segunda-feira, 29 de novembro de 2021

VIRANDO DO AVESSO

 

Por Silvia Quaresma - SP

othila.arteterapia@gmail.com

Que o bordado é uma arte ancestral, normalmente transmitida em família, isto ninguém contesta. No entanto, para observá-lo como recurso artístico, é preciso muita imaginação.

Não é fácil entender como que a agulha substitui o pincel, as linhas fazem o papel das tintas e a tela, rainha soberana, cede seu lugar a tecidos e outros tantos suportes utilizados para bordar.

E a função do bordado também mudou. As mulheres aprendiam para dar conta da necessidade de um enxoval personalizado e um acréscimo às suas qualidades de boa esposa. A arte ficaria exposta em seu lar. Hoje inúmeros artistas visuais iniciaram processo de apropriação desta técnica expressa em suas produções.

Bordar é encontrar. O ato de bordar promove encontros.

Encontro de gerações que se perpetuam no aprendizado descompromissado. Encontro de materiais diversos que vão possibilitando novos usos e resultados. Encontro de pensamentos distintos, de culturas distantes, de saberes diferentes.  Encontro de gente, memórias, de vida. Encontro de costuras firmes com alinhavos despretensiosos. Encontro da rigidez do gráfico com a liberdade do bordado livre.

A Arteterapia utiliza o ato de bordar, relaxante e transformador, como recurso para elevar autoestima, diminuir ansiedade, trazer prazer e autoconfiança. Ao bordar, o pensamento se volta para desenhos ou para movimentos livres de preenchimento, e as produções trazem valor terapêutico por si mesmas. O ato remete às memórias afetivas, reminiscências do passado e reflexões importantes.

O resultado em um processo arteterapêutico pode surpreender e encantar.

O caminho criativo em arteterapia tem o propósito de concretizar, dar forma e materialidade ao que é intangível, difuso, desconhecido ou reprimido. Sonhos, conflitos, desejos, afetos, energia psíquica que é bloqueada e precisa liberar-se e fluir, ganhar concretude e poder plasmar e configurar símbolos, que, assim, cumprem sua função de comunicar, estruturar, transformar e transcender.  (PHILIPPINI, 2013, p.61).

 

Cito aqui um exemplo deste processo. Participo de um grupo arteterapêutico iniciado presencialmente no início de 2020 e surpreendido pela necessidade do atendimento remoto. Foi onde descobri que além de entender como seguir em meu percurso precisava descobrir qual era.  Em uma das atividades a escolha do material era livre, e senti vontade de confiar na minha atuação, garantida pela minha experiência, e escolhi algo que “domino”, e assim considerei buscar o famoso controle que sabemos que não existe.

 Resolvi retratar meu caminho, em papel, usando fio, bordando. Um formato A4 trazia o limite necessário e as retas que seriam a representação de uma estrada talvez. Para a minha surpresa o resultado foi diferente. 

As curvas foram surgindo, assim como o feminino, não como gênero, mas como energia pura, um feminino que tem como função especial:  costurar destinos, cerzir buracos de sentimentos doídos, tecer ideias, bordar cores em um mundo que às vezes parece desanimador e alinhavar novos caminhos.

Fui preenchendo esta força que tece, remenda, alinhava e estava à busca de um poder intenso quando percebi que o preenchimento me limitava, tolhia, amarrava. Ao invés da liberdade que queria, me senti aprisionada. E como se quisesse me livrar da sensação, soltei o fio e virei o trabalho:

 


 E no avesso me vi sem amarras.

No avesso que sustenta a beleza do trabalho, no avesso onde podemos aprender a olhar para nós mesmos é que encontrei a resposta: às vezes a vida só faz sentido virando do avesso.

 

Bibliografia

PHILIPPINI. Para entender Arteterapia: Cartografias da Coragem  Rio de Janeiro: Wak. 2013.

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Sobre a autora: Silvia Quaresma 


Arteterapeuta

AATESP 665/0720

Graduada em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP

Pós-Graduada em Finanças, Ibmec - SP

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em parceria com NAPE

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora Othila Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)

Idealizado do Fio que sente (@fioquesente)

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento em Arteterapia (individual e grupos)



9 comentários:

  1. Nossa, achei muito legal seu texto! Bordar não é minha praia, mas quem sabe agora, eu fique inspirada e resolva experimentar! Muito bom o que surgiu com as linhas no papel. Ah, e o avesso, sempre me falaram que é pelo avesso que a gente percebe se é um bom trabalho...apenas me veio isso agora, na memória...
    Parabéns Silvia, por mais um texto aqui!
    bjs, Claudia Abe

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    1. É um grande mistério o avesso...o avesso perfeito exigido pelas avós. E quem disse que perfeição existe? Mergulhe nestes fios Cláudia e você terá uma sensação diferente...e intensa.
      Gratidão!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Sempre tive a sensação de que os fios conectam, mas foi somente depois da mediação da Silvia, dentro da Arteterapia, que tenho relacionado todas as possibilidades e um ato mais reflexivo durante os processos do fazer e na própria busca pelo autoconhecimento.
    Mais um texto pra estudo e reflexão, com práticas que mobilizam sentir, ser e agir.
    Obrigada Silvia

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    1. Jana...os fios trazem nesta conexão nuances infinitas de significado, possibilidades incríveis de olhar o exterior e a partir daí chegar ao interior "destecendo" tudo, até paradigmas. Siga este caminho que além de prazeroso pode nos tirar de muitos labirintos!!! Gratidão

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  4. Que texto poético, Sílvia! E esse final surpreendente e encantador. Parabéns!!! Beijos

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  5. Gratidão querida ...este fim é só o começo!!!

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  6. Silvia, que texto lindo! Poético, leve, divertido, repleto de encantos e encontros com esta tecnica tão próxima do meu coração. Realmente o nosso "avesso" pode ser um grande presente para vida. Parabéns, Silvia.

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  7. Que bela metáfora, Silvia querida! Você costura com arte as linhas no tecido, e as palavras no texto. Criações, novos pontos, laços e nós convidando o leitor a ampliar seus fazeres com arte ficando atento aos avessos da criação, sempre, pois são os mais reveladores. Lindo texto, adorei!!! Avanteee... beijosss cheio de linhas coloridas Lídia

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