segunda-feira, 28 de agosto de 2017

INTERGERACIONALIDADE E MÚSICA: Um toque de estímulo e afeto para o cérebro


Por Juliana Ohy - Niterói, RJ
Site: www.julianaohy.com.br
Email: julianaohy@gmail.com

A intergeracionalidade, ou seja, a integração entre as diferentes gerações, contribui para o aumento da longevidade, favorecendo a manutenção e promoção da saúde física e mental do idoso (ALMEIDA; PINHEIRO, 2015). 

É simples entendermos o porquê. Tente observar o que acontece quando um grupo de adultos está conversando (não é necessário nem que seja um grupo específico de idosos) e chega uma criança ou um bebê. Naturalmente e, na maioria das vezes, essa criança torna-se o centro das atenções, seja por algo que faça, fale ou pergunte.

A diferença das gerações provoca em nós, seres humanos, uma curiosidade natural, que faz com que tenhamos interesse em observar, conhecer e interagir com o outro. Esse interesse despertado funciona como um estímulo muito rico para nosso cérebro. 

O nosso cérebro funciona com alguns combustíveis presentes nessa interação geracional: afeto, motivação, interesse, curiosidade, sociabilidade e prazer.  

A autora do livro Vovô vai à escola: A velhice como tema transversal no ensino fundamental, afirma que a experiência intergeracional enriquece o processo de ensino aprendizagem, uma vez que coloca as crianças em situações concretas de cooperação e contribui com os idosos a partir da partilha de novos conhecimentos, encorajando-os a enfrentar as mudanças sociais e conviver de forma equilibrada com as demais gerações.

Pensando nas transformações que essas relações podem provocar, elaborei um evento com a participação de dois centros de estimulação da cidade de Niterói (RJ). O Instituto da Mente, voltado para idosos, com oficinas de estimulação cognitiva diversas e o espaço Música Para Bebês (MPB), que estimula crianças de 0 a 3 anos através da música e outros recursos lúdico-pedagógicos. 


Com o apoio da prefeitura da cidade, o evento foi realizado em julho desse ano, no Jardim do casarão do Solar do Jambeiro, um lugar arborizado, amplo e delicadamente belo.
Idosos e bebês iam chegando com suas famílias e se acomodando onde sentiam-se mais à vontade. Foram recepcionados com um delicioso café da manhã, exposto à sombra de uma das árvores do lindo jardim. O evento ultrapassou as expectativas e através do repertório de música, propositalmente intergeracional, bebês e idosos, por vários momentos estavam juntos cantando, sorrindo, dançando e se comunicando.

Para a realização do encontro de gerações, idosos e bebês se prepararam, ensaiando músicas e confeccionando instrumentos. Idosos recordando a infância e bebês aprendendo ritmos antigos.

A comunicação, outrora tão distinta entre as gerações, deixou de ser uma barreira, e a música, virou o principal veículo de ligação entre avós e netos, pais e filhos, professores e alunos, pacientes e terapeutas, velhos e novos.

E, em uma grande roda INTERGERACIONAL, todos, de mãos dadas, bebês nos colos e idosos abraçados, cantaram a música Carinhoso, de Pixinguinha, podendo vivenciar um pouco daquele momento, ainda raro nas famílias, em que netos, pais e filhos podem fazer uma mesma atividade, se beneficiarem dela e saírem igualmente satisfeitos.

“Meu coração, não sei por quê

Bate feliz quando te vê

E os meus olhos ficam sorrindo (...)

(...) E só assim então serei feliz

Bem feliz”. 

                          Carinhoso - Pixinguinha

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências:

ALMEIDA, Fabiana Soares de.; PINHEIRO, David Halen Araújo. Envelhecimento Ativo e Intergeracionalidade: Desafios e Possibilidades. Anais do Congresso Internacional de Envelhecimento Humano. V2, N1, 2015. Disponível em: http://www.editorarealize.com.br/revistas/cieh/trabalhos/TRABALHO_EV040_MD4_SA8_ID1133_27072015164208.pdf.

TODARO, Mônica. Vovô vai à escola: A velhice como tema transversal no ensino fundamental. Campinas, SP: Papirus, 2009.

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Sobre a autora: Juliana Ohy


Formação:
Psicóloga, Arteterapeuta, Psicopedagoga, Especializada em Psicogeriatria e Mestre em Saúde Mental (IPUB-UFRJ)

Área de atuação/projetos/trabalhos:
Sócia-diretora do Instituto da Mente, Pesquisadora do núcleo de Depressão em idosos da UFRJ, Professora dos cursos Arte e Cognição: Estimulando o cérebro
através da arte e Jogos Cognitivos, Membro da equipe e professora do curso Neurociências da Educação do CBI of Miami e Palestrante na área de Neurociências, Gerontologia e Arteterapia.





segunda-feira, 21 de agosto de 2017

INVENTANDO HISTÓRIAS: Uma breve reflexão sobre o estágio em Arteterapia com idosos


Por Cristiane de Oliveira
crisarteterapia@hotmail.com


“ A vivência do grupo arteterapêutico como espaço de interlocução dá ao idoso um novo espaço de compartilhamento de sua subjetividade, onde pode amenizar a vivência de exclusão e reposicionar-se de forma mais ativa e fortalecida para confrontar os desafios do envelhecimento.” (Philippini, 2015, p.18)

O convite
Quando o Não Palavra  iniciou a proposta “Não palavra abre as portas” , dando espaço para que os leitores que se identificassem com o blog expusessem suas ideias, me senti motivada a escrever um pouco da minha experiência no estágio realizado na Formação em Arteterapia pela POMAR - RJ, no período de 2016 a 2017. O meu interesse em escrever tem por intuito ajudar a minha compreensão na atuação em Arteterapia com longevos. Esse foi o  perfil escolhido por perceber, principalmente, ser um público que vem aumentando (afinal, destino de todos nós), que sofre o preconceito, a invisibilidade simbólica, a marginalização,  e, além do mais, precisa ser compreendido e estudado.


            O meu trabalho arteterapêutico realizado com grupo de idosos instalados em instituição de longa permanência utilizou, como instrumentos, diferentes materiais de arte e técnicas expressivas diversas, no entanto, trago como destaque a experiência de criação de histórias. Para isso, foi importante formar, junto com esse grupo, um espaço de criação e permissão para errar. Um lugar que percebessem que é  possível criar em liberdade, livre de condicionamentos ou preconceitos. Desta forma, toda produção plástica foi encaminhada com intuito a trazer a esses indivíduos a capacidade de se perceberem criativos, com valor pessoal e gerar autoestima.




De ouvir a criar histórias: breve relato da experiência


            Um dos primeiros passos foi fazer entender que a Arteterapia não tem por intuito ensinar Arte e, sim, traduzir sentimentos, pensamentos e emoções através dos trabalhos produzidos. A partir do desenho, pintura, modelagem ou outras formas de expressão foi-se tentando fazer o desbloqueio do potencial criativo a ponto de sentirem-se capazes de criar mudando o sentimento de desvalia e percebendo-se integrados num grupo.


            Esse espaço criativo também deveria ser lúdico, afinal, a ideia do isolamento e de autodesvalorização sempre queria trazer um tom mais triste para a casa. Desta forma, a música, sempre presente, era um dos pontos chaves para abrir espaço para a ludicidade. O primeiro passo foi ouvir histórias com o intenção de ativar o imaginário, estimular a criatividade, ativar a comunicação oral. Assim, para potencializar esse processo arteterapêutico da contação, foram utilizados diferentes linguagens expressivas.


“O idoso tem muitas histórias para contar, e em muitas situações, há pouca gente ou ninguém interessado em ouvir com atenção. O espaço arteterapêutico como território de interlocução e livre expressão pode auxiliar a suprir essa lacuna” (Philippini, 2015, p.38)


O segundo passo foi o de criação de histórias. Porém, esse  momento não poderia ser bloqueador, já que a maioria dos idosos estava com limitações e dificuldade de escrever. Assim, o registro das histórias criadas pelo grupo era realizado por mim. Nesse momento criador, o que contava era a improvisação e a criatividade. As histórias criadas eram sem tema fixo,  disparadas algumas vezes por imagens ou objetos, onde cada pessoa ia completando a criação da outra. Outras vezes (depois de já terem vivido a experiência de criar histórias), a própria pessoa criava da sua cabeça. Nessas histórias, percebia-se muito da situação de isolamento e desvalia que estavam vivendo. Contudo, esses momentos foram fortalecedores para os longevos. Perceberam-se capazes e criativos a ponto de uma participante sentir vontade de escrever um texto chamado “contestação” onde dizia ser incrível ver que pessoas idosas seriam capazes de criar histórias que poderiam estar num livro. E, a partir dessa ideia, no fim do estágio, cada uma das participantes pode ver suas histórias escritas no livro que era ilustrado com seus desenhos e seus nomes como autores.  Esse momento vitalizador foi apenas um dos muitos que se tentou criar, estimulando a curiosidade, a imaginação e alegria de viver, apesar de tudo.


“Como arteterapeutas, podemos utilizar os têmenos do setting arteterapêutico como espaço de semeadura destas mudanças, assegurando ao longevo um lugar seguro, protegido e confiável, para reinventar-se a cada dia”. (Philippini, 2015, p.47)

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

Referências Bibliográficas


PHILIPPINI, Ângela.Caminho da Arte: Construindo um Envelhecimento Ativo. Rio de Janeiro: WALK, 2015.
_____________________ Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: Uso, Indicações e Propriedades. Rio de Janeiro: Walk, 2009.

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Sobre a autora: Cristiane de Oliveira






Formada em Pedagogia(UFF), Psicopedagogia (UNESA), Arteterapia (POMAR), cursando Pós Graduação em Arteterapia (POMAR)

Atuação em Arteterapia com adultos e idosos (individual e grupo), atendimento  em domicílio e instituições.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

TERAPIA COGNITIVA COMPORTAMENTAL E ARTETERAPIA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL



Por Suzane Xavier Rocha - RJ
suzane.psi@gmail.com


         Quando terminei minha Pós-Graduação em Terapia Cognitiva Comportamental, fiquei pensando em qual tema abordar no trabalho de conclusão de curso. Comecei a refletir  sobre alguns estudos que já tinha feito e  resolvi me aprofundar nas pesquisas sobre Arteterapia, assim decidindo fazer o trabalho “Terapia Cognitiva Comportamental e Arteterapia – Um dialogo Possível”.


A dificuldade de encontrar uma bibliografia específica e pesquisas sobre o tema fez com que eu buscasse em minha prática clínica e em estudos complementares algum embasamento para esta articulação que até hoje me instiga e ainda se encontra em aberto. O texto de hoje é um fragmento deste fluxo de pensamentos.

Vejo que a criação artística induzida pode facilitar o surgimento de expressões não verbais, dando espaço para a “não palavra” e também para ressignificações. A partir do uso das técnicas expressivas de forma diretiva, a expressão por imagem estimula ao paciente à criação em cima de um tema proposto.  Isso me fez perceber o quanto a comunicação paciente x terapeuta enriquece e favorece todo o processo.


A importância deste dialogo baseado em respostas mescladas pela presença de reestruturações cognitivas, está em possibilitar ao individuo abrir as cortinas densas que ocultam-lhe seus ‘ esquemas inadaptativos podendo propiciar a identificação até que possa aprender a descortiná-los, com seus próprios recursos, através de suas criações, permitindo um crescimento de ser e estar, no aqui e agora. 



Importante lembrar que a imagem é um símbolo interno e que é a primeira construção da realidade interna antes da palavra. O psicoterapeuta precisa não apenas dominar objetivos e procedimentos relativos ao uso de técnicas às quais pretende aplicar (da Arteterapia e da Terapia Cognitiva Comportamental), mas antes de tudo definir, com clareza, os meios de adaptação de um recurso técnico ao outro a fim de estabelecer os objetivos à mobilização de conteúdos internos.


Percebo que o paciente que experiencia o processo na Arteterapia tem capacidade de expressar a complexidade humana através da grande multiplicidade de significados que são revelados em seus trabalhos. Ou seja, a arte tem a capacidade de não somente criar, mas despertar, elaborar, perceber, podendo ser considerada uma mensagem onde terapeuta e paciente poderão compartilhar uma experiência única podendo refletir sobre seus padrões de pensamento e suas crenças sobre si mesmo, o outro e o mundo.


Ao terapeuta compete facilitar as suas descobertas, ajudando-o no trilhar deste caminho. Ele é observador e ao mesmo tempo participante deste processo. Os materiais expressivos e as técnicas comportamentais são utilizados como veículos desta jornada. Assim, expressando-se, verbalizando suas dores, suas dúvidas, suas angústias, seus medos, experimentando, criando, destruindo, construindo, reconstruindo, uma caminhada para o interior e para o exterior é feita.


Hoje concluo com Dalai Lama, em seu livro “Uma ética para o novo milênio”, (1999): “Se pudermos reorientar nossos pensamentos e emoções e reorganizar nosso comportamento, então poderemos não só aprender a lidar com o sofrimento mais facilmente, mas, sobretudo e em primeiro lugar, evitar que muito dele surja’’ (p 12)”.




Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

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A Equipe Não Palavra te aguarda!



Referência Bibliográfica: 

CODIOLI, Aristides V.Psicoterapias Abordagem Atual .Artmed 1998

LAMA, Dalai. Uma ética para o novo milênio.


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Sobre a autora: Suzane Xavier Rocha 




Psicóloga, Pós Graduada em Terapia Cognitiva Comportamental 

Atuação: atendimento psicoterapêutico individual e grupo em Copacabana, RJ. 

Ministra palestras e treinamentos para empresas e públicos diversos

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

SÉRIE A CLÍNICA DA ARTETERAPIA: SOBRE O LIMITE DA PALAVRA





Por Eliana Moraes - (MG) RJ
naopalavra@gmail.com

“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã...
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida...
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara...

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento....”

O Lutador, Carlos Drummond de Andrade

Neste ano em que completo 10 anos de prática clínica tenho feito o exercício de trazer à memória alguns pacientes que fizeram parte deste caminho, que me desafiaram e consequentemente me construíram e lapidaram como terapeuta. Pacientes que demandaram muito estudo, supervisão, mas sobretudo uma intuição aguçada para a escuta e o manejo naquele momento em frente ao (lado do) paciente. 

Sem dúvida um dos fenômenos que mais me intrigaram é aquele em que o paciente tomado por enorme angústia, não encontra palavras que lhe sirvam como expressão, que lhe organize e “sossegue”. Hoje vejo que não por acaso, intuitivamente nomeei o espaço que comportaria os registros dos meus estudos e pensamentos da minha prática profissional como “Não Palavra”.

Venho de uma primeira formação em psicologia ao qual somos orientados para o manejo prioritariamente a partir das palavras de nossos pacientes. Fui construindo meu caminho buscando orientação na literatura psicanalítica para a prática clínica e atualmente faço parte de uma escola de psicanálise para que cada vez mais me instrumentalize para uma boa escuta. 

Para Lacan o “inconsciente está estruturado como uma linguagem... Estruturado significa fala, meu léxico etc.”. A psicanálise é alicerçada na clínica estrutural, orientada (mas não engessada) pelos conceitos das estruturas psíquicas. E para Lacan “O que cria a estrutura é a maneira pela qual a linguagem emerge no início num ser humano. É isso, em última análise, o que nos permite falar em estrutura.” (LACAN in JORGE) Por este motivo ele tanto se dedicou aos estudos e à articulação da Linguística de Saussure com a psicanálise. Entretanto, ele próprio em um dado momento reconhece que o inconsciente é não-todo estruturado como linguagem, quando por exemplo o “real” comparece e falta a palavra, falta algum significante que dê contorno ao sujeito. 

A clínica me mostra que este fenômeno não é tão raro de acontecer. E como profissional da clínica da Arteterapia, nestes casos me lembro de Roland Barthes, um dos mais importantes teóricos da teoria da literatura e também um dos grandes filósofos franceses do Século XX: “A língua é fascista.”  Para Barthes “... a língua não é nem reacionária nem progressista, ela é pura e simplesmente fascista... porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer.” (BARTHES in SYLLA)

Não acabe aqui o aprofundamento na densa teoria de Barthes, mas nos interessa saber que o autor associa o impacto das estruturas linguísticas ao impacto de um PODER sociopolítico e não se exime de convocar aos intelectuais e escritores a desempenharem um papel de resistência a este poder:

“... a resistência apenas seria possível fora do poder da linguagem, no seu além, mas este além que conferiria um espaço de liberdade, não existe...

Contudo, segundo o autor, o intelectual deverá ser persistente na resistência, embora esta se pareça com uma espécie de missão impossível...

Não havendo um exterior à linguagem num espaço fora ou além da linguagem, cria-se então este além no interior da própria linguagem, precisamente pela estratégia da criação de não-lugares...” (SYLLA)

Penso que a arte está para este “não-lugar” da linguagem e o arteterapeuta seu embaixador. 

Relato de caso


"Assim, cada arte chega, pouco a pouco, ao ponto em que se torna capaz de exprimir, graças aos meios que lhe são próprios, o que só ela está qualificada para dizer." (KANDINSKY)

Há cerca de um ano recebi na clínica uma paciente com o diagnóstico de transtorno bipolar em um quadro depressivo severo. Um membro da família assistiu o filme de Nise da Silveira e intuitivamente compreendeu que a arte poderia contribuir para alguém no limite de seu sofrimento. Assim, me procurou como arteterapeuta, endossada pelo psiquiatra e pela psicoterapeuta que a acompanhavam, pois notoriamente sua cognição e a fluência verbal estavam comprometidas devido a gravidade do quadro, mas também pelos efeitos colaterais do tratamento. 

Como fui procurada como arteterapeuta, justamente pelos potenciais terapêuticos da arte e seus materiais, propus uma “primeira entrevista” diferente, em que deixei disponível sobre a mesa diversos materiais de variadas linguagens da arte, como desenho, pintura, colagem e modelagem. Entretanto, ao meu primeiro contato com a paciente ficou claro seu estado de extremo esvaziamento, pensamento lentificado, fala monossilábica. Compreendi que aqueles estímulos se apresentavam como uma poluição de todas as ordens e decidi começar “do zero”. Lancei mão de uma mandala para colorir e pedi que ela preenchesse aquilo que estava vazio e trouxesse cor ao que não tinha. Após alguns instantes ela começou a esboçar alguns movimentos. Seus traços enfraquecidos, seu ritmo lentificado e os espaços que ainda permaneceram em branco me contaram um pouco mais sobre aquela pessoa. Saltou-me aos olhos que a área interna da mandala foi preenchida com cores quentes e os elementos da periferia permaneceram vazios. Ela estava “voltada para dentro” mas ainda havia energia ali. Eis uma primeira entrevista sem uma palavra. 

O trabalho foi seguindo seu curso através das cores. Orientada por uma de minhas grandes referências teóricas para a prática da Arteterapia, Wassily Kandinsky, as cores possuem a capacidade de agir como um estímulo psicológico e sensorial. Cada cor possui um conteúdo intrínseco próprio, um conteúdo força, uma potência. Apostei que as cores poderiam “afetar” ou “provocar” algum desejo ou movimento nesta moça, além de que por sua “simplicidade”, poderiam servir de linguagem expressiva para alguém tão embotado. 

A cor preta apareceu de forma natural e apostei em trabalhar o significante “bipolar” – para além de um diagnóstico, mas um movimento humano da oscilação entre os opostos, paradoxos e antagonismos - através das cores preto e branco. Foram feitos diversos trabalhos explorando a polaridade preto/branco mas também a percepção aguçada e o investimento no degradê, nas diversas tonalidades ou possibilidades que existem entre eles, o(s) cinza(s). 

Em seguida passamos a explorar outras polaridades em cores. Tomando como referência a teoria das cores, o círculo cromático é dividido por cores que podem ser consideradas opostas/complementares (deixo aqui a sugestão de pesquisa e aprofundamento deste tema pois em muito contribui para meu olhar na clínica da Arteterapia como um todo). São elas vermelho/verde, azul/laranja, amarelo/roxo. Esta última polaridade escolhida pela paciente a ser trabalhada. 

Em um dos trabalhos a partir deste estímulo, desta vez através da colagem, a paciente produziu a imagem que ilustra este texto (mediante sua autorização). Esta foi a primeira vez que estes símbolos, que ao longo do processo se tornaram recorrentes, se constelaram em imagem. Formas como um rolo ocupavam a cabeça, mas por algum motivo a boca era impedida de expeli-los. Esta imagem me impactou profundamente pois percebi que incialmente não se tratava de interpretar ou descobrir qual era a natureza do impedimento para a boca. Tão pouco o caso de minimizar ou deslegitimar aquele impedimento e solicitar, demandar sua fala. O fato era que havia ali um ser humano sem nenhum comprometimento do aparelho fonatório, em profunda angustia pois pensamentos a consumiam mas eram  interditados à palavra. 

Porém, a imagem gritava. Por imagem falou. E ali mais uma vez tive a certeza que a arte, os materiais, o ato criativo, servem de linguagem para aqueles que por algum motivo não podem falar com as palavras. 

Assim surgiu a questão da angústia, antes mesmo de suas questões pessoais,  diante da demanda externa para que ela produzisse palavras e falasse. Percebi que o setting arteterapêutico exerceria ali um outro convite à expressão interditada. Novos caminhos, novo vocabulário, novas “palavras-imagens” (ver texto de Beatriz Abreu aqui), nova comunicação. 

O profundo investimento pessoal que gradativamente foi emergindo a cada agir criativo me mostravam que estávamos no caminho certo. Com poucas ou nenhuma palavra aquela moça criava, se debruçava, explorava seus recursos como os materiais disponíveis a cada proposta, o espaço disponível no papel/superfície para cada trabalho, o tempo  de sua sessão (que em alguns momentos tornara-se curto). Estas expressões aguçavam minha escuta como arteterapeuta que sou, instrumentalizada para a escuta do processo, a escuta do agir. As imagens produzidas, riquíssimas de conteúdos, questionamentos pessoais além de críticas ao social altamente pertinentes. 

Se o amigo leitor espera por um “grand finale” para este relato, digo que ele não existe, pois ainda está em aberto – a vida é um processo. Esta moça segue na luta pela sobrevivência e pessoalmente sou muito empática a ela quando diz o quão é difícil viver. O que podemos dizer é que ela encontrou um possível, um caminho para dar passos  de enfrentamento rumo ao desconhecido da vida. 

Viver não é fácil. Mas, graças a Deus pela arte que nos estende a mão, oferecendo uma linguagem quando é impossível a palavra. 

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
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Referências teóricas:


JORGE, Marco Antonio Coutinho. Freud e a invenção da clínica estrutural in Futuros da Psicanálise.

KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte.

SYLLA, Bernhard. Roland Barthes: “A língua é fascista”: aproximações a um topos da filosofia do século XX.