segunda-feira, 29 de novembro de 2021

VIRANDO DO AVESSO

 

Por Silvia Quaresma - SP

othila.arteterapia@gmail.com

Que o bordado é uma arte ancestral, normalmente transmitida em família, isto ninguém contesta. No entanto, para observá-lo como recurso artístico, é preciso muita imaginação.

Não é fácil entender como que a agulha substitui o pincel, as linhas fazem o papel das tintas e a tela, rainha soberana, cede seu lugar a tecidos e outros tantos suportes utilizados para bordar.

E a função do bordado também mudou. As mulheres aprendiam para dar conta da necessidade de um enxoval personalizado e um acréscimo às suas qualidades de boa esposa. A arte ficaria exposta em seu lar. Hoje inúmeros artistas visuais iniciaram processo de apropriação desta técnica expressa em suas produções.

Bordar é encontrar. O ato de bordar promove encontros.

Encontro de gerações que se perpetuam no aprendizado descompromissado. Encontro de materiais diversos que vão possibilitando novos usos e resultados. Encontro de pensamentos distintos, de culturas distantes, de saberes diferentes.  Encontro de gente, memórias, de vida. Encontro de costuras firmes com alinhavos despretensiosos. Encontro da rigidez do gráfico com a liberdade do bordado livre.

A Arteterapia utiliza o ato de bordar, relaxante e transformador, como recurso para elevar autoestima, diminuir ansiedade, trazer prazer e autoconfiança. Ao bordar, o pensamento se volta para desenhos ou para movimentos livres de preenchimento, e as produções trazem valor terapêutico por si mesmas. O ato remete às memórias afetivas, reminiscências do passado e reflexões importantes.

O resultado em um processo arteterapêutico pode surpreender e encantar.

O caminho criativo em arteterapia tem o propósito de concretizar, dar forma e materialidade ao que é intangível, difuso, desconhecido ou reprimido. Sonhos, conflitos, desejos, afetos, energia psíquica que é bloqueada e precisa liberar-se e fluir, ganhar concretude e poder plasmar e configurar símbolos, que, assim, cumprem sua função de comunicar, estruturar, transformar e transcender.  (PHILIPPINI, 2013, p.61).

 

Cito aqui um exemplo deste processo. Participo de um grupo arteterapêutico iniciado presencialmente no início de 2020 e surpreendido pela necessidade do atendimento remoto. Foi onde descobri que além de entender como seguir em meu percurso precisava descobrir qual era.  Em uma das atividades a escolha do material era livre, e senti vontade de confiar na minha atuação, garantida pela minha experiência, e escolhi algo que “domino”, e assim considerei buscar o famoso controle que sabemos que não existe.

 Resolvi retratar meu caminho, em papel, usando fio, bordando. Um formato A4 trazia o limite necessário e as retas que seriam a representação de uma estrada talvez. Para a minha surpresa o resultado foi diferente. 

As curvas foram surgindo, assim como o feminino, não como gênero, mas como energia pura, um feminino que tem como função especial:  costurar destinos, cerzir buracos de sentimentos doídos, tecer ideias, bordar cores em um mundo que às vezes parece desanimador e alinhavar novos caminhos.

Fui preenchendo esta força que tece, remenda, alinhava e estava à busca de um poder intenso quando percebi que o preenchimento me limitava, tolhia, amarrava. Ao invés da liberdade que queria, me senti aprisionada. E como se quisesse me livrar da sensação, soltei o fio e virei o trabalho:

 


 E no avesso me vi sem amarras.

No avesso que sustenta a beleza do trabalho, no avesso onde podemos aprender a olhar para nós mesmos é que encontrei a resposta: às vezes a vida só faz sentido virando do avesso.

 

Bibliografia

PHILIPPINI. Para entender Arteterapia: Cartografias da Coragem  Rio de Janeiro: Wak. 2013.

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Sobre a autora: Silvia Quaresma 


Arteterapeuta

AATESP 665/0720

Graduada em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP

Pós-Graduada em Finanças, Ibmec - SP

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em parceria com NAPE

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora Othila Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)

Idealizado do Fio que sente (@fioquesente)

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento em Arteterapia (individual e grupos)



segunda-feira, 22 de novembro de 2021

ARTETERAPIA E PSICOLOGIA: MAPEANDO OS SENTIMENTOS NA AGORAFOBIA

 

por Clarice Almeida / SP

Psicóloga e Arteterapeuta.

@ claricebdealmeida@gmail.com 

Através deste artigo trago a intenção de corroborar com os aspectos fundantes da Arteterapia (entendida aqui como ambiente facilitador de comunicação entre as esferas conscientes e inconscientes de nosso ser) em um diálogo com a Psicologia, objetivando ilustrar através de um relato de caso, os desdobramentos observados quando da experiência arteterapêutica em um processo Psicoterápico de uma mulher de 30 anos, com diagnóstico psiquiátrico de Agorafobia. Situando sobre a Arteterapia neste contexto, Almeida (2016)
nos relembra que
 

A Arteterapia comunga a intenção de abraçar a arte como recurso ou instrumento facilitador do desabrochar inconsciente, da expressão criativa do humano, mas é ela quem envolve o todo complexo do processo criativo: arte – símbolo inconsciente – expressão simbólica –

emoção oculta revelada – consciência – integração consciente/inconsciente – transformação. (2016, p.24). 

O sintoma fóbico perpassa a compreensão de que uma profunda angústia avassala aquela determinada pessoa, cujo medo se transforma em pânico e domina toda a corporeidade com intensos calafrios, suores e/ou acelerados batimentos cardíacos, acompanhados de uma forte sensação de aprisionamento, de não haver saída para a circunstância, configurando um quadro geral de profundo mal-estar físico e psíquico.

 Com F.[1] estas sensações passaram a acontecer com alguma frequência seguidas de queixas iniciais de ansiedade. O formato de sessões online configurou os encontros por muito tempo, uma vez que vivíamos o surto pandêmico de covid-19 e permaneceu assim até o início deste ano. Contudo, a proposta de retomar presencialmente foi fazendo sentido para F. e, hibridamente, ora presencial, ora online, os encontros eram permeados de depoimentos de muita angústia e sintomas fóbicos geralmente despertados quando ela precisava trabalhar presencialmente. Às vezes, mesmo para visitar sua família e vir às sessões a hesitação era grande e seu Psiquiatra sugeria o entendimento de ser um comportamento erupcionado na pandemia, uma vez que ela ficava um grande período de tempo sozinha, sem sair de casa, namorava virtualmente e seu apartamento passou a ser seu escritório de trabalho.

Porém, se tornara muito viva para mim, a hipótese de que alguma situação traumática muito anterior à pandemia pudesse ter acontecido à F. e, como já se sabe, em toda manifestação psicossomática, estaria inconsciente.

Certo dia, ela veio presencialmente à sessão. Transpirava, parecia sem fôlego, seus olhos arregalados transmitiam uma aparência de pessoa muito assustada. Ela estava vivendo naquele momento do deslocamento de sua moradia até o meu consultório, o pânico que me descrevera em outras situações. Acalmei-a e propus uma adaptação da expressão arteterapêutica desenvolvida por Moraes[2] (2021) e indicada em uma de suas palestras, chamada “Mapeando os Sentimentos”, a ser sugerida em algumas demandas, como por exemplo, ansiedade elevada.

Sugeri que F. fizesse em pé esta expressão, que entrasse em contato com as sensações de seu corpo naquele momento, imaginasse o lápis em sua mão como sendo a extensão de seu braço e através dele expressasse na cartolina com uma linha contínua, o “movimento” das sensações, emoções e sentimentos; posteriormente ao traçado do lápis, colorisse com canetas hidrocor, os distintos sentimentos suscitados, como se fosse “mapear” os sentimentos pulsantes em seu peito.

        Imagem 1 - Atividade Expressiva “Mapeando Sentimentos”.

 

Fonte: acervo da autora.

 A partir da séria e atenta observação desta imagem, F. compartilha comigo todo “o percurso” da crise. Mostra-me, acompanhando o traçado do desenho com a mão, esclarecendo sobre suas emoções e sentimentos, descrevendo que o mal estar a faz sentir-se começando a descer em queda, depois sente-se sufocada, sem saída como se tudo ficasse escuro (cor preta e roxa dentro dos círculos), dando voltas demoradas e quando sai inicia-se um movimento vagaroso de vai e vem (cor rosa) de tristeza.

Em seguida descrevo a ela os traçados, reapresentando-lhe as configurações das linhas desenhadas e lhe pergunto se a parte do meio lhe sugeria algo. Ela diz que não. Reformulo a descrição chamando sua atenção para a forma esférica contendo algo dentro, algo no interior... ela nomeia o sentimento de aprisionamento; Então, lhe pergunto se possuía alguma informação sobre seu nascimento, parto ou gestação e ela afirma não saber, mas lhe ocorre neste instante a lembrança de um acidente em que foi empurrada de surpresa para dentro de uma piscina quando tinha 12 anos e que não reagiu, não nadou para voltar à superfície, pressupondo ter permanecido assim por um tempo razoável, até ser retirada por seu pai. Descreve a experiência de sufocamento, a paralisia e a falta de reação instintiva de sobrevivência e o subsequente comportamento pós acidente de ficar mais quieta e de se manter como se nada tivesse acontecido.

Este compartilhar possibilitou a analogia de sua reação aos 12 anos como sendo muito parecida com os sintomas da agorafobia desenhados na cartolina. Observando novamente o desenho, afirma a si mesma que precisa fazer algo antes de “cair” para baixo, não deixar isso acontecer e desenha no ar um movimento de uma linha reta anterior à linha inclinada. Sai mais aliviada da sessão e consegue dirigir e chegar bem em casa.

No encontro seguinte F. me conta que, ao compartilhar com sua mãe sobre a sessão e a lembrança do acidente, esta também se recorda de um episódio no pós-parto em que F. é trazida por uma enfermeira e, ao olhar para a filha, nota que ela estava “roxinha” e sufocada. Esta informação desvelou novos caminhos em seu processo psicoterapêutico; em outro momento, solicito uma expressão gráfica livre que simbolizasse seus recentes sentimentos compartilhados comigo. 

                                     Imagem 2 – Expressão livre simbólica - autopercepção

 


                                                            Fonte – acervo da autora. 

Neste novo desenho percebe-se claramente a ressignificação de sua autoimagem, de seus recursos internos (flecha preta ascendente) despertados para lidar com o entendimento dos episódios de crise (escadas que vão diminuindo de tamanho – e não mais linha em declive), dos sentimentos (linhas amarelas descendentes) e de alternativas/estratégias (sob o domínio da consciência) para “voltar à superfície” (linha azul horizontal ondulada e bolas pequenas azuis representando as bolhas de ar dentro d’água).

   Aponto que os desdobramentos da atividade expressiva “mapeando os sentimentos”, além de ter colaborado para o acesso inconsciente das memórias de experiências traumáticas, ainda prosseguiu contribuindo em sessões posteriores nas quais F. pôde descrever seu alívio e discernimento sobre o autocuidado e a importância de acolher sua singularidade, do respeito à sua biografia, à sua corporeidade, à sua sensibilidade, culminando também em abertura para o acesso à sua religiosidade e para a manifestação de questionamentos sobre a legítima identificação com sua profissão.  

Gostaria de concluir este relato com a citação abaixo, pois me parece sintetizar as dolorosas expressões existenciais de F. e de nos remeter à simbologia da expressão gráfica de seu primeiro desenho quando se referiu à queda, além de nos incentivar à continuidade dos estudos em Arteterapia, seus efeitos curativos e suas interações com outros saberes.

           Safra (2004) nos diz:

uma das tarefas fundamentais do ser humano é alcançar o registro simbólico de suas experiências, pois o registro simbólico dá ao homem a possibilidade de colocar sob o domínio de seu gesto os aspectos paradoxais de seu ser. Sem esta possibilidade o homem vive duas agonias insuportáveis: a claustrofobia da finitude [...] e a agorafobia, que o lança para o abismo do sem fim. [...] o que estou chamando de registro simbólico não é o simples representar, mas colocar as questões fundamentais da existência em devir, por meio da ação criativa. (2004, p.63).

 

[1] “F.”: Neste artigo, será a letra referendada ao nome da pessoa atendida, com a autorização prévia da mesma, apresentada aqui apenas com a inicial de um dos seus sobrenomes, como forma de preservação à sua identidade e em conformidade com os critérios de ética profissional.

[2] Eliana Moraes, Arteterapeuta e Psicóloga. Fundadora e coordenadora do “Não Palavra Arteterapia”. Autora da série de livros “Pensando a Arteterapia”. 

 

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, C.B. Arteterapia com pais: O despertar do autoconhecimento e da comunicação amorosa conjugal e familiar. Trabalho de Conclusão do Curso de Especialista em Arteterapia – Universidade Paulista – UNIP, 2016.


SAFRA, G. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2004.

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Sobre a autora: Clarice Almeida



Psicóloga e Arteterapeuta. 

Como Psicóloga, aprofundou seus estudos no entendimento das questões humanas e seus processos inconscientes embasada na teoria de Winnicott, Safra e autores afins. 

Acompanha e atende mães e pais em Orientação Psicológica e Vivências Arteterapêuticas, com vislumbre dos ensinamentos da comunicação não violenta e da comunicação amorosa nas dinâmicas familiares, tendo se especializado em Arteterapia Junguiana. 

Realiza workshops Arteterapêuticos sobre diversos temas dos ciclos existenciais. 

Idealizou e Acompanhou grupos Arteterapêuticos: “Poesia”, “A Arte na alma do Ser”, “Adolescentes”, “O que busco está em mim? ”, entre outros. 

Atende em processo de Arteterapia Casais, Adultos e Adolescentes.

 

 




segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O USO DA LINHA NAS PRÁTICAS DA ARTETERAPIA

 


Por Eliana Moraes - MG

naopalavra@gmail.com 

No processo de formação da minha identidade profissional como arteterapeuta, entendi que era necessário me aprofundar nos estudos sobre as teorias da arte, dentre elas a História da Arte, as teorias da criação e os elementos visuais. Sem dúvida, há um vasto universo teórico no campo da arte, mas como terapeuta, minha (lenta e cuidadosa) pesquisa e estudo continuado estão norteados pelas aplicabilidades destas teorias na realidade, proposta e práticas da Arteterapia. 

Ao longo deste caminho, percebi que os elementos visuais fazem parte dos estudos do arteterapeuta, para que possamos conhecê-los e nos instrumentalizarmos de suas propriedades, para seu manejo consciente. Nas palavras de Fayga Ostrower:

 

Há um dado deveras interessante! Se fôssemos perguntar de quantos vocábulos se constitui a linguagem visual, de quantos elementos expressivos, a resposta seria: de cinco. São cinco apenas: a linha, a superfície, o volume, a luz e a cor. Com tão poucos elementos, e nem sempre reunidos, formulam-se todas as obras de arte, na imensa variedade de técnicas e estilos…

 

É verdade que os significados dos elementos visuais ficam em aberto, mas deve haver alguma coisa de definível nesses elementos para que possamos reconhecer identidades expressivas diferentes. (OSTROWER, 1983, p 65) 

É importante sinalizar que neste trecho Fayga não menciona “o ponto”, outro elemento visual carregado de simbolismos. De toda forma, a noção de que os elementos visuais carregam “identidades expressivas” específicas nos chama atenção como arteterapeutas. 

Venho escrevendo sobre o elemento cor nos últimos anos, estando alguns destes textos compilados no livro “Pensando a Arteterapia Volume 2”. Mas atualmente tenho direcionado minhas leituras, reflexões e registros de aplicabilidades do elemento linha. Dentre a vasta literatura disponível sobre o tema, no campo da arte, elegi dois teóricos que já tenho uma relação de identificação: Fayga Ostrower e Wassily Kandinsky e no texto de hoje trago o percurso construído até aqui. 

A linha

Se, porém, perguntarmos: o que vem a ser uma linha?... Seria necessário perguntar: o que faz uma linha? E mais especificamente: o que faz a linha em termos de estrutura espacial?... (OSTROWER, 1983, p 65)

 

Isso nos interessa muito, porque do tipo de espaço que a linha pode caracterizar, dependem as qualificações expressivas. (OSTROWER, 67) 

A linha possui qualificações expressivas específicas, o que fica mais claro quando a comparamos com outros elementos visuais:

 

Se compararmos, por exemplo, linhas com cores, sentimos de imediato, o clima expressivo diferente. Enquanto que a linha evoca toda uma ambiência intelectual, a cor é antes de tudo sensual. (OSTROWER, 1983, p 68)

 

Acompanhando essas explicações, mostrei dois desenhos e uma pintura. Todos datam aproximadamente da mesma época. Mas com elementos visuais diferentes – linha no desenho e cores na pintura – definem diferentes modos de ser e sentir. Comparando-as entre si, podemos observar nessas obras... o quanto o sentido de refinamento torna-se mais intelectual no desenho, muito menos sensual do que na pintura. (OSTROWER, 1983, p 68)

No aprofundamento deste estudo, podemos teorizar em diálogo com a Psicologia Analítica junguiana que o elemento cor traz como função auxiliar a função sensação, através da qual é sentida sua vibração, alcançando sua função principal, o contato com os sentimentos. Por outro lado, podemos dizer que o elemento linha, por sua propriedade mais intelectual, racional, tem como função principal a função pensamento.

Já em comparação com o elemento ponto:

 

A linha... É o rasto do ponto em movimento, logo seu produto. Ela nasceu do movimento – e isso pela aniquilação da imobilidade suprema do ponto. Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico... (KANDINSKY,2016, p 49)

 

Essas linhas são totalmente estranhas ao ponto fixado no plano, nada mais tendo da calma inicial do ponto. (KANDINSKY, 2016, p 54) 

Para Kandinsky, este é o ponto zero. Na linguagem, o lugar do silêncio. É caracterizado por ser estático, imóvel. É também introvertido. Porém, o ponto também é o lugar do impulso. Extremamente fecundo, é cheio de possibilidades. Afinal, como nos diz o autor “Tudo começa num ponto.” 

Ao nascer a linha, algumas propriedades expressivas específicas são destacadas. 

Movimento 

Mas existe outra força, que nasce não no ponto mas fora dele. Essa força se precipita sobre o ponto preso no plano, arranca-o daí e empurra-o para uma direção qualquer.

 

Assim, a tensão concêntrica do ponto vê-se destruída e o ponto desaparece, dele resultando um novo ser, dotado de uma vida autônoma e submetido a outras leis.

 

É a linha. (KANDINSKY, 2016, p 45)

 

[A linha] ... nasceu do movimento... Produz-se aqui o salto do estático para o dinâmico... A “tensão” é a força viva do elemento. Ela constitui apenas uma parte do “movimento” ativo. A outra parte é a “direção”, também ela definida pelo “movimento”.  (KANDINSKY, 2016, p  49-50)

 

No caso da linha: ela vai configurar um espaço linear, de uma dimensão. Através dela apreendemos um espaço direcional... Essas linhas funcionam como setas, dirigindo nossa atenção e dizendo: siga nesta direção ou siga naquela. (OSTROWER, 1983, 66) 

O que compreendemos através destes trechos é que a linha nasce de uma tensão que a torna viva e desta forma aciona uma força que a coloca em movimento. Este movimento admite uma direção, como uma seta que gera e direciona possíveis caminhos. Estes caminhos registrados pelo elemento linha podem se tornar subsídios para riquíssimos experimentos arteterapêuticos. 

Tempo, Ritmo 

Como uma das principais propriedades da linha está no movimento, consequentemente, a dimensão temporal torna-se parte do campo:

 

... em todos os casos em que aparece a linha, configura-se o espaço de uma só dimensão. A essa dimensão única é acoplado o tempo, pois qualquer elaboração formal que façamos com a linha terá, necessariamente, caráter rítmico. Introduzindo-se pausas e modulando-se as velocidades das linhas, modula-se o fluir do tempo. (OSTROWER, 1983, p 67)

 

O elemento tempo é, em geral, mais perceptível na linha do que no ponto – o comprimento corresponde a uma noção de duração. Em compensação, seguir uma linha reta ou uma linha curva requer uma duração diferente, mesmo que o comprimento das duas seja semelhante, e, quanto mais uma linha curva é movimentada, mais se alonga em duração. A linha oferece, pois, quanto ao tempo, uma grande diversidade de expressão... Talvez se trate, na verdade, de comprimentos diferentes, o que poderia se explicar psicologicamente. O elemento tempo não deve, pois, ser subestimado numa composição linear... (KANDINSKY, 2016, p 86)

 

Aqui se apresenta o eixo tempo e espaço. E a linha colabora para o registro do tempo no espaço. Em seus escritos, Kandinsky frequentemente busca o diálogo entre as linguagens da arte, e aqui nos presenteia com o diálogo entre o desenho e a dança:

 

 Na dança todo o corpo e, na dança contemporânea, cada dedo desenham linhas de expressões precisas... Todo o corpo do dançarino, até a ponta dos dedos, constitui em todo instante uma composição linear ininterrupta... (KANDINSKY, 1983, p 88) 

Podemos nos inspirar neste diálogo entre a dança e o desenho em momentos dentro do setting arteterapêutico em que o terapeuta entenda ser interessante trazer para a imagem o ritmo e movimento do corpo do paciente. É possível propor que ele faça contato com seu ritmo corporal, que deixe este ritmo se apossar do seu corpo e deixe que seu braço conduza o movimento do lápis, registrando-o em uma folha de papel. Este registro do movimento corporal pode servir de valiosas elaborações e processos de autopercepções. 

Podemos ainda nos inspirar no que diz Fayga Ostrower: “Existem possibilidades de se modular o movimento da linha.” (OSTROWER, 1983, p 66). Assim, é possível intencionalmente promover o contato com determinado movimento em específico, como por exemplo, a partir de um estímulo musical (ritmo, movimento, vibração) ou acesso a sentimentos e memórias afetivas, e a partir do ritmo corporal por eles gerados, permitir que a linha registre este movimento tornando-o visível. 

Gera forma 

Outra das grandes propriedades da linha, nas palavras de Kandinsky: “Estamos tratando aqui de uma das características específicas da linha – seu poder de criar superfícies.” (KANDINSKY, 1983, p 53), o que chamamos também de formas. 

Como exemplo, em Arteterapia, temos em nosso repertório cotidiano o desenho cego ou desenho espontâneo, que André Masson, artista surrealista chamava de desenho automático. Esta é uma prática a qual através de um emaranhado de linhas espontâneas, propõe-se a busca de imagens, formas, superfícies. 

Esta é uma prática através da qual trabalhamos o fenômeno da projeção, pois o olhar do espectador fatalmente encontrará símbolos que o pertencem: vale destacar, símbolos espontâneos, não escolhidos, não planejados, não racionalizados, consequentemente advindos de conteúdos inconscientes riquíssimos para a leitura e escuta simbólica dentro do setting arteterapêutico. 

Limites 



Mas sem dúvida, em minha experiência clínica a propriedade da linha mais atualizada dentro de um setting terapêutico se dá ao encontro de demandas terapêuticas sobre os limites, sejam eles entre o sujeito e o outro ou os limites internos de cada indivíduo. É possível utilizá-las como metáfora no diálogo terapêutico, mas também como experimentos criativos e produção de imagens, a partir do repertório do arteterapeuta. 

As queixas terapêuticas recorrentes giram em torno de invasões, transbordamentos, excessos, dificuldade de dizer não e impor limites (a si e ao outro), dificuldade de delimitar o que pertence a um e ao outro. Neste contexto, como palavras chave para o elemento linha, podemos destacar: limites, contornos, bordas, fronteiras. Delinear, circunscrever, separar, discriminar (um e outro).  

Para compreensão da analogia, podemos trabalhar com nossos pacientes que a linha simboliza seus contornos, suas bordas, aquilo que faz o limite entre um elemento e outro, entre o que está dentro e o que está fora. É análogo à nossa pele: ela nos protege para que o que está dentro não vaze para fora e o que está fora não penetre no que está dentro.  A linha muitas vezes é protetora de invasões, nos resguarda e preserva também de transbordamentos e exposições de nossos conteúdos. Na tradução para a imagem, utilizando lápis de cor ou tintas, o experienciador poderá trabalhar o preenchimento de espaços gerados pelas linhas, respeitando os limites por ele mesmo gerado. 

Em síntese, através de experimentos com a linha podemos trabalhar a compreensão de que o limite é estruturante e também um ato de amor, ao outro e a si mesmo.

 

O estudo sobre os elementos visuais seguem seu curso. Ainda inspirada em Fayga:

 

Deveríamos poder chegar diante de um quadro e, ao olhá-lo, apreender de pronto – assim como se distinguem as palavras ouvidas numa frase – quais os principais elementos que foram elaborados pelo artista. (OSTROWER, 1983, p 69) 

Que possamos desenvolver nossa escuta terapêutica, nas linguagens da palavra ou da imagem, na arte e na Arteterapia, nas imagens já expressadas ou naquelas que buscam expressão.

 

Bibliografia:

KANDINSKY, WASSILY. “Ponto e linha sobre plano”. Editora WMF Martins Fontes, SP. 2012.

OSTROWER, FAYGA. “Universo da Arte”. Editora Campus, 1983.

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

POESIA E ARTETERAPIA: DRUMMOND E OS ELEMENTOS VISUAIS



Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

A poesia sempre fez parte do meu caminhar arteterapêutico, tanto no desenvolvimento de minha escuta clínica às questões humanas que aparecem no setting terapêutico mas também na construção do meu repertório de estímulos projetivos e geradores de práticas vivenciais. E encontrei eco de minha relação com a poesia nas palavras de Beatriz Cardella:

 

Podemos contemplar e refletir sobre o humano a partir de um diálogo... entre a Poesia e a Psicologia.

 

A Psicologia nos ensina sobre o humano, a Poesia nos recorda do humano...  A Psicologia é o estudo sobre dimensões do humano, a Poesia é revelação dos fundamentos, o que nos faz humanos.

 

A Psicologia nos informa, a Poesia nos comove.

 

A Poesia fala à nossa sensibilidade, mexe em nossos afetos, toca nossa intimidade; a Poesia fala à inteligência do coração, e para compreendê-la, precisamos nos despir do orgulho da razão; a Poesia nos oferece um espelho, é expressão pura da nossa humanidade. (CARDELLA, 154) 

Ao longo de minha jornada, fui construindo uma relação tanto profissional quanto pessoal com alguns poetas, sendo um dos principais, Carlos Drummond de Andrade. Percebi que periodicamente escrevo por ele inspirada, e ao me pensar, percebo a principal das identificações: Drummond foi um mineiro que viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro – definitivamente nossas formas de enxergar o mundo têm suas aproximações.

No livro “Pensando a Arteterapia Volume 1” publiquei um texto que articulava o tão conhecido poema “José” com os percursos teóricos arteterapêuticos, mas no texto de hoje desejo atualizar a experiência de José em uma vivência arteterapêutica. Afinal:

A poesia de Drummond impacta-me quando retrata aquele momento de crise fatalmente conhecida por nós: “E agora?”. Drummond revela esse momento como algo tão humano, que escolhe para o personagem o nome José, um dos nomes mais comuns de nossa cultura, convidando-nos a pensar no José que há em cada um de nós e que sua crise nos pertence. (MORAES, 2018, 166) 

Principalmente nos últimos tempos, desde que o fenômeno pandemia nos atravessou, a escuta clínica nos mostra o quanto a experiência de vazio e incerteza ou sentimentos  de desesperança e solidão nos afetou de alguma forma, inseridos nos enredos de nossa história. Sendo este um tema tão humano, e da mesma forma, tão atual, é importante que nossa leitura do poema esteja atenta à aproximação que existe entre José e cada um de nós. Eis o poema.

José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,

cuspir já não pode,
a noite esfriou,

o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

 

Onde está você, leitor, na experiência de José? Pessoalmente, por muitas vezes me identifiquei com o trecho em que José procura o mar (do Rio de Janeiro) e não o encontra. Então busca Minas, mas aquela Minas de suas memórias não existe mais. Eis então a experiência do vazio, do não-lugar e do não pertencimento que eventualmente assombra aqueles que vivenciam o estrangeirismo.

Se procurarmos bem, perceberemos que existe um José em cada um de nós.


Prática Arteterapêutica 



Meu reencontro com o poema “José” se deu concomitante com meus estudos sobre os elementos visuais e pude perceber um paralelo entre a experimentação de alguns deles com a jornada de José. Esta experiência foi vivenciada no “Grupo Quiron: encontros com o curador ferido”* e com alguns de meus pacientes individuais. 

O primeiro momento se dá na contemplação da folha em branco como a experiência de vazio, quando tudo se foi, tudo se perdeu. “E agora José?” 

Em um segundo momento é solicitado que o experienciador faça um ponto, onde ele se localiza nesse vazio. É importante se pensar sobre os simbolismos do ponto. Para Kandinsky, este é o “ponto zero”. Um lugar de silêncio. Imóvel, estático. E introvertido. Mas também, é do ponto que nasce o impulso, onde o “ponto morto” torna-se um ser vivo. Assim, o ponto se faz extremamente fecundo, carrega em si múltiplas possibilidades. Como nos diz Kandinsky, “Tudo começa num ponto”. E Drummond nos diz “se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!” 

E assim descobrimos a linha, que nasce do movimento e torna-se dinâmica. Para seu surgimento é necessário uma força, o resultado de uma tensão a qual Drummond traduz como “você marcha, José!”. Assim estimulamos que o experienciador explore na superfície do papel o elemento linha de forma que seu movimento gere um caminho. Este caminho ainda não tem destino certo, é um caminhar intuitivo, o que na poesia percebemos que seu fim se dá com uma pergunta não respondida: “José, para onde?” 

Por  fim, exploramos mais uma propriedade da linha, que é gerar formas, superfícies. E orientamos que o experienciador observe seus caminhos gerados intuitivamente. Que contemple suas formas figurativas ou abstratas, e que de posse do elemento cor invista de sua energia psíquica para o a apropriação e o firmar destes caminhos. 

Alguns relatos que pude acompanhar desta vivência, mostraram que ao mesmo tempo que simples, nela reside um grande potencial de identificação e aprofundamento de questões pessoais. Além da poesia tão próxima de nossas experiências de vida, o uso dos elementos visuais também se mostra como um instrumento riquíssimo de possibilidades em práticas arteterapêuticas. 

Venho estudando os elementos visuais e suas aplicabilidades na Arteterapia. Nos últimos anos venho explorando bastante o elemento cor em conteúdos para o Não Palavra, mas em uma próxima oportunidade, pretendo escrever e compartilhar minhas reflexões sobre o elemento linha. 

Sigamos nossa marcha. (Para onde?) 



* Grupo Quíron é um grupo vivencial online oferecido pelo Não Palavra e Espaço Crisântemo para terapeutas e estudantes que desejam separar um tempo e um espaço para seu contato pessoal com o ato criativo e a produção de imagens.

Referências Bicliográficas:

CARDELLA, Beatriz. De volta para casa.

KANDINSKY, Wassily. Ponto e linha sobre plano.

MORAES, Eliana. Pensando a Artetrapia Vol 1. 
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Sobre a autora: Eliana Moraes




Arteterapeuta e Psicóloga.


Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"