domingo, 27 de setembro de 2020

ESCRITA PRÁ LÁ DE CRIATIVA


Texto: “O que significa ARTE para mim?”

Por Claudia Maria Orfei Abe - São Paulo/SP

leonardo.claudia@gmail.com

Resolvi instituir um Caderno de Escrita Criativa para o meu pai, como sendo mais uma atividade para ele fazer. Estava com 83 anos de idade no início de 2018, viúvo há cerca de um ano e muito entediado. O diagnóstico de Doença de Alzheimer veio mais tarde naquele ano.

O texto inaugural do caderno foi escrito no dia 16/04/2018. Entreguei-lhe o mesmo, e para dar um título olhei ao meu redor para os objetos da sala. Vi sobre a mesa da sala de jantar as peças de um quebra-cabeças bem grande sendo montado, não por ele sozinho obviamente. Falei para ele escrever um texto de uma página inteira. Intitulado “Quebra Cabeça”, o texto teve uma certa lógica, começo-meio-fim, poucos erros de ortografia, divisões em parágrafos, pontuações, agradecimento e assinatura.

Texto: “Quebra Cabeça” 

Na semana seguinte, propus novamente a escrita de um novo texto. Mas aí ele ficou esperto. Escreveu uma página inteira em linhas alternadas! Não tive dúvida, virei a página e falei para ele continuar a escrita até o final. Um mês depois, ele já não conseguia escrever uma página inteira. Passamos para meia página e depois para perguntas e respostas.

Está certo que não conseguimos fazer essa atividade com muita frequência, mas foi o suficiente para eu observar como o cérebro dele estava funcionando.

Comecei com perguntas simples: Como você se chama? Quantos anos você tem? Quantos filhos, seus nomes, netos, bisneto, no que se formou, do que gostava de brincar quando criança, qual era a sua profissão. Só pelas respostas percebi alguns esquecimentos seus.

E assim fomos alternando, pois às vezes ele escrevia texto de uma página, depois, perguntas e respostas, depois pulava linhas. As perguntas foram tendo graus de dificuldade aumentados, e até que ele se saiu bem com esta: O que significa ARTE para mim? (Foto no início deste texto).

Para minha surpresa, chegou um dia que a letra dele começou a ficar um pouquinho diferente, uma ou outra resposta não tinham nada a ver com as perguntas. Mas, tivemos também respostas bem humoradas e algumas nas quais ele transmitiu como se sentia naquele momento:

Com este calor intenso, nesta sala, o que você gostaria de estar fazendo agora? Nada! Absolutamente nada! Mas...jogar tombola, fazer palavras cruzadas ou tomando um sorvete de côco não seria má idéia!

Que tipo de sorvete eu gosto? Picolé, raspadinha, massa, de cone, de copinho? Que sabores? Em resposta: prefiro sempre em taça de vidro, sorvete de chocolate seguido de alguns tragos de água pura. Recuso sorver de palito por ser muito gelado e duro p/ saborear!

Como você está se sentindo hoje? Maravilhosamente mau!!

Como está o seu emocional? Ótimo! Graças a minha saúde mental! O que você gostaria de fazer agora? Gostaria de descrever meu estado espiritual que está ótimo!

Surgiram também respostas interessantes: Se você estivesse no deserto do Saara, o que você faria? Andaria de camêlo no deserto infinito e apreciaria a macies da areia sêca do deserto do Saahara! Se pudesse fugir deste calor, para onde eu iria? Com certeza eu tomaria um banho de mar, mergulhando e furando as ondas, que vem de encontro a nós. Esse é meu esporte favorito: furar as ondas do mar. O que eu preciso para ficar inspirado, já que hoje não estou me sentindo inspirado? Fisicamente mais calmo e seguro de que estou curado e esquecer a idade de idoso que esta se apossando em mim.

Resolvi fazer a atividade de uma forma diferente, desta vez mostrando a ele uma parte do vídeo Rivers and Tides de Andy Goldsworthy* pelo celular. Na cena, o artista estava construindo uma obra apenas com gravetos, de forma suspensa, e eis que bateu um vento e desmanchou toda a obra, mostrando a efemeridade e impermanência das coisas. Após assistirmos o vídeo, propus ao meu pai uma escrita criativa.

Texto baseado em trecho do vídeo “Rivers and Tides” 

Terminarei contando a experiência de uma escrita criativa a partir da observação de uma foto em uma revista, neste caso, foto do Orloj** na República Tcheca. Primeiro conversamos um pouco sobre a fotografia, do que se tratava e onde ficava essa torre com o relógio, forte atração turística.

Texto inspirado na foto do “Orloj”, República Tcheca

Fomos obrigados a encerrar essa atividade por um período pois ele apresentou problemas nos olhos, o que dificultou enxergar os escritos e as linhas do caderno, inclusive por conta dos medicamentos oftalmológicos. Infelizmente acabou também perdendo a visão do olho direito.

Este ano, 2020, levamos meu pai à uma consulta médica. Aproveitei para mostrar alguns trabalhos que ele fez nas sessões arteterapêuticas comigo, na época em que ele estava tratando os problemas nos olhos. O médico ficou impressionado com a beleza da letra do meu pai. Agora, de vez em quando, peço para ele escrever apenas um parágrafo, para vermos como está a sua escrita, sua letra, se o texto tem sentido, e aviso que levaremos na próxima consulta do oftalmologista. Daí ele fica parado um tempão pensando: Não posso escrever nada banal...

Nota: a grafia itálica se refere à escrita de meu pai, portanto possui alguns erros inclusive de acentuação. acentuação.

* Para assistir o Vídeo Rivers and Tides CLIQUE AQUI 

** O Orloj é um relógio astronômico medieval, localizado em Praga, capital da República Checa. Este relógio foi montado na parede sul da Prefeitura Municipal da Cidade Velha na Praça da Cidade Velha, que são atrações turísticas bastante populares. (Wikipedia)

 

Se você quiser ler meus textos anteriores neste blog, são eles:

Fazer o Máximo com o Mínimo - 01/06/20

Tempo de Corona Vírus, Tempo de se Reinventar - 13/04/20

Minha Origem: Itália e Japão - 17/02/20

Salvador Dali e “As Minhas Gavetas Internas” - 11/11/19

“’O olhar que não se perdeu’: diálogos arteterapêuticos entre pai e filha” -19/08/19

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Sobre a autora: Claudia Maria Orfei Abe


Arteterapeuta – atuei em instituição com o projeto “Cuidando do Cuidador”, para familiares e acompanhantes dos atendidos. Atuei também em instituição de longa permanência para idosos com o projeto “Mandalas”, sua maioria com Doença de Alzheimer.

Atendo em domicílio e on line.

domingo, 13 de setembro de 2020

REFLEXÕES SOBRE A ESCRITA CRIATIVA



Por Eliana Moraes (MG) RJ

naopalavra@gmail.com 

A escrita criativa sempre fez parte do meu repertório como arteterapeuta, mas confesso que ainda em um lugar coadjuvante. Hoje me recordo com mais atenção, um diálogo que tive no ano passado com uma arteterapeuta advinda do campo da literatura, que indagava sobre a primazia das artes visuais nas práticas arteterapêuticas e a falta de propostas criativas em que a escrita apareceria como prática protagonista. 

Até que em 2020 fomos convidados a nos reinventar em tantos aspectos, dentre eles quanto às práticas arteterapêuticas online e neste cenário a escrita criativa tomou o seu lugar de destaque. Tenho lançado mão cada vez mais deste recurso e hoje compartilho algumas reflexões teóricas e práticas sobre o tema. 

Inicialmente vale destacar que a escrita criativa é um termo mais amplo, que se diferencia da escrita criativa terapêutica. Esta sim, encaminhada para um processo de autoconhecimento, tomadas de consciência e apropriação de conteúdos psíquicos singulares. Vale diferenciar também a escrita criativa da escrita espontânea*, que vem como uma proposta associada à escrita automática dos surrealistas e portanto, à associação livre da psicanálise:

“A escrita automática libera as palavras do seu uso convencional. Como nos jogos de associação de ideias, é a aparência e a sonoridade de uma palavra o que determina a escolha de outra.” (BRADLEY, 25) 

Neste sentido, a escrita criativa terapêutica se mostra como uma proposta que convida o autor à um rebaixamento de consciência para uma expressão mais profunda, mas ainda no campo da palavra. De forma poética, Clarice Lispector descrevia esse processo como “escrever distraidamente”, quando escrevemos sem a preocupação com um sentido construído, um começo-meio-fim, ou com padrões literários.

A prática nos mostra que a migração da expressão verbal do oral para a escrita colabora para um deslocamento do discurso consciente do sujeito para novas associações e percepções de si. Desta forma, esta técnica é bem encaminhada quando o arteterapeuta entende que é necessário propor ao paciente uma nova forma de se expressar, dando um passo em direção à conteúdos inconscientes, mas ainda pisando o chão (seguro) da palavra.

Dentro do setting arteterapêutico costumo lançar mão desta proposta em seguida de estímulos projetivos disparadores como pinturas (destaque para as imagens oníricas surrealistas), músicas ou poesias. Estes estímulos são acessados do meu repertório como arteterapeuta, que é construído de forma contínua ao longo do meu caminho de contato e fruição das expressões artísticas. Deixo aqui meu encorajamento para que cada arteterapeuta construa seu próprio repertório a partir de suas próprias experiências. 

Sendo a linguagem verbal a mais consciente, ela também é indicada para o caminho inverso, para momentos em que queremos colaborar para que o paciente tome consciência de si e seus conteúdos:

“Considero que a ‘escrita criativa’ tem uma importante função no processo arteterapêutico: escrever para compreender a si mesmo..., pois as palavras guardam em sua essência imagens diversas, que podem surgir em associações livres, produtos da singularidade e da subjetividade de cada um. E, neste contexto, palavras são fontes geradoras, fornecem o fio de Ariadne para a saída de labirintos e são matéria-prima para significativas transformações psíquicas.” (PHILIPPINI, p 111)

Neste sentido, sempre utilizo a escrita como recurso, quando um paciente termina sua obra, colaborando para a elaboração de um processo tão vivido em sua potência e intuição. Trazer para as palavras o percurso de uma criação e sua composição final, se faz como a última etapa para a tomada e integração à consciência dos conteúdos psíquicos acessados (dentro do que é possível para aquele sujeito). Neste contexto, a escrita também colabora para o registro das memórias deste processo para que em um momento posterior em que for retomado aquele trabalho, não nos falte a descrição tão clara do que foi vivido, em “detalhes” que nossa memória pode falhar.  

Entretanto, desde que adentramos aos atendimentos online tenho dispensado um pouco mais de atenção para a prática da escrita criativa como técnica protagonista da vivência devido à facilidade deste recurso em termos materiais, mas sobretudo por seu potencial de “dar forma” aos conteúdos psíquicos em busca de elaboração. E aqui utilizamos Fayga Ostrower como referência, quando nos diz que:

“... criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa. Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se o ordena e se o configura... no sentido amplo em que aqui é compreendida a forma, isto é, com uma estruturação, não restrita á imagem visual.” (OSTROWER, p 5)

Sendo assim, consideramos que escrever é dar uma forma àquilo que se apresenta ainda sem forma, não compreendido, não elaborado, não nomeado. E este exercício é estruturante e organizador. Vale ressaltar sê-lo bastante pertinente em um momento tão instável, cheio de desconstruções e reconstruções, com fechamentos de ciclos para início de outros, movimentos tão presentes do fenômeno coletivo ao qual estamos inseridos e ainda no meio de sua travessia.  

Lembro aqui que meu próprio processo com a escrita neste blog se deu justamente por estar afogada em meus pensamentos, reflexões e hipóteses e a escrita me serviu (e ainda serve) de recurso organizador de tantos conteúdos que povoam meus pensamentos e se eu assim os deixar, me perco de mim.

Concluindo este texto, mas longe de esgotar este assunto tão rico, com a fala de Raissa Andrade sintetizo minhas reflexões:

“A Arteterapia também utiliza-se da escrita livre. A pessoa, ao escrever, é instruída a não se preocupar com sincronicidade, erro ortográfico, lógica ou ordem cronológica e a não se auto censurar. Basta escrever de forma automática, sem reler por algum tempo, deixar que a transposição pensamento/papel flua naturalmente. A utilização da escrita e/ou da fala após a produção artística liga o consciente e o inconsciente. Aciona o hemisfério direito do cérebro. Essa escrita surge sob o impulso e a intuição. É a elaboração final de um processo criativo bastante denso. Os próprios sentimentos são utilizados para uma nova forma de leitura de si mesmo, ocorrendo a sensação de integração cósmica.” (ANDRADE, 197)

 

* Estas diferenciações aprendi com os professores Celso Falaschi e Lara Scalise na live da AATESP sobre escrita criativa terapêutica, disponível no youtube. 

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Raissa Guimarães de. “Luto na maioridade”. In: “Criatividade e envelhecimento”  Celso Falaschi; Otília Rosângela Souza (org). Ed Labour, Campinas, 2017.

BRADLEY, Fiona. Surrealismo: Movimentos da Arte Moderna. Ed Cosac Naify, SP, 2014.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2014.

PHILIPPINI, Angela. Linguagens e Materiais Expressivos em Arteterapia: Uso, indicações e propriedades. Ed Wak, Rio de Janeiro, 2013

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga.

Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

terça-feira, 8 de setembro de 2020

UM ENCONTRO COM TROCHE

 

Por Sheila Leite - RJ

Em meio a um estudo de Alquimia e Psicologia Junguiana, entrei em contato com um artista uruguaio, Gervásio Troche, que me despertou o interesse e fui   conhecer um pouco mais sobre sua obra. É um artista da nossa atualidade, o que nos torna mais próximos da sua obra.

Troche nasceu em Buenos Aires em 1976 durante o exílio de seus pais uruguaios, na Argentina. Passou sua infância na França e no México até que, em 1985  mudou-se definitivamente para o Uruguai, onde se nacionalizou. No ano de 2000, publicou o livro de histórias em quadrinhos “Mangrulhos”.

Em 2013 lançou o livro “Dibujos Invisible”, com o título em português, Desenhos Invisíveis. Conheci alguns trechos desse livro pela internet e ele me encantou tanto que comprei esse e mais um , que traz a mesma característica do anterior que é a ausência de palavras.

A característica principal em suas ilustrações gráficas  é dessa forma a ausência da palavra escrita. São  personagens, objetos e cenas, de um universo todo seu, que cativa nossa atenção, mexendo com nosso interior, acendendo nossa imaginação com seu senso  de humor  peculiar,  através de desenhos que  trazem em suas imagens,  mensagens para reflexões  que nos convida a uma auto-reflexão.

Como futura  arteterapeuta, começo a visualizar a arte no nosso dia a dia que se manifesta metaforicamente, delineada com as nossas emoções cotidianas; com nossos  sentimentos presentes ou adormecidos em alguma esfera psíquica. Gervásio Troche, de alguma forma, despertou alguma coisa adormecida, algum aspecto do arquétipo da criança que quer se manifestar porque sabe que existe ali muito material na busca da criatividade.

Um desenho em especial de Gervásio Troche, figura que ilustra este texto,  me chamou atenção  e me remeteu à clínica,  relembrando um  caso de uma paciente no trabalho de autoconhecimento. A fala dela sobre um sonho em que se via diante de uma escada e sua hesitação em seguir adiante,devido ao receio de penetrar  em algo que não conseguia visualizar, ou começar a explorar um espaço sem saber onde iria dar ou o que iria encontrar. Esse desenho não foi o único mas o primeiro que veio falar das várias possibilidades de trabalho, no setting terapêutico, com as inúmeras figuras  dos livros de Troche, e os símbolos que elas trazem como imagens do inconsciente de nossos pacientes, ou clientes.

“Uma  busca dentro do seu próprio EU”, foi esse o título da escrita criativa feita pela paciente e iniciava exatamente com uma descrição, que se aproximava muito da imagem apresentada.    Esta imagem, assim como outras encontradas no livro, trazem símbolos que podem ser explorados com pacientes que muitas vezes não conseguem se expressar ou não encontram  palavras que possam descrever   seus verdadeiros sentimentos. A riqueza de símbolos trazidos por Gervásio em seus livros, nos traz muitas possibilidades de trabalhos no universo da não palavra.

Neste texto, trago a proposta de um olhar especial para esse autor que nos leva a refletir como senex,  mas com a leveza do puer.

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Sobre a autora: Sheila Leite


Psicóloga e Arteterapeuta em formação

Pós Graduação em Psicologia Junguiana
Psicóloga convidada da Rádio Rio de Janeiro, 1400 AM,  Programa Ouvindo Você.
Atendimento Clínico: individual e grupo. Crianças, adolescentes e adultos na Ilha do Governador