Por Silvia Quaresma - SP
Que
o bordado é uma arte ancestral, normalmente transmitida em família, isto ninguém
contesta. No entanto, para observá-lo como recurso artístico, é preciso muita
imaginação.
Não
é fácil entender como que a agulha substitui o pincel, as linhas fazem o papel
das tintas e a tela, rainha soberana, cede seu lugar a tecidos e outros tantos
suportes utilizados para bordar.
E
a função do bordado também mudou. As mulheres aprendiam para dar conta da
necessidade de um enxoval personalizado e um acréscimo às suas qualidades de
boa esposa. A arte ficaria exposta em seu lar. Hoje inúmeros artistas visuais iniciaram
processo de apropriação desta técnica expressa em suas produções.
Bordar
é encontrar. O ato de bordar promove encontros.
Encontro
de gerações que se perpetuam no aprendizado descompromissado. Encontro de
materiais diversos que vão possibilitando novos usos e resultados. Encontro de
pensamentos distintos, de culturas distantes, de saberes diferentes. Encontro de gente, memórias, de vida.
Encontro de costuras firmes com alinhavos despretensiosos. Encontro da rigidez
do gráfico com a liberdade do bordado livre.
A
Arteterapia utiliza o ato de bordar, relaxante e transformador, como recurso
para elevar autoestima, diminuir ansiedade, trazer prazer e autoconfiança. Ao bordar,
o pensamento se volta para desenhos ou para movimentos livres de preenchimento,
e as produções trazem valor terapêutico por si mesmas. O ato remete às memórias
afetivas, reminiscências do passado e reflexões importantes.
O
resultado em um processo arteterapêutico pode surpreender e encantar.
O caminho criativo em arteterapia tem
o propósito de concretizar, dar forma e materialidade ao que é intangível,
difuso, desconhecido ou reprimido. Sonhos, conflitos, desejos, afetos, energia
psíquica que é bloqueada e precisa liberar-se e fluir, ganhar concretude e
poder plasmar e configurar símbolos, que, assim, cumprem sua função de
comunicar, estruturar, transformar e transcender. (PHILIPPINI, 2013, p.61).
Cito
aqui um exemplo deste processo. Participo de um grupo arteterapêutico iniciado
presencialmente no início de 2020 e surpreendido pela necessidade do
atendimento remoto. Foi onde descobri que além de entender como seguir em meu
percurso precisava descobrir qual era. Em
uma das atividades a escolha do material era livre, e senti vontade de confiar na
minha atuação, garantida pela minha experiência, e escolhi algo que “domino”, e
assim considerei buscar o famoso controle que sabemos que não existe.
Resolvi retratar meu caminho, em papel, usando fio, bordando. Um formato A4 trazia o limite necessário e as retas que seriam a representação de uma estrada talvez. Para a minha surpresa o resultado foi diferente.
As curvas foram surgindo, assim como o feminino, não como gênero, mas como energia pura, um feminino que tem como função especial: costurar destinos, cerzir buracos de sentimentos doídos, tecer ideias, bordar cores em um mundo que às vezes parece desanimador e alinhavar novos caminhos.
Fui
preenchendo esta força que tece, remenda, alinhava e estava à busca de um poder
intenso quando percebi que o preenchimento me limitava, tolhia, amarrava. Ao
invés da liberdade que queria, me senti aprisionada. E como se quisesse me
livrar da sensação, soltei o fio e virei o trabalho:
No
avesso que sustenta a beleza do trabalho, no avesso onde podemos aprender a
olhar para nós mesmos é que encontrei a resposta: às vezes a vida só faz
sentido virando do avesso.
Bibliografia
PHILIPPINI.
Para entender Arteterapia: Cartografias da Coragem Rio de Janeiro: Wak. 2013.
Sobre a autora: Silvia Quaresma
Arteterapeuta
AATESP 665/0720
Graduada em Letras,
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP
Pós-Graduada em
Finanças, Ibmec - SP
Pós-Graduada em
Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em
parceria com NAPE
Professora
especialista de artesanato
Idealizadora do
Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia
Idealizadora Othila
Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)
Idealizado do Fio que
sente (@fioquesente)
Coordenadora de
Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários
Atendimento em
Arteterapia (individual e grupos)
Nossa, achei muito legal seu texto! Bordar não é minha praia, mas quem sabe agora, eu fique inspirada e resolva experimentar! Muito bom o que surgiu com as linhas no papel. Ah, e o avesso, sempre me falaram que é pelo avesso que a gente percebe se é um bom trabalho...apenas me veio isso agora, na memória...
ResponderExcluirParabéns Silvia, por mais um texto aqui!
bjs, Claudia Abe
É um grande mistério o avesso...o avesso perfeito exigido pelas avós. E quem disse que perfeição existe? Mergulhe nestes fios Cláudia e você terá uma sensação diferente...e intensa.
ExcluirGratidão!!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSempre tive a sensação de que os fios conectam, mas foi somente depois da mediação da Silvia, dentro da Arteterapia, que tenho relacionado todas as possibilidades e um ato mais reflexivo durante os processos do fazer e na própria busca pelo autoconhecimento.
ResponderExcluirMais um texto pra estudo e reflexão, com práticas que mobilizam sentir, ser e agir.
Obrigada Silvia
Jana...os fios trazem nesta conexão nuances infinitas de significado, possibilidades incríveis de olhar o exterior e a partir daí chegar ao interior "destecendo" tudo, até paradigmas. Siga este caminho que além de prazeroso pode nos tirar de muitos labirintos!!! Gratidão
ExcluirQue texto poético, Sílvia! E esse final surpreendente e encantador. Parabéns!!! Beijos
ResponderExcluirGratidão querida ...este fim é só o começo!!!
ResponderExcluirSilvia, que texto lindo! Poético, leve, divertido, repleto de encantos e encontros com esta tecnica tão próxima do meu coração. Realmente o nosso "avesso" pode ser um grande presente para vida. Parabéns, Silvia.
ResponderExcluirQue bela metáfora, Silvia querida! Você costura com arte as linhas no tecido, e as palavras no texto. Criações, novos pontos, laços e nós convidando o leitor a ampliar seus fazeres com arte ficando atento aos avessos da criação, sempre, pois são os mais reveladores. Lindo texto, adorei!!! Avanteee... beijosss cheio de linhas coloridas Lídia
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