automática e ficaram espantados com o resultado e sua “qualidade tal que não teríamos sido capazes de produzir usando a escrita comum”. *
Breton aplicou para fins artísticos o que Freud cunhou como a regra fundamental da psicanálise: a associação livre. Nesta época, Freud estava em pleno desenvolvimento de suas técnicas terapêuticas para o tratamento das doenças nervosas, em especial a histeria. Estabeleceu que o tratamento psíquico se dava através da fala e como parte do método catártico, Freud  pedia que o paciente falasse, sem restrições ou censuras, tudo o que atravessasse a sua mente, com ou sem sentido. Eis a associação livre, técnica fundamental à teoria psicanalítica ao qual visa alcançar seu objeto, o inconsciente.
Na prática da arteterapia, é muito interessante estimular que o paciente tenha um momento em que se debruce sobre um trabalho ou uma temática e escreva automaticamente, tudo o que lhe vier a mente, sem a obrigatoriedade das “regras para boas redações” como as ensinadas na escola. Tenho obtido resultados muito interessantes com pacientes que ao se entregarem a esta proposta, se surpreendem com o resultado de seus escritos, conteúdos tão íntimos a serem trabalhados no processo terapêutico.

* “Conceitos da Arte Moderna – com 123 ilustrações” org. Nikos Stangos


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

DO DADAISMO AO SURREALISMO


            (Dando seguimento à série de textos sobre o Surrealismo e  a Arteterapia. Ver textos anteriores.)

O surrealismo nasceu de um desejo de ação positiva, de reconstrução a partir das ruínas do Dada, que ao negar tudo acaba por negar a si mesmo. De fato, Dadaísmo e Surrealismo são bastante semelhantes, principalmente no que se refere ao posicionamento político e no ataque às formas tradicionais da arte. A diferença fundamental entre eles estava na formulação de teorias e princípios do Surrealismo em vez do anarquismo Dadaísta. O Surrealismo aboliu o veto que o Dada aplicou à arte e devolveu ao artista a sua razão de ser, sem impor um novo conjunto de regras estéticas.
O lugar do “acaso” nas obras Dadaístas se transformou na influência do inconsciente na arte, na teoria Surrealista. André Breton, líder do movimento, era médico psiquiatra e estudioso de Freud, que na época estava em pleno desenvolvimento da teoria psicanalítica, baseada no conceito do inconsciente. Para Breton, no inconsciente pensa-se por imagens, e como a arte produz imagens é o meio mais adequado para trazer à superfície os conteúdos profundos do inconsciente.
Breton explora todo o potencial deste novo paradigma no contexto da arte:
“... em 1928 Breton publica Le Surrealisme et la peiture...[e defende que] O inconsciente não é apenas uma dimensão  psíquica explorada com maior facilidade pela arte, devido à sua familiaridade com a imagem, mas é a dimensão da existência estética, e portanto, a própria dimensão da arte. Se a consciência é a região do distinto, o inconsciente é a região do indistinto: onde o ser humano não objetiva a realidade, mas constitui uma unidade com ela. A arte pois, não é representação, e sim comunicação vital, biopsíquica, do indivíduo por meio de símbolos. Tal como na teoria e na terapia psicanalíticas, na arte é de extrema importância a experiência onírica, na qual coisas que se afiguram distintas e não-relacionadas para a consciência revelam-se interligadas por relações tanto mais sólidas quanto mais ilógicas e incriticáveis.”*

            Entretanto é interessante ressaltar que embora a origem do Surrealismo se desse na teoria psicanalítica, seus fins se diferenciavam. Os surrealistas viam nos sonhos a imaginação em seu estado primitivo e uma expressão pura do “maravilhoso”, sem qualquer espírito de pesquisa científica. Freud, certa vez recusou-se a colaborar com uma antologia de sonhos organizada por Breton porque não conseguia vislumbrar  em que uma coletânea de sonhos, sem as associações e as lembranças da infância do sonhador, poderia ter de interesse para seus estudos e para a psicanálise.
            Desde o início da formação de arteterapia já somos apresentados ao grande potencial de comunicação que as mais variadas linguagens da arte possuem. Já somos ensinados também sobre o potencial expressivo de conteúdos que estão para além da razão e do racional, mas estão no campo do inconsciente. E nossa prática, que é soberana, nos confirma estes fenômenos.
            Porém, de minha parte, acho fascinante e creio que amplia nossa percepção como arteterapeutas, conhecer os caminhos que nossos precursores traçaram até chegarmos aqui.
           
* “Arte Moderna” Giulio Argan

* Material de apoio: “Conceitos da Arte Moderna – com 123 ilustrações” org. Nikos Stangos

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

TERAPIA OCUPACIONAL E ARTETERAPIA


            É comum quando as pessoas se interessam pela arteterapia imaginarem se tratar da Terapia Ocupacional. Por isto me motivei a escrever este texto. São dois campos de saber legítimos, pertinentes e coexistentes em serviços de saúde. Embora tenham suas interseções, são distintos e cada um tem seu objeto e sua função no desenvolvimento ou na recuperação do individuo. 
           Em linhas gerais, a Terapia Ocupacional é um campo de estudo que envolve três grandes áreas: a Reabilitação Física, a Saúde Mental e a Área Social. A ocupação humana é o objeto de estudo.e, dentro desse contexto, é especializada em análise de AVDs (Atividades de Vida Diária) – alimentar-se, tomar banho, vestir-se com independência etc – como também de AVIs (Atividades de Vida Instrumentais) – lazer, trabalho, comunicação, etc – gerando condutas de prevenção, manutenção e tratamento, fazendo inclusive adaptação de materiais e treino de uso dos mesmos. Numa análise de atividade considera as articulações, os grupos musculares, tipo de movimentação envolvida, características específicas de possíveis estímulos neuropsicomotores e outros. Entretanto também é papel do TO avaliar e lidar com fenômenos que permeiam o processo de tratamento a partir do uso de atividades: o envolvimento emocional, social e afetivo do sujeito, o vínculo terapêutico, a tolerância à permanência em atividade, o significado que se dá a este “fazer”, o desenvolvimento de um começo, meio e fim... Ou seja, fenômenos que acontecem em um atendimento, onde o encontro desse triângulo “paciente – atividade – terapeuta” podem gerar processos semelhantes de expressão e/ou internalização, porém cada campo de atuação acolherá este sujeito e suas questões com sua visão e estratégia diferenciada.
            De fato, a Arteterapia pode manejar em sua atuação estes benefícios que a Terapia Ocupacional visa, como o efeito terapêutico do “fazer” e o desenvolvimento do corpo em suas partes motoras e cognitivas. Entretanto seu foco primário, seu objeto é outro. Para além disto, sua “matéria prima” é outra: o inconsciente.
            A Arteterapia se faz em um modo de atuar, pelo qual a utilização das técnicas gera um efeito no psiquismo. Não está propriamente dita no campo do desenvolvimento de habilidades ou das finalidades artísticas, mas visa a expressão e a comunicação de conteúdos psíquicos: sentimentos, pensamentos, conteúdos inconscientes.
            Jung no Livro “A Prática da Psicoterapia” dá valor à utilização de técnicas expressivas pois por meio das imagens criadas o sujeito vê-se diante da circunstância de “traduzir o indizível em formas visíveis.” Este recurso tem benefício ao favorecer posteriormente a expressão em palavras daquilo que antes não tinha nome, identidade ou sequer lugar ou espaço para manifestar-se.
            Nas palavras de Maria Cristina Urrutigaray, a Arteterapia:

“... é um passo viável, visível objetivado que possibilita aproximar elementos ou realidades ocultas (inconscientes) às dimensões mais acessíveis de serem compreendidas, facilitando a conscientização dos mesmos.” **

* Este texto foi escrito com a colaboração de minha amiga, Terapeuta Ocupacional Aline Bini.
** Meterial de Apoio: “Arteterapia – A transformação pessoal pelas imagens” Maria Cristina Urrutigaray

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ANTES DO SURREALISMO, O DADAISMO


            Há algumas semanas escrevi sobre meus estudos sobre o Surrealismo e meu desejo de compartilhar, passo a passo, minhas descobertas e aplicações para o trabalho da arteterapia. Mas antes de se falar em Surrealismo é necessário falar de Dadaísmo, um movimento artístico imediatamente anterior.
O termo Dada foi escolhido por ser o primeiro som emitido pela criança denotando o primitivismo, o começar do zero, o novo na arte. De fato o Dadaísmo é marcado pela idéia de se romper com tudo o que existia e desconstruir o estabelecido. Estavam reagindo ao horror da Primeira Guerra Mundial:
“Em Zurique, em 1915, tendo perdido o interesse pelos matadouros da guerra mundial, voltamo-nos para as Belas Artes. Enquanto o troar da artilharia se escutava a distância, colávamos, recitávamos, versejávamos, cantávamos com toda a nossa alma. Buscávamos uma arte elementar que,,pensávamos, salvasse a espécie humana da loucura destes tempos.” Revista Dada, organizada por Tzara

As obras Dada eram uma grande explosão de atividade que tinha como objetivo provocar o público, destruir as noções tradicionais de bom gosto e libertar as amarras da racionalidade e do materialismo.  Arp, um poeta e artista plástico, pertencente ao movimento dizia:
“Dada visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e absurda... Dadá é a favor do não-sentido, o que não significa contra-senso. Dada é desprovido de sentido como natureza. Dada é pela natureza e contra a arte...Dadá é pelo sentido infinito e pelos meios definidos.”

Este artista aderiu ao ataque contra a linguagem que o Dadá iniciou e o surrealismo deu seguimento à sua maneira.
Em sua obra, ele começou a permitir que o acaso se apresentasse. Utilizou técnicas como rasgar um desenho em pedaços e deixar que os fragmentos caíssem, formando um novo padrão. Também lançou mão do desenho espontâneo permitindo o livre fluir da tinta. Da mesma forma, permitiu o acaso em seus poemas, “rasgando” frases para que não houvesse coerência lógica, embora não estivessem desprovidas de sentido,
Para o arteterapeuta, este movimento artístico traz muitas possibilidades. Ele apresenta, de forma extremada, o binômio razão / não-razão e convida ao paciente à refletir sobre aonde ele se encontra neste “jogo dos opostos”. Para pacientes que apresentam características de enrijecimento, inflexibilidade e apego, técnicas que propõem a desconstrução os tiram de sua zona de conforto e apresentam um desafio. Para aqueles extremamente racionais e controladores, técnicas que propõem o acaso e a aleatoriedade são extremamente desafiadoras e fazem com que o paciente se perceba nesta realidade da vida: a impossibilidade racionalizar e ter controle sobre tudo.


* Fonte: “Conceitos da Arte Moderna” Nikos Stangos