segunda-feira, 25 de junho de 2018

SÉRIE OLHARES SOBRE OS MITOS: HÉCATE E A SUCATA



Laila Alves de Souza – Curitiba / Rio de Janeiro 
lai_ajt@hotmail.com

O estudo das mitologias nos alude ao conhecimento do nosso mundo psíquico, onde os deuses representam as nossas forças arquetípicas e os mitos representam nossos processos internos e externos. Desse modo, o conhecimento desse estudo nos permite compreender a psique humana.
A psicologia arquetípica, especificamente, evidencia a importância daquilo que nos ensina a mitologia. Os deuses estão presentes na psique e na cultura, e a negação de um deles repercute na estrutura psicológica do indivíduo.  
Nesse texto entraremos em contato com uma deusa desprezada, pois ela pertence ao âmbito do ctônico e do escuro. A deusa Hécate.  
Na mitologia grega, a deusa Hécate é considerada uma deusa sombria e infernal. Assim como Perséfone, ela é uma deusa dos mortos. Como ela se encontra longe do âmbito da luz, e, sendo a luz um dos símbolos da consciência, esta deusa reside nos escombros de nossa psique, ou seja, no escuro do inconsciente. C.G Jung, com seu conceito de sombra, mostrou que são nesses escombros que reside muito de nossa energia psíquica, e sendo estas não conscientes, podem agir autonomamente e perturbadoramente, sem a orientação do ego. Considerando que Hécate pertence a esse terreno ou esse terreno pertence a Hécate, o olhar para ela é de fundamental importância para a saúde psíquica. Sobre a deusa vemos em Chevalier & Gheerbrant:
"Enfim, a nigromante das aparições noturnas simbolizaria o inconsciente, onde se agitam as feras e monstros: o inferno vivo do psiquismo, mas também reserva de energias a organizar, como o caos se organizou em cosmo sob a influência do espírito." (CHEVALIER & GHEERBRANT, p.485)
Hécate também está associada ao lixo, a podridão e aos restos.  De acordo com Hillman esta deusa "(...)torna sagrados os lixos da vida, de forma que tudo conta, tudo importa." (Hillman, p. 70). Dessa forma, honrar essa deusa significa iluminar nossos lixos psíquicos, aquilo que não prestou para nossa casa egóica, ou seja, que apresenta característica desagradável e incompatível.
Não é à toa que, por governar esses atributos, essa deusa tenha sido esquecida no arcabouço dos mitos. Inclusive, ao pegarmos compilações sobre deuses gregos não é comum ter a presença de Hécate. Por mais que um dos indícios também seja a de que a deusa não tenha um mito próprio, essa exclusão pode vir desses atributos que são considerados fétidos e feios para os olhos da consciência.  
A sucata

A sucata pode se apresentar como um material sob os domínios de Hécate. Aquilo que aparentemente se mostra como resto e lixo, sob os desígnios dessa deusa, se transforma em material e energia possíveis de serem trabalhados; é o que o Hillman coloca como "tudo conta, tudo importa".  
O trabalho já começa no olhar sobre aquilo que seria lixo. Essa análise sobre qual material pode virar sucata e qual não, é um trabalho que, na perspectiva da psique, já está se mexendo na sombra. O ego com sua orientação consciente e unilateral já descartaria qualquer resto, mas na psique Hécate tem seu lugar sagrado, ou seja, para psique esses restos têm seu lugar.
Depois de discriminar o que pode virar sucata, o trabalho consiste em construir algo com aquilo que parece ser um amontoado confuso e sem sentido. As energias inconscientes se apresentam dessa mesma forma para o ego consciente. Vários mitos e contos retratam essa dinâmica de amontoados de elementos (geralmente vários tipos de grãos misturados) onde o herói ou a heroína precisam enfrentar o trabalho de separar e classificar. Vemos isso no mito de Psiquê e no conto da Vasalisa, por exemplo.
O olhar, manusear, separar e compor a sucata é um trabalho que exige disposição psíquica, pois pede um olhar e um diálogo para dentro de nós. Se não houver esse movimento, ficaremos na superficialidade e só veremos um conjunto de coisas que poderiam ser jogadas fora. É um trabalho que propicia um contato com novas forças arquetípicas, no caso, com a força de Hécate.
Esse olhar permite, por exemplo, que uma lata velha venha a ser um corpo de um boneco, e a partir disso o corpo se presentifica. Mas como é esse corpo? Duro como uma lata ou mais macio como um rolo de papel higiênico? As fitas coloridas são usadas para enfeitar (entrando em contato com Afrodite)? Ou a obra se compõe com as embalagens nuas e sem embalagens (entrando em contato com a sobriedade)? O manuseio da cola quente é exagerado ou se coloca pouca cola? Percebemos aqui questões de firmeza/rigidez ou flexibilidade/frouxura. 
Um mundo de possibilidades se descortina nesse tipo de trabalho, abrindo-se também, o mundo psíquico. Todo esse processo consiste no que a psicologia arquetípica proposta por James Hillman fala do “fazer alma”, ou seja, a alma se faz na experiência.
Portanto, a psicologia possibilita a expressão daquilo que se encontra inconsciente em nós. No presente caso, a força arquetípica de Hécate traz o sagrado para o olhar para os lixos e o que subjaz no nosso subterrâneo psíquico. E a Arteterapia, por sua vez, vem reforçar essa expressão, dando forma e corpo para o aspecto inconsciente. Aquilo que antes era nebuloso e até mesmo desagradável tem agora uma imagem, imagem material e palpável. Imagem que fala e nos espelha sobre nós mesmos.
É a transformação dos escombros em arte!    


 Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências Bibliográficas:
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, Al. Dicionário de Símbolos.RJ: José Olympio, 2009. 
HILLMAN, J. O sonho e o mundo das trevas. Petropólis, RJ: Vozes, 2013

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Sobre a autora: Laila Alves de Souza



Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos. 

segunda-feira, 18 de junho de 2018

FAZER ARTE É COISA SÉRIA




Por Valéria Diniz - RJ
valdiniz.td@gmail.com
Instagram @valeriadiniz50

Olhos grudados no tablet, dedinhos ágeis passam as fases de algum jogo, ouvidos atentos ao discurso preocupado dos pais. A escola encaminhou aos “doutores” entendidos de crianças. Laudos, papéis, receitas, avaliações são apresentados a mim. Espanto-me com a quantidade de papel que acompanha  a história de Viny, 8 anos de idade.
Não gosta da escola, tem dificuldades de aprendizado, não tem amigos porque é agressivo. Larga tudo que começa. O Inglês, o Judô, a Natação. Nem ao “play” ele vai.
Ouço, compreendo e pergunto:
- Quando é que ele brinca?
É nesse momento que sinto aqueles olhinhos desgrudarem do jogo e rapidamente me encontram.

Sempre que ouço expressões do tipo; “fulaninho é muito arteiro!” ou “essa criança só sabe fazer arte!” me surpreendo com o tom de desaprovação. É como se fosse algo proibido e feio.
Mas o que é “fazer arte”?

Arte, do latim “Ars”, significa técnica e/ou habilidade.
Fazer (transitivo direto) - Produzir através de determinada ação, realizar.

Logo:
Fazer arte - Produzir habilidades através da ação.

Fazendo arte, aprende-se do corpo, dos limites, ganha e desenvolve habilidades.
Fazendo arte, expressa-se emoções mesmo antes de saber falar.
Fazendo arte, conhece de si, dos outros e do meio.
Fazer arte é o meio disponível onde a criança encontra uma forma de entender esse mundo e esses adultos tão impossíveis, contraditórios e estranhos.

Criança não brinca apena para se divertir. Brinca para entender. Faz arte para desenvolver seu potencial e habilidades importantes e necessárias para a vida. E, que fique entendido, brincar e fazer arte é muito diferente de ficar preso por horas em alguma tela luminosa retangular.

- Então, vamos brincar Viny?
Ao nosso redor estão caixas de jogos, bonecos de todo os tipos, monstros, heróis, princesas, panelas. Pincéis, tintas, lápis coloridos.
Meu convite é recusado.
A tela luminosa se apresenta menos assustadora. Bloqueia o contato, impede que tenha novas experiências.
Permito que ele traga o tablet para o atendimento e que use como quiser.
Uma hora de encontro com alguém que me desdenha, menospreza e troca monossílabos.
Revejo as teorias e técnicas.
Faço contato com minha impotência e frustração. 
... 
- Hoje quero te propor um jogo.
Explico as regras, mostro, dou exemplos. Ganho nova recusa. E outra e mais algumas.
Olho para aquele menino com um mundo de possibilidades ao seu redor, mas que decide ficar preso em sua confortável missão de passar fases e ganhar bônus apenas mexendo os dedos.
Busco ajuda em minha curiosa criança interior que ainda se encanta diante de coloridas tintas.
Sento no chão e começo a pintar com os dedos. Surgem flores, borboletas, figuras abstratas.
Vamos ver quem faz coisas mais interessantes?  Se ele é rápido no jogo, sou potente com as tintas. Agora é guerra!!
- “Você está sujando a mão”.
- É bom!

E Viny foi fazendo sua arte, foi descobrindo.
Aprendeu que jogos (qualquer um que não seja uma tela, varetas, pega-pega, esconde-esconde, dentre inúmeras possibilidades) implicam em perder ou ganhar. Que tem dias e momentos de perdas e ganhos. Que regras precisam ser cumpridas. É gratificante ganhar, é frustrante perder. Mas, que bom mesmo é quando a “gente empata”!


Com cola, tesoura, recortes, escolhas e ajustes percebeu que limites servem para respeitar, a si e aos outros. Descobriu que podemos nos expressar através das cores. Que nem sempre conseguimos controlar, que borramos, que erramos. Que se ficar difícil é preciso tentar e tentar de novo. Mas que se “prestar atenção dá mais certinho”!

Com argila criou monstros e destruiu e recriou com novos poderes. E foi entendendo que os monstros podiam ser “até legais”.  Já não precisava mais agredir os colegas e podia fazer bons amigos. Nos desenhos foi sabendo de si. Que era um menino curioso, inteligente, criativo, bonito. Um “cara bom”!

Agora está em nova “fase”. Resolveu desmontar alguns objetos de sua casa. Relógios, carrinhos, liquidificador porque quer saber como “as coisas funcionam”. E sabendo das coisas vai entendendo desse mundo que se apresenta diante dele com imensas possibilidades para além de uma tela virtual.

Eu também sigo tentando entender de mim e do mundo através da minha própria arte. 

Então, vamos fazer arte?!

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Sobre a autora: Valéria Diniz




Psicóloga 
Gestalt terapeuta
Mestra em Saúde Mental

segunda-feira, 11 de junho de 2018

A PINTURA NA PRÁTICA DA ARTETERAPIA: PROPRIEDADES E APLICABILIDADES



Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com

A partir das perguntas trazidas por arteterapeutas colegas, alunos e supervisionandos, tenho me dedicado à “Série: Arteterapia Clínica”, encontros aos quais estudamos sobre a prática da Arteterapia em atendimentos individuais. Estes encontros têm se configurado em um ciclo de palestras em que estudamos embasamentos teóricos diversos, no campo “psi” e teorias da arte, as propriedades e especificidades da Arteterapia como procedimento terapêutico e estudo de casos clínicos. Penso que o aprofundamento deste estudo para o arteterapeuta que intenta trabalhar com a modalidade clínica, seja estrutural, pois:

“... o refinamento para a escuta clínica arteterapêutica é algo que é construído com o tempo de estudo e prática, pois se difere das modalidades semi-estruturada ou estruturada, típicas de vivências pontuais ou propostas breves, oferecidas principalmente para grupos: aqui, parte do arteterapeuta um disparador inicial para que o paciente/cliente projete de si e crie a partir deste ‘estímulo externo’. Na clínica, o arteterapeuta recebe um paciente, ouve a demanda daquele sujeito e a partir desta escuta aciona algum material para oferece-lo, sendo este um facilitador expressivo e mobilizador de atos criativos, na arte e na vida.” (MORAES) 

Neste sentido, o manejo consciente dos materiais se faz como a espinha dorsal do ofício do arteterapeuta: cabe a ele a escuta do seu paciente/cliente, pois este já pede intuitivamente o material que lhe será facilitador expressivo e mobilizador do ato de criar em um sentido amplo. Assim, o arteterapeuta promoverá o encontro entre o sujeito que fala e o material pertinente, e através deste encontro ele seguirá seu caminho.

Em textos anteriores deste blog, comecei a publicar fragmentos deste ciclo de palestras para potencializar o compartilhamento deste conteúdo para aqueles que estão longe geograficamente, mas que tenham o desejo de estudar conosco. São eles: “Série Arteterapia Clínica: o arteterapeuta como promotor de encontros” CLIQUE AQUI e “A colagem na clínica da Arteterapia: propriedades e aplicabilidades” CLIQUE AQUI

No texto de hoje, a protagonista é a pintura, linguagem da arte tão próxima de nós e amplamente utilizada como técnica expressiva no setting arteterapêutico. Entretanto, mesmo tão presente em nosso cotidiano, cabe a reflexão sobre variados aspectos que a compõem como material em Arteterapia. 

Primeiramente, cabe ressaltar que a pintura pode ser utilizada como estímulo projetivo quando lançamos mão de um infindável acervo produzido por artistas ao longo da história. Tomando como princípio que os artistas possuem o dom de mergulhar nas funduras do inconsciente individual e coletivo, e traduzir na linguagem de seu tempo dando forma aos conteúdos mais profundamente humanos, naturalmente estas imagens farão eco ao fruidor, que os reconhecerá. Assim o arteterapeuta poderá compor um repertório de obras de grandes artistas que entenda que dialogará com questões pertinentes em sua clínica. Em meu repertório pessoal conto com imagens de René Magritte, Salvador Dali, Frida Kahlo, Edward Hopper e outros artistas aos quais apresento para meu paciente quando identifico uma ligação entre sua fala e uma obra artística, com o intuito de aquecer sua associação livre e elaborações. Esta é a maneira que utilizamos a pintura como projeção na clínica da Arteterapia. 

Como processo, a oferta das tintas ao paciente/cliente, possui suas propriedades e aplicabilidades aos quais algumas delas abordarei a seguir: 

a) As propriedades

A pintura é uma técnica diluidora, de flexibilidade e não controle. No diálogo com a imagem coloca o autor em relação prioritariamente com a cor em detrimento da forma.

Todas as técnicas expressivas estimulam as quatro funções psíquicas descritas por Jung, mas naturalmente em cada uma delas, uma função específica se torna protagonista. Na experiência da pintura, a função principal é a Função Sentimento.

Na relação com a cor o autor é acessado em seus sentimentos, emoções, sensações, afetos. Uma grande referência teórica que aqui nos embasa é a literatura de Kandinsky, pois segundo ele, cada cor tem uma potência, uma vibração e provoca um impacto específico. Para ele, as cores têm a capacidade de agir como um estímulo sensorial e psíquico e são um “caminho que serve para atingir a alma.” (KANDINSKY)

No manejo com o material, associado a cor, o autor entra em contato com o elemento água, que proporcionará justamente a “expansão” do traço, a flexibilidade, a diluição e o não controle, quanto mais aguada for a tinta.  

b) O processo: verbos, ações e movimentos externos/internos

Colocar o sujeito na experiência com o material significa colocá-lo para agir sobre suas questões. Desta forma é interessante ao arteterapeuta atentar-se para os “verbos” ou as ações que cada material proporcionará externa e internamente em seu paciente/cliente.

No processo da pintura, em relação à cor, as ações provocadas estão no campo do sentir, perceber, sensibilizar,  expressar. Em relação à água, são estimulados os movimentos para umedecer, lubrificar, azeitar, amolecer, diluir, flexibilizar, expandir, dissolver, fluir, “transbordar”, abrir mão do controle.

c) Os potenciais

c.1) Perfis de pacientes/queixas, palavras chave:

Promover o encontro com a pintura é interessante para pacientes/clientes que apresentam a necessidade e busca de expressão de sentimentos, sensações, conteúdos talvez tão profundos que ainda não possuem nome ou possibilidade de expressão verbal. As cores associadas aos sentimentos e os movimentos corporais provocados por eles, servirão como linguagem expressiva. 

Para aqueles que demonstram seus excessos, misturas, espalhamentos  ou transbordamentos, escoar este conteúdo para uma superfície externa, seja ela um papel, tela ou outros, promove um contorno, um tamanho. Este processo de catarse inicial, promove uma “diferenciação”, a visualização destes conteúdos como se fosse um terceiro e como um espelho encaminha-os para a conscientização e elaboração.

Já os que apresentam enrijecimentos diversos, mas que a dinâmica fluida da vida convoca a capacidade de flexibilizar ou lidar com o não controle, o diálogo com as tintas promove a tolerância com as surpresas de traços que escapam das mãos e fogem daqueles idealizados racionalmente.   

Em relação ao elemento água, podemos também explorá-la metaforicamente,  em diálogo com aquilo que é trazido como “seco” ou “ressecado” - objetivo e/ou subjetivo, literal e/ou simbólico, corporal e/ou psíquico – apresentando um material que traz em seu processo o “aguar”.  

c.2) Resistência

A prática nos mostra que a proposta da pintura apresenta alguma resistência quando não há intimidade com o material e uma autoexigência de fazer uma imagem figurativa/símbolo. De fato, originalmente a pintura figurativa demanda alguma técnica para que a imagem se forme. E como arteterapeuta não tenho o procedimento de deslegitimar quando um paciente/cliente demonstra incômodo com sua criação, quando não se trata de resistência ao conteúdo acessado, mas sim pela falta de intimidade com o material. 

Penso que esta sensação deve ser acolhida e compreendida no sentido de que quando recebemos aqueles que chamo de “pacientes leigos”, recebemos sujeitos que ainda “não aprenderam a falar” naquela linguagem (outra que não é a verbal). Visualizo estes sujeitos como uma criança que ainda está em processo de formação de seu vocabulário. Não devemos esperar dela uma associação livre, mas sim acolher seus sentimentos e investir para que ela, passo a passo, se instrumentalize para se expressar. 

Expressar-se através da arte, para quem não possui este histórico, se mostra como um processo de “alfabetização” para uma nova gramática. E este é um caminho construído na companhia do arteterapeuta que orientará o autor no que for necessário. Naturalmente, o arteterapeuta não é um professor de artes, porém faz parte do seu ofício instrumentalizar seu paciente/cliente sobre os materiais, encaminhando-o para a autonomia criativa na expressão por outras linguagens. 

Neste contexto, um caminho eficaz é apresentar o que os surrealistas chamavam de automatismo ou do que Susan Bello chama de Pintura Espontânea: 

“... relaxar a mente crítica racional e pintar corajosamente o que aparecer na mente inconsciente. Na Pintura Espontânea, em vez de usarmos nossos olhos sensoriais para copiar e reproduzir o mundo exterior, expressamos nossa visão interior... A psique fará o trabalho. Nossa mente racional somente tem de suspender seu domínio...” (BELLO) 

Além destas, mais uma vez tomo como referência a literatura de Kandinsky, que tanto teorizou sobre o caminho para a abstração com o intuito de expressar “emoções puras” através das cores e das formas. (Ver texto “Contribuições de Kandinsky ao arteterapeuta” CLIQUE AQUI). Apresentar as imagens abstratas para o autor e estimulá-lo que utilize destas na busca da expressão de seus sentimentos, mostra-se um recurso muito potente na clínica da Arteterapia. 

Quando um “paciente leigo” encontra a Arteterapia, recorrentemente diz a célebre frase: “mas eu não sei desenhar, eu só faço bonequinhos de palitinhos...!”. Penso que o material de desenho – que por definição proporciona maior controle do traço – já se demonstra desafiador para aquele sujeito na produção de uma imagem figurativa, assim as tintas se mostrarão mais desconfortáveis ainda para aqueles que não possuem uma intimidade com a técnica da pintura. A prática nos mostra que neste contexto, a introdução da pintura abstrata inspirada a partir da expressão das emoções, associando cores, movimentos e formas, se dá como uma excelente porta de entrada para a pintura pelo sujeito que cria dentro do setting arteterapêutico. 

Conclusão:

“A forma e a cor harmonizam-se para criar o quadro, segundo o Princípio da Necessidade Interior. Nasce então a obra de arte autêntica, a composição entra em contato ‘eficaz’ com a alma humana, estabelece-se a ressonância” (SERS in KANDINSKY)
A partir destas considerações, podemos concluir que a linguagem da pintura na clínica da Arteterapia se apresenta como um processo menos racional, mais espontâneo, ao qual será encaminhado para a expressão dos sentimentos e emoções mais puros daquele que deseja se expressar. Ao arteterapeuta cabe promover o encontro entre o autor e os materiais de pintura quando entender a partir de sua escuta, que as tintas serão o material mais facilitador para esta profunda expressão. 
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências Bibliográficas: 
BELLO, Susan PhD. Pintando sua alma: Método de desenvolvimento da personalidade criativa. Ed Wak, Rio de Janeiro, 2007.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. 
MORAES, Eliana. SÉRIE ARTETERAPIA CLÍNICA: O ARTETERAPEUTA, UM PROMOTOR DE ENCONTROS. Disponível em http://nao-palavra.blogspot.com/20
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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga. 

Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte. 

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".


Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.
Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 4 de junho de 2018

QUEM NUNCA... DIÁLOGOS ENTRE A SINCRONICIDADE E A ARTETERAPIA



Por Andréa Goulart de Carvalho – BH/MG
goulart17@hotmail.com

Quem nunca...

... Pensou em algo e a “coisa” se materializou! Sem uma causa, sem que alguém ou alguma circunstância tivesse forçado o acontecimento. 

Um medo de insetos, relatado de dia e, de noite, uma mariposa enorme está dentro do quarto de dormir. De onde surgiu? Verdadeiro e, neste caso, terrível mistério! 

Quem nunca sentiu saudades de alguém e, ao dobrar uma esquina, lá está a pessoa, materializada! Assim, do nada! Há alguns dias, no trajeto para um encontro, passei por um local e lembrei de um estilista de bolsas de couro que tem um ateliê ali por perto. Pensamento correu pela história de vida dele e passou. Minutos depois, a amiga com quem me encontraria estava com uma das criações do estilista. 

Sim, nem só mariposas acontecem! Graças a Deus!

Todos vivenciamos acasos corriqueiros e sem importância, não é? Afinal, quem liga para uma mariposa num canto do quarto?... Eu ligo! E a bolsa da amiga, coincidência, uai! Será? Há situações que ultrapassam a esfera doméstica, as coisinhas do dia-a-dia como bolsas e pessoas surgidas do nada. Acontecimentos fora da esfera individual, que vêm através de um pensamento, insights, visões, pressentimos ou em sonhos, como um acidente de avião, tão real e terrível e que o noticiário da manhã mostra a cena exata do sonho. Muita calma nessa hora! 

Fenômenos acausais, complexos, profundos, significativos, mas que têm explicação

Esses acontecimentos são os Fenômenos de Sincronicidade, um conceito empírico, elaborado à partir dos estudos complexos e profundos de Carl Gustav Jung, sobre fatos relacionados entre si por significados, e não por terem sido causados ou terem acontecido casualmente. Jung disse: 

...“a ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal e exige um outro princípio de explicação.” (JUNG, OC8/3, § 819). 

Tais fenômenos não devem ser avaliados de forma simplista. Segundo Jung:

“...para captar de um modo ou de outro estes acontecimentos únicos ou raros, parece que dependemos de descrições ‘únicas’ e individuais.” (JUNG, OC8/3, § 821)

Jung, desde muito cedo em sua carreira, estudava circunstâncias interessantes que ocorriam nos seus atendimentos. Num atendimento em especial, em meados de 1920, enquanto a paciente relatava seu sonho com um escaravelho, um inseto bateu na vidraça do consultório. Jung abriu a janela e o apanhou, em pleno voo e o mostrou à paciente. A incrível semelhança do inseto àquele descrito por ela ressaltou que o fato ocorrido envolvia um elemento diferente, muito além do acaso. Haviam vivenciado um fenômeno de sincronicidade. 

A partir deste fato Jung aprofundou a pesquisa nos fenômenos sincronísticos. Estudou a física clássica e a moderna, a casualidade, a causalidade e a acausalidade dos fatos raros, mas possíveis e reais. Buscou entendimento dos conceitos de serialidade, imitação, atração e inércia, simultaneidade, estatística, probabilidade e finalidades para explicar os acontecimentos, aparentemente casuais. 

No estudo de culturas diversas e de épocas distintas, Jung verificou a  existência de uma ligação entre todas as coisas como se fosse numa grande rede de correspondências. A ideia da existência de uma sabedoria maior e superior à alma humana e a necessidade de retomada de uma visão transcendente sobre os acontecimentos, foi também visualizada por Jung,  para que um sentido mais amplo, mais humano e menos científico, pudesse tentar explicar os fenômenos da psique, as sincronicidades.

Os peixes

A complexidade do tema adiou, por muitos anos, a publicação de estudos sobre a sincronicidade. Em 1949 Jung desenvolvia a simbologia do peixe como símbolo do inconsciente, quando uma série de sete fatos relacionados a peixes, ocorridos nos dias 1o e 2 de abril deste mesmo ano, fez com que ele retomasse o estudo dos eventos sincronísticos à luz da psicologia profunda associada à física moderna. Desta forma pôde evidenciar que o inconsciente coletivo e os arquétipos, conceitos desenvolvidos por ele, têm total participação nos fenômenos de sincronicidade. 

Jung relatou os sete fatos, inicialmente denominados coincidências significativas, uma organização acausal, com caráter numinoso, ou seja, sagradosobrenaturalmisterioso:

1- naquele dia teriam peixe para o almoço;  
2- havia o costume do peixe de 1o de abril, brincadeira que deu origem ao Dia da Mentira em que eram colados desenhos de peixes nas costas de pessoas e eram chamadas de “os peixes de abril”;
3- uma anotação feita por ele, pela manhã - “todo homem é peixe pela metade, na parte de baixo”; 
4- uma paciente ter-lhe mostrado pinturas, feitas por ela, de figuras de peixes; 
5- outra paciente relata seu sonho com peixes; 
6- outras pessoas mostraram bordados de peixes;
7- Jung encontrou um peixe morto na mureta do lago de Zurique.

A sincronicidade acontece quando dois fatos ou mais, sem ligação causal, significativos para quem os vivencia, não necessariamente acontecendo ao mesmo tempo, no mesmo lugar ou repetidamente. 
Jung afirma que a sincronicidade complementa a tríade da física clássica - tempo/espaço/causa, tornando-a uma tétrada ou quatérnio, formando o princípio da totalidade, mais coerente com a física moderna e as leis da relatividade.  Afirma também que as coincidências significativas acontecem quando um arquétipo é constelado em um padrão dinâmico e que se manifestam mediante três categorias: 

a) estado psíquico associado a evento externo e simultâneo (ex.: escaravelho);
b) estado psíquico associado a evento externo e simultâneo, mas sem ligação no espaço (ex.: encontrar uma pessoa/ bolsa);
c) estado psíquico associado a evento externo sem ligação no tempo (ex.: sonho com o acidente  de avião).

Arquétipo e significado

O arquétipo tem uma forma própria de manifestação, numa ordenação acausal, por trás do fenômeno, sem controle por parte da pessoa que o vivencia e está mostrando algo sobre esta pessoa que experimenta o fato.
O significado do fenômeno de  sincronicidade é único e pessoal. É um portal para uma realidade particular. Uma chave para perceber significados ao transpor este portal. Como as imagens e sensações permanecem e/ou modificam seu entorno. Suas atitudes e a sua forma de se comunicar. 

Como poderia a pessoa que sonhou com o acidente de avião criar as imagens ou entender sobre ele, antes de o fato acontecer? De onde surgiu a imagem, a visão no sonho? Qual o significado no contato, quase imediato, de uma pessoa com um dos artigos de um estilista lembrado aleatoriamente? Qual a probabilidade de isto acontecer com alguém e qual seria o arquétipo constelado? Como tudo isto atua na vida de uma pessoa?

Arteterapia,  sincronicidade,  arquétipo



Existem muitas formas de compreender e tentar responder às inúmeras questões que surgem depois da vivência de um evento sincronístico.  Devemos porém, permitir que nossos conteúdos sejam assimilados e não necessariamente entendidos. As respostas vêm da emoção mais do que da razão.
A Arteterapia tem se apresentado como uma das mais eficazes maneiras de acessar o inconsciente e obter respostas e elaborar conteúdos psíquicos, de forma lúdica, prazerosa e profunda, tendo a arte como ferramenta. 
No setting ou fora dele é muito provável que o fenômeno de sincronicidade se apresente. De certa forma já o esperamos antes, durante ou depois do atendimento como motivo ou parte da elaboração dos conteúdos.
Há pouco tempo, num atendimento a um grupo formado por 4 mulheres, foi pedido que se apresentassem como gostariam de serem reconhecidas. Foi usada a técnica da Imaginação Ativa, um dos muitos recursos de abordagens terapêuticas, utilizada por Jung e sistematizada por Robert Johnson. Coincidentemente todas as mulheres se descreveram como árvores, com as dores e as delícias de serem árvores grandes ou pequenas, com flores e frutos ou não. Uma se apresentou como uma mangueira. Outras duas como arbustos com flores e uma delas se apresentou como um loureiro, uma arvorezinha franzina, inicialmente sem grandes expectativas para elaboração de conteúdos da participante. 
Porém, o loureiro não se tratava de imaginação e sim de uma lembrança, uma árvore real que fazia parte das memórias de sua infância, passada no quintal da casa de uma tia querida, chamada Apolônia.  Apesar da vívida lembrança do vasto quintal, com flores e árvores de espécies variadas, grandes e maravilhosas, o loureiro era a imagem que teimava em representá-la na atividade solicitada. 
Uai, gente!
Durante a sessão sentiu uma imensa saudade de si mesma e um forte ardor no estômago. O mal estar perdurou e a obrigou a ingerir um medicamento. Costumava tomar daquele tipo de remédio, mas pela primeira vez teve necessidade dar uma olhadinha na bula. Com surpresa, leu que o remédio era feito de louro. Uai, gente!!  
Mais tarde, a viu uma postagem na internet uma reportagem sobre o louro e suas propriedades curativas e de harmonização energética em ambientes e corporais. A noite, ao assistir a uma aula de mitologia, o tema estudado foi o mito de Dafne, uma ninfa transformada em um loureiro para fugir do deus Apolo.  Eu, hein!! Como assim? O remédio, os nomes e o mito!
Mito pessoal revelado! E Agora?
Amplificação do símbolo é necessária ao processo  e com Arteterapia para ficar melhor, mais bonito e mais gostoso!  Tudo mudou de figura e um sentido incrível começou a transparecer, num descortinar de véus. Sincronicidades numa sequência avassaladora, logo após o atendimento arteterapêutico, com sensações físicas, emocionais e significativas para a pessoa que as vivenciou, possibilitando um diálogo intenso com conteúdos profundos e o reconhecimento do mito pessoal, de extrema importância para o desenvolvimento do processo de individuação que se iniciara. Muitos trabalhos de desenho, pinturas e SoulCollage® foram elaborados após a vivência.
Sabemos que teoria e embasamento do conhecimento são importantes para a compreensão do nosso universo pessoal e o coletivo e, podendo associá-lo ao fazer artístico da Arteterapia, coagulando as imagens vindas das vivências, dão ainda mais sentido às nossas vidas, possibilitando o autoconhecimento e a individuação. 
Desta forma, convido a todos para nos entregarmos ao cotidiano com mais atenção aos sinais. Convido a percebermos o nosso entorno e voltarmos para conversar mais sobre as  sincronicidades e a Arteterapia com ferramentas que ajudam a trazer nossos conteúdos à tona, com a beleza da arte e a sabedoria da psicologia analítica.
Até breve, com a Graça de Deus e das sincronicidades!
Referência Bibliográfica: 
JUNG,C.G. OC., Sincronicidade 8/3, 21a. Petrópolis: Vozes, 2014.
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Sobre a autora: Andréa Goulart de Carvalho


Bacharel em Desenho e Gravura pela EBA/UFMG; 
Arteterapeuta - AMART 107/0112, afiliada a UBAAT. 
Especialista em Psicologia Analítica.
Facilitadora de SoulCollage®/2015; Artista Plástica; 
Atendimento arteterapêutico individual e em grupos no AME – Arteterapia
Ministrante de curso introdutório de SoulCollage® e aulas de desenho nos Ateliês de Artes AGC e AREA