segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O CONTO POR UM FIO

Por Silvia Quaresma

othila.arteterapia@gmail.com

Alguns relatos direcionam o aparecimento do primeiro bordado na era pré-histórica, onde se usavam agulhas feitas com ossos e fio de fibras ou tripas de animais. Seria esta a primeira forma de colocar o tempo lado a lado com a técnica milenar.

O tempo de um trabalho desta natureza, porém, não pode ser contabilizado utilizando uma fórmula específica pois não é um simples ir e vir de uma agulha.   É um mergulho fora do Cronos. Carrega em si o período de execução, todo o seu significado e um lugar fora do tempo, onde é resgatado a ancestralidade numa tradição que confere sentido ao passado à medida que se cria o presente.

O bordado representa um olhar para um lugar esquecido, mas vivo na memória de quem o usa para referência e interpretações quando são passadas de uma mulher a outra por muitas gerações. É exatamente por isso que não é possível passar pura e simplesmente por um grupo de bordado sem notar seu forte apelo terapêutico.

Para citar como exemplo, tenho participado de um grupo que resolveu unir bordado e literatura, mais especificamente Marina Colassanti e fios. O grupo julgou ser possível não ter nenhuma reação com este contato tão singular. 

Para mim, o ato de bordar é uma manifestação de poder, de mostrar preferências, desvarios, trazer incomodo. E quando aliado a um conto que traz a provocação como enredo o trabalho será a representação de como nossos olhos, emoção encaram a vida. Como resultado, o contato com o conto, fios e o simples ato de bordar, escolher cores, criar texturas levou o grupo a experimentar sensações intensas.

Em Arteterapia, o fio é usado como recurso expressivo e o bordado como possível aplicabilidade como abordado por Philippini:

 

Os mecanismos operacionais do bordado em relação à costura são mais complexos, pois cada ponto de bordado, com sua forma especifica, requer também ritmos e uma sequência de movimentos mais complexos que na costura. Alguns bordados resultam em efeitos semelhantes à pintura, e outros oferecem a possibilidade de assinalar com clareza as distorções entre figura e fundo, criando também texturas e relevos.” (PHILIPPINI, 2018, p.67).

 

Usada com recurso arteterapêutico, a literatura é capaz de trazer sensibilização intensa e profunda; capaz de emocionar, encantar e até amedrontar.  Existe um mundo além do nosso que é alcançado por ela.

Trago o conto por um fio quando aceito a provocação de transposição de linguagem:

“Modesto drama em dois atos:

Personagens

Uma plantinha quase seca, lutando bravamente para sobreviver na terra árida.

Uma pessoa bem-intencionada, vinda de um país muito verde.

Primeiro ato:

A pessoa se abaixa para observar a plantinha de perto. Penalizada, descalça com cuidado as raízes arrancando-as daquele chão avaro. Com a planta na palma da mão, sai de cena rumo ao seu hotel

Segundo ato:

No banheiro branco e fresco, a pessoa mergulha raízes e caule num copo cheio de água.

A imóvel enxurrada é excessiva para as forças da planta que só conhece secura. Extingue-se entre azulejos sua tênue vida”

(COLASANTI, 2012, P.213)



A princípio pensei ser possível passar pela leitura sem me envolver. Questões singulares apareceram só com esta ação: o quanto partimos para o auxílio sem a devida solicitação e autorização? E o pior, como podemos simplesmente agir sem perceber a nossa intervenção cega e equivocada?

Ao colocar o fio na agulha para o trabalho têxtil proposto novos insights: a aridez que observo é a que conheço e com a qual não sei lidar? Consigo ver a força, o equilíbrio no outro ou simplesmente o afogo no que acho bom para mim?

E fica para o leitor a seguinte provocação: o conto lido é o mesmo conto por um fio?

Sigamos alinhavando pensamentos, traçando caminhos e nas tramas de uma existência repleta de perguntas, refletindo se o ato ancestral de trabalhar com o fio não é exatamente o fio condutor para a nossa salvação.

 

Bibliografia

COLASANTI, M. Hora de alimentar serpentes. São Paulo: Global Editora, 2012. 

PHILIPPINI. A Linguagens e Materiais expressivos em Arteterapia: uso, indicações e propriedades.  Rio de Janeiro: Wak. 2018.

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Sobre a autora: Silvia A.S.Quaresma 

Arteterapeuta

AATESP 665/0720

Graduada em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema - SP

Pós-Graduada em Finanças, Ibmec - SP

Pós-Graduada em Arteterapia e Criatividade – Instituto Freedom – Faculdade Vicentina em parceria com NAPE

Professora especialista de artesanato

Idealizadora do Projeto Customizando Emoções –Interface entre Artesanato e Arteterapia

Idealizadora Othila Arteterapia em ação (@othila.arteterapia)

Idealizado do Fio que sente (@fioquesente)

Coordenadora de Grupos de Arteterapia em Instituição para cuidadores e voluntários

Atendimento em Arteterapia (individual e grupos)



segunda-feira, 18 de outubro de 2021

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL COM A CERÂMICA


Por Isabel Pires

bel.antigin@gmail.com

Em arteterapia, sabe-se que o uso de diferentes materiais obedece à linguagem subjetiva e às qualidades terapêuticas deles. Cada material artístico tem o seu momento mais adequado de aplicação no processo terapêutico e responde melhor à necessidade do indivíduo em um determinado momento, pois desperta nele diferentes respostas emocionais. Segundo Carrano e Requião (2013), para um mesmo material, diferentes técnicas poderão ser utilizadas, gerando resultados também diversos. A relação com os materiais artísticos gera no indivíduo experiências sensoriais, sensações de prazer e desprazer, pela textura, a temperatura, o cheiro... “levando a lembranças mais remotas, tudo isso acontecendo ao mesmo tempo por meio da ponte erguida entre o material de arte e os sentidos” (CARRANO & REQUIÃO, 2013, p. 13). 

A argila (ou barro) é frequentemente usada no processo arteterapêutico. Por trabalhar no campo tridimensional, já que pertence à técnica de modelagem, geralmente é usada depois de algumas experiências no campo bidimensional. De acordo com Philippini (2009, p. 72), a argila desperta conteúdos inconscientes mais rapidamente e “mobiliza intensas e ativas conexões arquetípicas”. Além disso, na minha própria experiência, possui um caráter introspectivo e reflexivo, conforme vou relatar a seguir. 

Há algum tempo, na minha primeira aula de cerâmica, enquanto trabalhava a argila, fiz várias reflexões e associações entre o processo de criar um produto de cerâmica, as relações do quotidiano e o processo de individuação. Enquanto o professor me explicava as etapas do processo, fiz uma “viagem mental filosófica”. 

Primeiro, ele me disse para beliscar e amassar a argila (técnica do belisco), para equilibrar as moléculas de água presentes no material. Aí, pensando no árduo processo de amassar e beliscar o barro (que exigem energia e presença corporal), lembrei-me do quão difícil também são os começos na vida: de trabalho, de relacionamento, de um novo aprendizado. Depois, ele me falou para fazer uma bola, que, por ter a forma mais perfeita na natureza, era a que distribuía as moléculas de água de forma mais equilibrada. Claro que me lembrei imediatamente de Jung, ao nos falar do círculo e dos mandalas, como símbolos do Self e do equilíbrio, ou da busca do equilíbrio da psique. Em seguida, fazer um furo central na massa e começar a moldá-la, de dentro para fora. Começar do centro, de dentro para fora, exatamente como funciona a individuação descrita por Jung - o Self é o centro regulador da psique humana. 

Continuei trabalhando e viajando mentalmente. “É preciso ter cuidado com as rachaduras, porque senão, ao ir ao forno, vão fazer com que a peça se quebre”, o professor me alertou. Então, eu pensei em como temos que cuidar de nossas rachaduras internas, na nossa psique e nos nossos relacionamentos, porque, senão, mais tarde, vão explodir em problemas sérios, rupturas, sintomas, doenças. E, por fim, o professor arremata: “Agora, para tornar a peça homogênea, é necessário alisar muito suavemente com o dedo, fazendo um movimento leve de arrastar o dedo pela argila, senão ela (a argila) não vai aceitar e vai rachar”. Que difícil encontrar essa suavidade, essa leveza! Queria me impor à massa, mas isso só piorava as coisas. Até que, por fim, encontrei a paciência necessária e acertei a mão, o ritmo e o jeito de alisar a argila. Não é assim na vida? Se brigarmos com as situações, tudo piora, racha, dá errado. Mas, se tivermos calma e paciência e soubermos equilibrar nossa própria agressividade, encontraremos o jeito certo para lidar com quaisquer situações que a vida nos oferecer. 

Finalmente, ao lidar com a argila, deixei a massa e minhas mãos me guiarem no trabalho. Assim, inicialmente, eu queria fazer uma caneca. Mas o que veio foi uma tigela, e entendi que era isso o que aquele pedaço de barro tinha que ser. Assim também no viver, é preciso seguir o caminho com intuição e aceitar o que é. Além disso, refleti: o objeto já estava naquela argila potencialmente; coube a mim retirar-lhe os excessos, o que não lhe pertencia, trabalhar a massa para que o objeto viesse à tona. Da mesma forma, o sujeito deve fazer o caminho de ampliação de consciência, ou seja, o seu processo de individuação, para se tornar aquilo que nasceu para ser. E, nesse processo, deve abrir mão de muitos hábitos, atitudes, comportamentos que não lhe servem, eliminando os excedentes, o que não é necessário. 


            Após essa etapa, a peça de barro vai, pela primeira vez, ao forno, cuja queima se chama biscoito, que seca as moléculas de água. Aí, é possível lixar o objeto, mas suavemente (outra vez, o movimento suave é necessário) para não o arranhar e evitar deixar marcas indeléveis e indesejáveis. Realmente, muitas vezes, aquilo que fazemos ou falamos pode arranhar uma relação, deixando marcas que talvez nem o tempo possa apagar. Todo cuidado é pouco. Mas o lixar, o aparar arestas é importante, e é nesse momento que podemos eliminar relevos e formas indesejadas e o objeto ganha a forma que queremos. Nos relacionamentos, por exemplo, é preciso o diálogo que “apara as arestas” entre os sujeitos envolvidos. Profissionalmente, essa é a hora do toque final, do aperfeiçoamento, do cuidado que faz a diferença entre o que você faz e o que outro profissional menos cuidadoso oferece.
 

            Finalmente, a etapa da esmaltagem, para dar cor, brilho e proteção à obra criada. Creio que, dentro da lógica da analogia que estabeleci neste texto, podemos pensar no momento em que o relacionamento bem trabalhado, bem cuidado, ganha brilho e cor e fica mais protegido das intempéries da vida. Assim também é no processo de individuação, no qual, depois de todo o trabalho, o indivíduo se torna quem verdadeiramente, com brilho, cor própria e autonomia. 

Eis aqui o que o barro me levou a refletir. Fiquei imersa na experiência de criar e nas etapas que vinham, automaticamente, como metáforas da vida. Senti-me introvertida, reflexiva, filosófica e centrada em mim mesma. Mais importante do que as teorias, experimentar os materiais por si mesmo sempre vai trazer muitos insights importantes ao profissional de arteterapia e, assim, enriquecer o seu trabalho de forma profunda e até inusitada. Se o leitor tiver alguma experiência com esse ou outro material, é só me contar: vou gostar de saber.

           

BIBLIOGRAFIA: 

CARRANO, E. & REQUIÃO, M.H. Materiais de arte – sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. 

PHILIPPINI, A. Linguagens e materiais expressivos em arteterapia: uso, indicações e propriedades. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2009.

 

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Sobre a autora: 



Isabel Pires é professora de línguas, psicóloga clínica e arterapeuta, com formação também em jornalismo e em antiginástica ® Thérèse Bertherat. É pós-graduanda em Psicologia Junguiana.

Idealizadora do projeto “Autocuidado e redescoberta: Mulher 45+” com atendimento grupal online, para mulheres de meia idade que passam pelo climatério.

Autora do texto “Vygotsky e a arte”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes. Rio de Janeiro: Semente Editorial, 2020.

Atende adultos em sessões individuais e em grupo, online e presencial. 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

UM DESAFIO

Materiais: isopor e EVA

Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

Instagram: @claudia_abe_

Que surpresa eu tive com esta sessão. Quanta criatividade surgindo do meu pai e da minha tia materna. Eles respectivamente aos 83 e 91 anos, na 14ª sessão arteterapêutica ocorrida em 18/julho/2018, em atendimento domiciliar, trabalhando a estimulação cognitiva.

Segundo Machado (2017, p.25), “numa sessão arteterapêutica, o cérebro é estimulado a trabalhar, de maneira lúdica e leve, o pensar sem limitação: o que leva, quando o indivíduo já está mais acomodado, relaxado, ao fazer criativo”.

No que pode se transformar uma tampa de marmita de isopor e três tirinhas de EVA rosa e ao mesmo tempo, o quanto podemos aprender com essa experiência.

Ao entregar três tiras de EVA rosa para cada um, orientei que poderiam cortar vários formatos do tipo: quadrado, triângulo, círculo, etc.

Setting arteterapêutico

Minha tia escolheu cortar tudo em quadradinhos.

Tia: quadradinhos

Já o meu pai, quando fui olhar, que susto! Diversos formatos tão diferentes que nem eu pensaria em fazê-los.

Pai realizando os cortes nas tiras de EVA

 


Pai: diversos formatos no EVA rosa

Em seguida, falei para colarem os pedaços da forma que quisessem no isopor redondo, com o cuidado para não colarem os dedinhos.

Durante o exercício da colagem, o potencial criativo é estimulado, o que leva a busca de soluções e recursos ao mesmo tempo interiores e exteriores, desenvolvendo princípios ordenadores tanto do fazer como do pensar que possibilitam uma avaliação não só do trabalho mas também de si mesmo que acabam gerando um equilíbrio interno e externo. (CARRANO e REQUIÃO, 2013, pág. 52)

Meu pai ficou impressionado como eu havia conseguido cortar as tiras de EVA com tesoura, já que para ele, o uso de uma guilhotina é fundamental. Vive falando que trabalhou numa gráfica quando jovem. Agora, dentista aposentado.

De repente, quando olhei seu trabalho, percebi que ele estava colando as peças tridimensionalmente, ou seja, saindo do plano em direção ao céu. 

Ao término da colagem, descobri que nenhum deles gostou de usar a cola própria para EVA e isopor e ainda falaram na sessão seguinte ao usarem a cola branca: isso sim é cola! Mencionaram que a outra cola gruda muito na mão e fica difícil colar os pedacinhos de EVA.

A cola de isopor tem uma grande qualidade: ela é transparente e ao ser usada, forma uma espécie de fio, muito útil para trabalhos em esculturas de arame. Sua secagem é mais lenta e, por isso, tem de se ter certo cuidado no seu manuseio. (CARRANO e REQUIÃO, 2013, pág. 44)

A textura da cola PVA é agradável ao toque e sua cor é branca, porém, ao secar, fica transparente. (CARRANO e REQUIÃO, 2013, pág. 39)

Compartilhamento 


Tia: “Bolo de Aniversário de uma Menina de Quinze Anos”

Palavra final: Recordação (das festinhas de aniversário)

Tia: achei difícil por causa da cola. A cola pega muito na mão. É difícil colar os pedacinhos com a cola. 


Pai: “Desenho Moderno”

Palavra final: Decepção (não gostei do meu trabalho)

Pai: eu fui pego de surpresa nesse tipo de trabalho. Como fui dentista, trabalhava com a pinça. Faltou para mim a pinça que estou habilitado. Quis montar uma coisa moderna, bem atual e diferente, mas acho que não fui muito feliz. Quis fazer uma coisa fora do normal e não me agradei. Achei muito difícil, porém desafiador. O resultado não foi bem aquele que eu esperava. Acho que faltou uma pinça. Pinça seria fundamental...

(Mais tarde vim, a saber, que a pinça é como uma extensão da mão para o dentista. E depois trocando uma ideia com a minha supervisora em Arteterapia, Eliana Moraes, vi que poderia ter fornecido a pinça como material de suporte e segurança para ele).

... Desenhar e colar, montar qualquer coisa é uma arte difícil, precisa estar treinado, com ideia na cabeça. Trabalhei com coisas pequenas, tenho domínio da cola e pinça. Mas não fui muito feliz na distribuição. Você deveria me dar uma nota baixa porque como aluno não estava inspirado – ele disse.

Encerramento

Pai: Falo eu primeiro. Foi um desafio muito grande porque foi difícil haver uma inspiração para montagem. Não gostei do final da montagem. Se tivesse mais tempo e condições e uma pinça... Não fiquei feliz com meu trabalho. Não conhecia EVA.

Tia: manusear o material é fácil. O difícil é colar.

Meu pai encerra a sessão dizendo: “Nem sempre a gente encontra as coisas do jeito que a gente quer. Hoje foi um desafio. Obrigado pela aula”.

 

Bibliografia:

CARRANO, Eveline e REQUIÃO, Maria Helena. Materiais de arte: sua linguagem subjetiva para o trabalho terapêutico e pedagógico. – Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013.

MACHADO, Edith Suely. Velhice e Criatividade. In: Criatividade e envelhecimento: ressignificação da vida. Celso Falaschi, Otília Rosângela Souza (orgs). Campinas (SP): Labour Editora, 2017.

 

Se você quiser ler meus textos anteriores neste blog, são eles:

O Branco no Branco – 23/08/2021

Tudo Começa em Pizza – 28/06/21

Um Material Inusitado – O Carimbo de Placenta – 10/05/21

As Vistas do Monte Fuji – 22/03/21

É Pitanga! – 07/12/20

O que é que a Baiana tem? – 26/10/20

Escrita prá lá de criativa – 27/09/20

Fazer o Máximo com o Mínimo – 01/06/20

Tempo de Corona Vírus, Tempo de se Reinventar – 13/04/20

Minha Origem: Itália e Japão – 17/02/20

Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” – 11/11/19

“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” – 19/08/19

 

Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe


 

Arteterapeuta – atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.

Voluntária com o projeto online “Cuidando do Cuidador”, para cuidadores familiares de pessoas com a Doença de Alzheimer, no grupo GAIAlzheimer, São Paulo.

Idealizadora do projeto “Simplesmente Eu” com atendimento grupal online, para pessoas que não conhecem a arteterapia.

Autora do texto “Salvador Dalí e as minhas gavetas internas”, publicado no livro Escritos em Arteterapia: Coletivo Não Palavra – organizado por Eliana Moraes, 2020, Semente Editorial.

Atendo em domicílio e online.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Diálogos entre Arteterapia, Arte e Tarô: O Imperador e Pieter Mondrian

Por Mercedes Duarte - RJ

duarte.mercedes@gmail.com

Esse é mais um texto da sequência de reflexões acerca dos 22 arcanos maiores do tarô, associados a elementos da arte que possam nos aproximar desses arquétipos. Nesse artigo, trago o Arcano IV, o Imperador, em diálogo com a proposta artística de um dos fundadores do movimento holandês De Stijl (O Estilo), o artista plástico Pieter Mondrian.

O intuito desse diálogo entre arte e tarô, como já mencionado e aprofundado em outro texto[1], é o de proporcionar reflexões propositivas, possibilidades terapêuticas - experimentadas na Jornada Arteterapêutica Arte e Tarô[2] - que permeiam esses elementos em diálogo, inspirando assim uma possível ampliação do repertório arteterapêutico. 

O Imperador e a estrutura das coisas       


                                                  

O Imperador, assim como o Mago, Arcano I, é parte do princípio masculino. Entretanto, ele é um arquétipo que está mais próximo da humanidade, representando a figura do Pai Terreno, diferentemente do Mago, mais associado à divindade, ao arquétipo do Pai Divino (BANZHAF, 1997). O Imperador encarna a civilização, a cultura e a intervenção na natureza. Intervém, portanto, no domínio da Imperatriz, Arcano III, ordenando, restringindo, lapidando, implementando meticulosamente o seu reinado, dominando o mundo da matéria.

Aqui rumamos à vida adulta, pois é nesse momento em que o herói da jornada do tarô (representado pelo Louco, Arcano 0) deixa o universo amoroso e protegido da Imperatriz, e se direciona a uma vida de maior consciência e responsabilidade. Esse arquétipo traz em si a objetividade e racionalidade. Enquanto a Imperatriz se movimenta através de Eros e do sentimento, o Imperador rege por meio do Logos, do pensamento. As palavras, nomeações, classificações, categorias, sistemas de pensamento, ordenações do mundo civilizado, fazem parte de sua jurisdição. 

Como enfatiza Nichols (1997), o número quatro, associado a esse arquétipo, encontra-se vinculado a muitos sistemas de ordenação do pensamento, como por exemplo: as quatro direções da bússola; os quatro humores (sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico); os quatro elementos da natureza; os quatro ingredientes alquímicos (sal, enxofre; mercúrio e azoto); as quatro estações do ano; as quatro figuras geométricas básicas (círculo, reta, quadrado e triângulo); as quatro fases da lua; as quatro operações básicas da aritmética (adição, subtração, multiplicação e divisão); as quatro funções junguianas (sensação, intuição, pensamento e sentimento), entre outros.

O Imperador nos traz a ideia de fundação, base, estabilidade, estrutura. A própria forma geométrica do número quatro, o quadrado, traz as mesmas noções. Uma cadeira ou uma casa estão sustentadas por quatro lados, quatro paredes, quatro estruturas que proporcionam estabilidade, alicerce e equilíbrio.

Pieter Mondrian e a fundamento da realidade


Pieter Mondrian (1872-1944) ou Piet, seu apelido, é um artista plástico, holandês, de inícios do século XX. Mondrian, como mencionado, é um dos fundadores do movimento artístico holandês De Stijl (O Estilo), implementado em 1917, e difundido pela Revista de mesmo nome. Nesse movimento, o artista propõe uma nova estética da pintura[1], com embasamento ético, que diz respeito a um sistema específico relativo a interação entre formas e cores, batizada de Neoplasticismo. O movimento é influenciado pelos preceitos da Sociedade Teosófica, vertente espiritualista e filosófica que tem como uma de suas fundadoras a escritora russa Helena Blavatsky.

A Sociedade é fundada em 1875, e está em consonância com os valores positivistas da época. Uma de suas principais propostas é a busca da Verdade relativa à realidade última das coisas. Mondrian, portanto, elabora sua arte a partir dessa busca, num processo de objetivação, racionalização e universalização da pintura, que deveria expressar a essência do que subjaz à realidade sensorial. Mondrian elaborava pouco a pouco uma arte em que eram descartados aspectos relativos à subjetividade do artista. Seu direcionamento, desse modo, era demonstrar a universalidade daquilo que fundamenta, daquilo que dá estrutura à realidade, de modo abstrato, objetivo e matemático. Antes de sua fase puramente abstrata, inserida no movimento De Stijl, o artista produz pinturas figurativas e cubistas. Em algumas de suas pinturas percebemos seu processo de eliminação das “camadas” consideradas, por ele, subjetivas e sensoriais, como podemos ver na sequência das obras abaixo:

       


   Árvore Vermelha (1908-1910)    

  


Árvore Cinza (1911)          

     

 

Macieira em Flor (1912)

Na última obra, Macieira em Flor (1912), em sua fase cubista, não identificamos com facilidade a forma de uma árvore, tal é o processo de “descamação” dos aspectos sensoriais. Seu projeto nos próximos anos será de revelar as estruturas que dão base à realidade, e pouco a pouco retirar de suas obras aquilo que lhe parece excesso, assim como as linhas curvas, como podemos observar abaixo:

 


            Pier and Ocean - Composition, nº 10 (1915)

Assim, em busca de representar a “Unidade”, a “Origem”, a “Base” de tudo, Mondrian chegou em sua expressão estética mais conhecida. Passou a lançar mão de linhas retas e cores primárias, para exprimir manifestações mais “puras” da Origem. Denominou sua nova arte de “plástica pura”, como a que vemos abaixo: 

Trafalgar square, 1943

De acordo com a Teosofia, a Origem, apesar de ser Una, se manifesta na dualidade, em pares de opostos conflitantes, relativos à dicotomia “matéria e espírito”. A Teosofia postula, portanto, a Unidade como fim último, um caminho de retorno à Harmonia (VASCONCELOS, 2017). Considera então que tudo que emerge da Unidade, se expressa na multiplicidade, e retorna à primeira, em um processo evolutivo.  Mondrian, como teósofo, compreende que o papel da arte e do artista seria o de refletir a Origem, expressando o conflito e ao mesmo tempo sua resolução, ou seja a sua unidade realizada através de um processo dialético. 

Para Mondrian, a “característica fundamental da arte neoplástica será a de conceber a obra de arte como unidade – síntese – que nos mostre a dialética entre elementos opostos” (MARIANO, 2006, apud VASCONCELOS, 2017, p.100). Para desenvolver a proposta, o artista se inspira no matemático e teósofo Mathieu H. J. Schoenmaekers que produz equações com o mesmo intuito, o de encontrar correspondência e de “reestabelecer” o equilíbrio entre os pares de opostos:


Schoenmaekers analisou em detalhes estas diferentes “duplas” em polaridade; ordenando-as por uma série de equações (...). Estas mesmas considerações se encontram justamente nos escritos de Mondrian. Apresenta-se (...), o seguinte modelo exemplificado: Vertical = espaço = estático = masculino = harmonia = interior (interno). Horizontal = tempo = dinâmico = feminino = melodia = exterior (externo). (GRECO, 1997, p.101, apud VASCONCELOS, 2017, p. 96) 

Mondrian atribuiu significado não apenas às linhas, horizontais e verticais, e aos espaços, como exemplificado na citação acima, mas também ao cruzamento entre as linhas. Considerados cruzes ou intersecções, os cruzamentos expressam o encontro entre as duplas de oposições, representando um ponto de equilíbrio entre elas. Mondrian denominou essa expressão estética por “Ponto Plástico”, categoria relevante para o movimento De Stijl (VASCONCELOS, 2017). 

O Imperador e Mondrian 

            É possível encontrar muitos aspectos comuns entre o arquétipo do Imperador e a arte de Mondrian. O artista holandês buscava expressar a estrutura, a base, aquilo que dá sustento à realidade, domínios esses próprios ao Imperador.            Desse modo, como vimos, a busca pela realidade última, pelo alicerce de tudo, é ordenada pela racionalidade, por cálculos matemáticos, por sistemas de pensamento próprios à cultura humana, elementos esses encarnados pelo Imperador. Assim, mediante o contato com a proposta artística de Mondrian podemos nos aproximar do arquétipo do Imperador. 

Proposta Arteterapêutica 

A partir do contato com a proposta artística de Mondrian e visualização guiada, buscou-se, na vivência da Jornada, “a base que nos estrutura”. A técnica escolhida foi a colagem em 3D, pois a colagem, além de outras propriedades terapêuticas, é estruturadora. Já a proposta de construí-la em 3D traz a possiblidade de experienciar a construção emergente de uma base anteriormente estruturada.

O trabalho que trago é de uma das participantes que atribuiu à “Força Invisível”, título de sua obra, aquilo que a estrutura, que lhe dá base para caminhar em situações e contextos adversos.

 


Título: Força Invisível 

De acordo com a participante, o trabalho proporcionou um ordenamento interno, um reencontro com o seu ponto de equilíbrio e de sustentação, causando certo alívio e tranquilidade por se reconectar com sua segurança interna. 

Referências Bibliográficas 

BANZHAF, Hajo (2011). O Tarô e a Viagem do Herói: A Chave Mitológica para os Arcanos Maiores. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. Editora Pensamento: São Paulo. 

NICHOLS, Sallie (1997). Jung e o Tarô: Uma Jornada Arquetípica. Trad. Laurens Van Der Post. Editora Cultrix: São Paulo. 

VASCONCELOS, Henrique (2017). Mondrian e a Teosofia. Trabalho apresentado ao curso de Artes Visuais como requisito parcial para obtenção o título de Bacharel. Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc Centro de Artes – Ceart Curso de Artes Visuais. Florianópolis.

Disponível em https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/00003c/00003cee.pdf

Acesso em 25/03/21



[1] Em um segundo momento essa proposta passa a influenciar não apenas a produção plástica, mas também a arquitetônica.

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Sobre a autora: Mercedes Duarte


Arteterapeuta, Mestre em Ciências Sociais, pesquisadora autônoma de arte, terapia e oráculos