segunda-feira, 27 de abril de 2020

SEGUNDO ENCONTRO COM LA FONTAINE


Por Beatriz Coelho
biacoelho017@gmail.com

Escolhemos para o nosso segundo encontro com La Fontaine duas fábulas que dialogam com os tempos atuais que vivemos: a epidemia trazida pelo Corona Vírus. Pinçamos no repertório do fabulista genial: Os Animais doentes e a Peste (Livro VII, fábula 1), publicada na 2ª  Coletânea de 1678; e A Raposa que perdeu a cauda, (Livro V, fábula 5), que integra a 1a  coletânea de 1668.

Antes, porém, algumas palavrinhas. Encontrei, em minhas anotações avulsas, algo que me falava do Belo sec. XV, (da primeira metade da Renascença francesa, de 1450 a 1560), época do rei François Ier, - o que acolheu Leonardo da Vinci em seu castelo como a um pai -. (Tenho fascinação por esta belíssima estória real passada no Château d’Amboise).  E, esclarecia ainda a nota, que a segunda metade do sec. XVI, na França, corresponde ao fim dos sonhos da Renascença: caem as utopias: guerras civis, guerras religiosas, período mais sombrio. Neste registro avulso, infelizmente sem a referência, transcrevi ainda em letras garrafais: PERMANECE UMA ESPERANÇA HUMANISTA; A ALEGRIA DE VIVER PELO PRESTÍGIO DA CULTURA INTELECTUAL E ARTÍSTICA.

Acendamos as luzes da Esperança, pois.

Desde a Primeira coletânea, L.F. dá o tom da sua obra: “Uma ampla comédia em cem atos diversos, cujo palco é o Universo” (Livro V, fábula 1).  Nosso Autor não é escravo nem de suas fontes, nem da “moral” que se espera encontrar numa fábula. Na coleção de 1668, as fábulas  se inspiram de Esopo e Fedro. Mas, como ele mesmo diz não possuir o gênio do primeiro nem a concisão do segundo , procurou  pelo menos, torná-las mais leves, porque o objetivo principal do conto é agradar. Ensinar, mas com leveza. L.F.  “apanha” sua matéria prima onde quer que ela se encontre, desde que o emocione. Ela pode  se esconder  numa farsa renascentista, numa elegia antiga, num relato ou numa notícia curiosa.

L.F. não julga: fazemos o que queremos, o que podemos. Ele é, para nós, como um irmão mais velho, observa o escritor Orsenna. O próprio L.F. é vítima dos defeitos que aponta. Sua virtude inatacável é a sinceridade e a fidelidade aos amigos verdadeiros.

Um observador já comentou que se reuníssemos todas as fábulas de L.F. encontraríamos o ser humano. Ele se debruça sobre nossas falhas, mas é extremamente delicado quando trata da nossa “felicidade” porque é coisa fugidia.

Escolhi também, para a reflexão da nossa crise atual, A Raposa que perdeu a cauda, porque trata da dificuldade de mudar hábitos e mentalidades, tema  urgente neste nosso primeiro quarto do século XXI.

Às fábulas!


           Os Animais doentes e a peste
Existe um mal que a todos causa pavor;
Mal que o próprio céu, ao se encher de furor,
Criou para castigar a terra: a peste;
O próprio nome arrepia!
Capaz de enriquecer a Morte em um dia!
Ela declarou guerra aos Animais do Leste.
Nem todos morrem, mas todos são surpreendidos;
Não lutam mais, seus passos estão perdidos;
O céu apagou a lua
E a vida ali vai à míngua...
Nenhum banquete excitava os animais:
Lobo e raposa já não espreitam mais
A boa presa dos matagais;
Os rouxinóis deixam os bosques e os roseirais;
Fim do amor, fim da alegria.
O leão diz então com a sua sabedoria:
Meus caros amigos, o céu nos enviou
A angústia por causa dos nossos pecados;
Declaremo-nos culpados
E que seja sacrificado o que mais pecou;
Os céus talvez nos libertem desta sina;
A história nos ensina
Que para as terríveis calamidades
Só obrigações aplacam as divindades
E assim, detêm o ímpeto devastador;
É preciso, pois, usar de muito rigor
No exame das consciências.
O próprio rei, para se tornar exemplar,
Abriu as confissões: _Para minha gula aplacar,
Devorei muitos carneiros nas cercanias.
Quê me tinham feito? Nada.
Houve vezes que de outros crimes fui autor,
Chegando a comer o pastor.
Me imolo em nome de uma vida partilhada.
Todos devem proceder como eu
Para que se leia: Aqui, a justiça venceu!
Que morra o mais culpado! Assim, se fará a lei._
Majestade, disse a raposa, sois um rei
Muito bom! Vossos escrúpulos revelam
Vossa delicadeza! Carneiro é “horrível”!
Comer espécie assim desprezível
É pecado? Claro que não.
Foi uma honra serem comidos por vós.
E, convenhamos, o pastor era um algoz!
Quem mandou sonhar
Com impérios para os Animais dominar?
Foi muito aplaudida, sem mais pudores,
Pelo auditório de bajuladores.
Em seguida, falaram as outras potências:
O tigre, o urso, todas as excelências;
Todos achavam banais seus pecadinhos;
Não passavam de uns santinhos!
Veio o burro: _Lembro que uma tardinha
Quando pelos campos dos padres passava,
A fome, a ocasião, a grama verdinha
E o empurrão de algum diabo que pastava,
Cortei o capim com os dentes, meus recursos:
Sinceramente, eu não tinha este direito.
Ouviu-se então: _Pega ladrão! Peguem o sujeito!
Um lobo, nada cristão, veio com discursos:
Provou que era preciso sacrificar o animal.
O peludo era culpado por todo o mal.
Comer grama de outro é um crime cruel!
Só a morte expia o ato abominável!
Fizeram-no ver muito bem tal verdade:

Para os poderosos, a impunidade.
Para o povo, a arbitrariedade.

                                   
               
*
                     A Raposa que perdeu a cauda
A Raposa refinada,
Especialista em frangos e coelhada,
Foi de longe pressentida
E finalmente apanhada.
Teve sorte e salvou-se na escapada;
Porém, perdeu parte da cauda comprida.
Está livre; mas com a cauda diminuída.
Recorreu então à velha habilidade:
Um dia, em que a raposada estava reunida
Propôs: _Nossa cauda não traz comodidade;
Inútil, se arrasta na terra enlameada;
De quê nos serve? Precisamos cortá-la;
Reflitam e cheguem a uma conclusão. _                
Sua ideia é boa, diz alguém na sala;
Por favor, vire de costas para a comissão.
Ouviu-se depois tremenda gritaria:
A então reduzida não foi mais ouvida.
Cortar a cauda era proposta vencida.
A imagem não mudaria[1].



[1] É mais fácil desviar o curso de um rio, do que modificar velhos hábitos. Ou: Esperto não dá volta em outro esperto. (N.T.).

Bibliografia:

Cf. o texto Reencontrando La Fontaine.

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Sobre a autora: Beatriz Coelho



Sou mesmo é multifacetada.
Em Paris, fiz mestrado em Sociologia.
Lá, me casei e tive a primeira cria.
De volta ao Brasil, a Vida fez arrelia.
    Abandonei a Sociologia.
Consacrei-me aos amores da minha família.
Mas as letrinhas faziam uma falta danada.
Estava meio despetalada.
Escrevi Cadernos do Silêncio com vírgulas
E de La Fontaine traduzi as Fábulas. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

DISTORÇÕES COGNITIVAS E A ARTETERAPIA


Por Juliana Mello – RJ
entrelinhas.artepsi@gmail.com


A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), como mencionei em textos anteriores, trabalha com o conceito de que os pensamentos influenciam nossas emoções e comportamentos. Quando nossos pensamentos estão disfuncionais, ficamos paralisados diante das situações e/ou nos comportamos de forma inadequada, nos afastando dos objetivos desejados. O que acontece então, é que acabamos em um ciclo vicioso, sem entender o motivo pelo qual não conseguimos chegar aonde queremos. Esses pensamentos são automáticos e nos guiam repetidamente em uma mesma direção.

Esses pensamentos disfuncionais criam ideias distorcidas sobre nós mesmos, os outros e as circunstâncias, o que é conhecido como Distorção Cognitiva, causando prejuízos emocionais e comportamentais. Porém, os pensamentos são só pensamentos e quando identificamos as distorções cognitivas, podemos então buscar evidencias que comprovem ou não esses pensamentos, nos auxiliando a flexibilizar nossa percepção sobre uma situação. A ideia inicial não é fazer com que o pensamento desapareça, mas sim criarmos outras perspectivas de se pensar algo.

A Distorção Cognitiva é um mecanismo automático que nossa mente se utiliza para nos fazer acreditar que um pensamento disfuncional é verdadeiro, real. Ela aparece de forma inconsciente (Cognitivo) e nos faz agir de acordo consigo. De acordo com Leahy e colaboradores (2013):

“Os pensamentos automáticos podem ser categorizados como distorções ou vieses [ ]. Esses pensamentos são conectados às regras condicionais de pressupostos [ ].  Além disso, os pressupostos estão ligados a crenças nucleares ou esquemas pessoais que o indivíduo tem sobre si mesmo ou sobre os outros [ ].” (LEAHY, 2013)

Ao identificarmos as distorções, podemos refutá-las e alcançar a reestruturação cognitiva. Existem várias distorções, e todos nós a temos em algum nível. Como exemplo temos: Atenção Seletiva (foco somente no problema), Pensamento Dicotômico (tudo ou nada, preto ou branco), Leitura mental (saber o que o outro está pensando e vice-versa), Desqualificação dos aspectos positivos (as realizações positivas não têm importância, são triviais), entre outras.

Como a distorção cognitiva é automática, e muitas vezes nem sabemos o que estamos pensando, podemos utilizar de técnicas da Arteterapia para auxiliar nessa tomada de consciência do que está disfuncional. Através de materiais lúdicos, podemos trazer nossos pensamentos para o concreto, dar forma para algo que está no campo das ideias.


Casos clínicos:

G, 27 anos, trabalha na área de beleza, chegou ao consultório com queixa sobre as relações interpessoais (amizade e família). Durante o processo, chegamos a ideias sobre a autoestima. Para realizarmos uma atividade para trabalhar este fator, propus a música “Eu, caçador de mim”, do Milton Nascimento, para que ao escutá-la, fizesse linhas ao acaso, com os olhos fechados. Posteriormente, pedi que procurasse imagens nas linhas, o que foi relatado como: “muito difícil, não consigo encontrar algo concreto no abstrato”. É possível destacar a Distorção Cognitiva “Dicotomia”, sendo reforçado posteriormente pelo surgimento do símbolo Yin-Yang, que tem as cores preto e branco. Foi realizada uma pesquisa sobre este símbolo, no qual ela encontrou como equilíbrio o cinza. Utilizamos, então, tinta preta e branca, na técnica de monotipia. O resultado foi que o preto e o branco não se misturaram. A identificação e flexibilização da Distorção ainda está em andamento.





C, 25 anos, trabalha na área de saúde, chegou ao consultório com crise de ansiedade, ao sentir melhora, encerrou os atendimentos. Recentemente retornou, por preocupação em ter novamente a crise. Em uma das sessões, informou que não tinha nada para relatar naquele dia, então pedi que escolhesse uma música que pudesse descrever seu momento atual. A música escolhida foi “A meta é ficar bem” – Delacruz. Foi solicitado escutar a música e fazer linhas ao acaso. Ao abrir os olhos se sentiu decepcionada, pois acreditava estar utilizando o papel inteiro e sentiu como se não conseguisse prosseguir na sua vida, pois ficava em círculos em um único local. Observamos a Distorção Cognitiva Atenção seletiva, pois o foco foi somente no problema e Desqualificação dos aspectos positivos, pois se a imagem não saiu como planejado, então nada na vida dela está funcionando, que ela nunca vai conseguir, eliminando o que ela já progrediu até o momento.


Fechamento:

No momento atual do COVID-19, o que as Distorções Cognitivas podem nos apresentar? Muitas pessoas acabam apresentando a Atenção Seletiva, focando somente no problema (falta de condições em hospitais, notícias desagradáveis, mortes) com o Catastrofismo, onde tudo que está acontecendo é insuportável e que o mundo não será capaz de passar por essa crise. Além da Adivinhação do Futuro, que as coisas só vão piorar e que não haverá solução para essa doença. Isso gera muita angústia, pode resultar em crises de ansiedade, pânico e depressão.

É importante então, se unir a família como uma forma de suporte e buscar um lado mais criativo para vivenciar a quarentena, buscando novas possibilidades, como leitura em família, contar histórias positivas sobre o passado (acontecimentos marcantes), escutar música, dançar, se for possível estudar algo que estava querendo há muito tempo. Essa pandemia nos traz a possibilidade de autoconhecimento. Entendendo que, vão existir momentos ociosos, onde não se tem vontade de fazer nada, mas que isso também faz parte desse momento que é novo para todos nós.

Bibliografia:

LEAHY, L Robert. Técnicas de Terapia Cognitiva: Manual do terapeuta. Artmed: Porto Alegre, 2006.

LEAHY, L Robert; TIRCH, Dennis; NAPOLITANO, Lisa A. Regulação Emocional em Psicoterapia. Artemed: Porto Alegre, 2013. 


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Sobre a autora: Juliana Mello



Psicóloga, Arteterapeuta e Coach
Atendimento clínico  individual e grupo om criança, adolescente, adulto e idoso.
Abordagem em Terapia Cognitivo- Comportamental e Arteterapia
Palestras e Workshop motivacionais.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

TEMPO DE CORONA VÍRUS, TEMPO DE SE REINVENTAR




Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP
leonardo.claudia@gmail.com


O mundo parou...

O mundo parou diante de um ser invisível...

O mundo parou, mas o meu mundo interno parece que acelerou...

Meu mundo interno, um chamado, uma vontade, um desejo... de ajudar...

Quarentena... significa ficarmos trancados em casa? Significa que estamos trabalhando mais do que o habitual, apenas com as tarefas domésticas? Significa período para revermos nossos conceitos? Significa usarmos novas estratégias para não enlouquecermos? O que isto significa afinal? Proteção? Esconderijo? Fuga? Aquietação? Meditação...

Tinha um texto prontinho para ser publicado aqui no blog, sobre mais um atendimento arteterapêutico com meu pai e minha tia materna, mas Degas (pintor francês que usamos como inspiração) terá que esperar. Não cabe aqui, neste momento.

E então comecei a repensar sobre muitas coisas. A primeira delas: “Como assim, vou ter que parar de ir à casa do meu pai? Ah, mas eu não quero parar de ir lá. Sem contar as sessões de arteterapia com eles, indescritíveis, divertidíssimas!”

Esse corona... Uma enxurrada de informações, pelo WhatsApp, pela televisão, que resultaram numa labirintite: isso mesmo, o mundo girando, minha cabeça girando, logo assim que eu acordava. E o lado bom disso? Uma irmã fonoaudióloga, me orientando, dando dicas para eu melhorar e... melhorei!

Estamos mudando todos os nossos comportamentos. Com a ajuda da minha outra irmã, faço ligações por vídeo no celular quando ela já retornou do seu trabalho, também farmacêutica, área da saúde, fazer o quê, né? Converso com meu pai, minha tia, com os cuidadores, que só me falam “FICA EM CASA!”.  Minha tia ri ao falar comigo no vídeo. Meu pai fala que vai morrer, dando risadas.... Estão lidando bem com a situação.

Rolou um estresse no grupo de família, quando postei que o meu marido, também farmacêutico, e em grupo de risco (pois completou 60 anos), continuava a trabalhar no centro da cidade, todos os dias, correndo o risco de se contaminar. Só o tempo me ajudou a compreender o sentimento dele, em continuar o seu serviço, essencial para a área da saúde.

Mas eu quero ajudar... você, o outro, os outros, o planeta...

Aos poucos vamos derrubando as barreiras, enfrentando nossas resistências e colocando tudo a nosso favor: os contatos no WhatsApp, por escrita, por vídeo; as vídeo conferências; as plataformas eletrônicas, o Zoom, o Google Hangouts...

Fui descobrindo que é possível fazer terapia por vídeo neste momento, oferecer experiências de arteterapia com o auxílio do celular, fazer cursos on line, participar de tudo quanto é roda de conversa, virtual, claro.

Estou aprendendo a cozinhar e até a fazer máscaras, o que está sendo uma alegria para minha irmã e minhas amigas costureiras mesmo que costurem apenas por hobby. Minha outra irmã (nossa, quantas irmãs!) me ensinou a fazer máscara só com dobradura de tecido e elástico.

A rotina mudou: tomar sol na sacada do apartamento, fazer exercícios físicos (isso ainda tá difícil), alimentação saudável, cozinhar, costurar máscaras de tecido. Para mim é uma alegria o dia que posso sair para ir ao mercado. Agora contemplo o céu azul e agradeço.
É preciso parar, respirar, priorizar, se preservar...

Eu escolhi ser farmacêutica e a vontade em ajudar se estende também agora como arteterapeuta.

Não tem como a gente não se emocionar com os amigos do grupo da Faculdade de Farmácia no Whatsaap. Uma amiga enviou um áudio onde ela contou a loucura do número de exames do corona vírus, aguardando análise no instituto, e ao mesmo tempo a sensação da escolha certa da profissão e sensação de dever cumprido. A foto por ela postada, toda paramentada foi emocionante. O relato de outras amigas que adiaram a aposentadoria quase que pressentindo este momento e o chamado para ajudar. Muitos na linha de frente, nos hospitais, nas farmácias. Ajudando de todas as formas, até mesmo um amigo oferecendo coaching gratuito para quem precisar. Sem contar os inúmeros amigos trabalhando no SUS!!!

Nessa guerra, até o momento, nenhuma baixa! Estão todos bem, familiares e amigos, no Brasil, na Itália, na Inglaterra, nos Estados Unidos... Ah, e os nossos amigos portugueses...
É, já dizia minha vizinha: “Tudo passa”, isto também vai passar. Sairemos mais fortalecidos, diferentes, conscientes, abertos.

Sorte e saúde para todos nós!

Nota: Todos que lerem esse texto, mesmo sem os seus nomes mencionados, saberão o quanto contribuíram para essa escrita. Portanto, deixo aqui o meu sincero “Muito Obrigada”!

Se você quiser ler meus textos anteriores:

Minha Origem: Itália e Japão CLIQUE AQUI
Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” CLIQUE AQUI
“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” CLIQUE AQUI


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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe





Arteterapeuta e Farmacêutica

Farmacêutica-Bioquímica graduada pela UNESP Araraquara-SP.
Especialista em Farmácia Homeopática pela USP-SP.
Especialista em Organização de Serviços em Dependência Química pela UNIFESP-SP.
Especialista em Gestão da Assistência Farmacêutica pela UFSC-Universidade Federal de Santa Catarina-SC
Especialista em Arteterapia e Criatividade pela Faculdade Vicentina-PR  
Focalizadora de Danças Circulares pela Prefeitura do Município de São Paulo-SP
Atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos.
Atuei em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.
Atendo em domicílio.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

VYGOTSKY E A IMPORTÂNCIA DO GRUPO


Por Isabel Cristina Carvalho Pires (RJ)
bel.antigin@gmail.com


No texto anterior CLIQUE AQUI, falei sobre Vygotsky e sua teoria sobre a arte. Nela, o psicólogo russo afirma a importância da arte para a mudança do psiquismo humano, pois, entre outras coisas, eleva as emoções ao nível consciente, social e universal, além de formar e desenvolver novas funções psíquicas. Esse segundo texto foi motivado por outro do blog, publicado em 09 de dezembro de 2019, chamado “O Poder do Grupo”, que me fez pensar imediatamente em Vygotsky. Já é sabido popularmente que o homem é um ser social, mas, para Vygotsky, isso significa que o indivíduo é determinado psiquicamente pelo contexto social no qual se insere.

Lev Vygotsky é o pai da psicologia social sócio-histórica, segundo a qual o ser humano é produto da história e de seu meio sócio-cultural, ao mesmo tempo que também é seu produtor. Dentro desta abordagem, segundo Barroco e Superti (2014), as características próprias do psiquismo humano resultam do processo de interação do indivíduo com o seu meio físico e social, pelo qual ele pode se apropriar das culturas das gerações precedentes e, assim, aprender a ser Homem. Desta forma, o sujeito se constitui a partir das relações sociais. Em outras palavras, sem o social não existe o individual, isto é, sem o grupo não há indivíduo, e o indivíduo também não existe fora do grupo, do social. Logo, na teoria de Vygotsky, o grupo possui importância fundamental, pois, para ele, a interação social é parte imprescindível da formação do psiquismo do indivíduo, já que é por ela que o indivíduo é determinado.

            Na teoria de Vygotsky, o conceito de mediação é importantíssimo. Segundo Rego (1995), a mediação refere-se ao processo em que existe um elemento intermediando uma relação. Nesse caso, a relação é entre o homem e seu mundo e o homem e seus pares. O elemento intermediário, ou mediador, poderá ser de duas categorias: a primeira, aquilo que Vygotsky chamava de instrumento; a segunda, o signo. O instrumento regula as ações sobre o objeto, enquanto o signo regula as ações sobre o psiquismo humano. Os instrumentos são usados para ampliar e facilitar a realização da atividade humana, ou seja, o seu trabalho (por exemplo, para caçar, o homem criou a flecha, que permite que alcance o animal à distância). Já os signos auxiliam o indivíduo nas suas atividades psíquicas, internas (por exemplo, no trânsito, a cor vermelha do semáforo é o signo que indica a ação de parar). A linguagem (verbal, escrita, artística, gestual, musical, etc), que é um sistema simbólico, organiza os signos em estruturas mentais complexas e permite a comunicação entre os indivíduos. Logo, é um mediador fundamental nas interações humanas e, portanto, na formação e no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, elevando a consciência. Assim, podemos entender a grande transformação psíquica exercida na interação entre os membros de um grupo, sobretudo se também houver a mediação da arte, o que se mostra, por exemplo, nos depoimentos do texto anteriormente citado, “O Poder do Grupo”.

Na concepção do psicólogo russo Vygotsky, o desenvolvimento do ser humano acontece pela interação constante dele com o seu contexto social, e as formas psicológicas superiores, mais sofisticadas, surgem a partir da vida social. Assim, segundo Rego (1995, p. 60-61), “o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas do grupo cultural), que indica, delimita e atribui significados à realidade”. Logo, “as conquistas individuais resultam de um processo compartilhado”. Dentro dessa perspectiva, o indivíduo se desenvolve aos poucos e sempre dentro de um contexto social; vai se diferenciando do grupo, mas é formado a partir dele  ̶  é singular, mas constituído socialmente. De acordo com Zanella et al (2007), a singularidade se forma na apropriação, pelo sujeito, dos aspectos da realidade que lhe são significativos e é representada pela forma única com que ele se apropria desses aspectos.

Assim, percebe-se que, para Vygotsky, a troca ocorrida entre indivíduos num determinado contexto social representa uma forma de crescimento e desenvolvimento psicológico, o que corrobora nossa percepção da importância do trabalho de grupo. Em arteterapia, essa importância adquire, também, outros significados. Segundo Philippini (2011), compartilhar o universo criativo num grupo arteterapêutico facilita o desbloqueio afetivo e criativo, além de ativar novas percepções sobre si e sobre o mundo, muitas vezes guardadas no inconsciente. Além disso, para ela, o espaço do grupo “funciona como um círculo sagrado, um têmeno, onde benéficas transformações podem acontecer”, entre elas a renovação do contato ancestral com a forma circular, mandálica, que coopera para a “restauração do senso de integridade, totalidade e inteireza psíquica” (PHILIPPINI, 2011, p. 73). O grupo terapêutico, segundo a autora, pode atuar como uma tribo, ou seja, um espaço em que se revivem experiências de proteção, aconchego e conforto, experimentadas no nosso primeiro grupo social, a família.

Há diversas vantagens num trabalho de grupo com objetivos terapêuticos. Liebman (2000 apud Sei e Gonçalves, 2010), enumera, de forma sintética, algumas delas, a saber: o apoio mútuo entre pessoas com necessidades semelhantes, o aprendizado através da experiência do outro e a possibilidade de experimentação de novos papéis. Além disso, potencialidades que estavam latentes podem aflorar e há um compartilhamento democrático de responsabilidades e vivências.

De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2009), a psicologia social de orientação sócio-histórica, também conhecida como abordagem sociointeracionista, desenvolvida por Vygotsky, estuda a relação indivíduo-sociedade e a maneira como um modifica o outro e vice versa, pois entende que o sujeito age sobre o mundo, transforma a si mesmo e, ao mesmo tempo, transforma o mundo em que vive. Ainda de acordo com esses autores, dentro desta abordagem, é fundamental que se trabalhe o sujeito terapeuticamente de forma a que ele compreenda e se aproprie de sua maneira de estar no mundo e que possa se entender como alguém que pode transformar a sociedade em que vive, buscando melhores condições de vida para si mesmo e para o coletivo à sua volta. Assim, a abordagem de Vygotsky permite-nos pensar sobre a importância do grupo e da sociedade para o nosso desenvolvimento pessoal e singular, mas também nos leva a perceber o nosso papel social como indivíduos que podem conduzir a uma mudança da sociedade em que vivemos e atuamos.

            Esse texto foi produzido no início de janeiro. Portanto, muito antes da pandemia do coronavírus. Mas continua atual, pois, hoje, apesar do distanciamento físico exigido pelo momento, o grupo continua sendo a melhor forma de apoio e resistência às questões decorrentes dessa crise mundial, tais como medo, angústia e ansiedade, além da doença e da morte. A dificuldade que muitos vivenciam de ficar em casa decorre exatamente do fato de sermos gregários, de precisarmos do outro, do grupo, como Vygotsky nos mostra. E felizmente nossa era tecnológica nos permite manter o contato com esse outro tão importante através do mundo digital, fato inédito na História da Humanidade. Em nenhum outro momento de crise e quarentena, como, por exemplo, na peste bubônica, houve a possibilidade de manter um isolamento físico dos indivíduos e, simultaneamente, continuar a haver comunicação e união grupal, o que hoje é possível através dos meios virtuais existentes. Façamos bom uso desse privilégio, para ficar em casa e evitar que o vírus se propague de forma incontrolável, mas sobretudo para que as redes sociais se tornem, mais do que nunca, espaços de troca, apoio, solidariedade, resistência, crescimento e, conforme Vygotsky nos prova, de elevação da nossa consciência. Que a importância e a força do grupo nos dê ânimo e coragem nessa batalha contra o inimigo invisível externo e contra nossos piores temores internos. Que sigamos juntos nesta jornada!




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROCO, S.M.S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte: contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade. Paraná, 26 (1). Pp. 22-31, 2014. Disponível em: <https://www.researchgate.net/journal/1807-0310_Psicologia_e_Sociedade> Acesso em: 30/09/2019.

BOCK, A.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M.L. Psicologias – uma introdução ao estudo da psicologia. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MORAES, E. et al. O poder do grupo. Blog não-palavra. Disponível em: <https://nao-palavra.blogspot.com/2019/>. Acesso em: 05/01/2020

PHILIPPINI, A. Grupos em arteterapia: redes criativas para colorir vidas. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.

REGO, T. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

SEI, M.B.; GONÇALVES, T. (org.). Arteterapia com grupos: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

ZANELLA, Andréa Vieira et al . Questões de método em textos de Vygotski: contribuições à pesquisa em psicologia. Psicologia &  Sociedade,  Porto Alegre ,  v. 19, n. 2, p. 25-33,  Aug.  2007 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 04/02/2020.

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Sobre a autora: Isabel Cristina Carvalho Pires



Formação: Jornalismo, Pedagogia, Antiginástica ®,  Arteterapia e Psicologia
Área de atuação/projetos/trabalhos: Atendimentos individuais ou em grupo

A autora é arteterapeuta e psicóloga. Tem formação e experiência em
Antiginástica ® Thèrese Bertherat, é jornalista e professora de inglês e francês. Realiza atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.