segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

ARTETERAPIA COMO ESTRATÉGIA DE AUTOCUIDADO DE TERAPEUTAS DE CRIANÇAS TEAs

 

Por Tania Moreira, RJ/Fortaleza/CE

caminhartes@hotmail.com

 

“O cuidado de si é a memória

do cuidado de um outro.”

 

Beatriz Cardella

 

            Janeiro é o mês escolhido para refletir, debater e conscientizar a sociedade sobre a saúde mental. Por definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde mental pode ser considerada um estado de bem-estar vivido pelo indivíduo, que possibilita o desenvolvimento de suas habilidades pessoais para responder aos desafios da vida e contribuir com a comunidade. O bem-estar de uma pessoa está intrinsecamente ligado a uma série de condições fundamentais, que vão muito além do aspecto exclusivamente psicológico. Além dos aspectos individuais, a saúde mental é também socialmente determinada. Por isso, deve-se considerar que a saúde mental resulta da interação de fatores biológicos, psicológicos e sociais, ou seja, tem aspectos e características biopsicossociais.

Condições graves em saúde mental já são consideradas as doenças do século XXI. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), dentre elas, a depressão assume lugar de destaque, podendo ser considerada até 2030, o transtorno mental mais comum. Estima-se que em todo mundo há mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, que sofrem com este transtorno, sendo que as mulheres são mais afetadas do que os homens. O fato é que sem saúde mental não se tem saúde de verdade.

Em 2019, quase um bilhão de pessoas – incluindo 14% dos adolescentes do mundo – viviam com algum transtorno mental. O suicídio foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes e 58% dos suicídios ocorreram antes dos 50 anos de idade. Os transtornos mentais são a principal causa de incapacidade, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis. (Organização Pan Americana de Saúde, junho 2022)

           Diante de números tão expressivos, podemos pensar que os profissionais da saúde não estão isentos destas estatísticas. Pelo contrário, pois não é novidade que também estes profissionais são submetidos a situações-limites diariamente no exercício de seu ofício, seja por lidar com o sofrimento humano, pelas condições de trabalho inapropriadas, seja por questões de baixa remuneração, carga horária excessiva e até falta de reconhecimento social.

 

Neste quadro geral, faremos um recorte para os profissionais da saúde, denominados terapeutas e, dentre estes, especificamente, os inúmeros terapeutas que atendem crianças no espectro do transtorno autista. É um público bem específico, porém que não difere dos demais, pois o trabalho com crianças TEAs pode ser muito desafiador, desgastante, com potencial elevado de ocasionar frustração e estresse prolongado diante da rotina, das demandas dos próprios atendimentos e da família da criança.

 

Buscou-se referencial teórico sobre este tema nas bases de dados disponíveis, mas não foram encontradas fontes relevantes para enriquecer essa discussão. Tal lacuna não apenas chama a atenção, mas também motiva e pode direcionar o aprofundamento nesse tema crucial, especialmente em um momento em que as pesquisas sobre o autismo estão em constante avanço e bastante aquecidas, sendo possível observar inúmeros congressos multidisciplinares por todo país, proporcionando espaços valiosos para discussão e aprimoramento deste complexo e multifacetado aspecto da saúde mental, cada vez mais presente na sociedade.

 

           É comum falarmos sobre o autocuidado para famílias de pessoas TEAs, para os cuidadores mais próximos, muitas vezes as mães, estimulando-as que busquem atentar para seus sentimentos e emoções, pois é fácil perceber os sinais de sobrecarga, estresse e em muitos casos, depressão, pelas situações cotidianas muito demandantes e cansativas. A rotina de cuidados, consultas, terapias e inúmeras renúncias as quais são submetidas realmente podem acarretar prejuízos significativos à saúde mental destas famílias.

 

Concomitantemente, este mesmo autocuidado precisa ser despertado nos terapeutas que atuam junto às famílias diariamente nesta jornada em busca de maior bem-estar para estas crianças. Contudo, nem sempre os terapeutas conseguem abrir espaço em suas agendas para si mesmos, e por isso, vão procrastinando os importantes momentos de autocuidado e, não poucas vezes, negligenciando a própria saúde, quando não se dão conta ou subestimam os  sintomas recorrentes (dores de cabeça constantes, insônia ou sonolência, tensão muscular, cansaço extremo, ansiedade, irritabilidade, apatia, alterações de humor, baixa interação social, dificuldade em concentrar-se, falhas de memória, etc.),  que podem apontar para a síndrome de Burnout ou síndrome do esgotamento profissional, que inclusive já consta no CID 11 sob código QD85.

 

Neste ponto é pertinente a reflexão do filósofo contemporâneo, Byung-Chul Han, em seu livro, Sociedade do Cansaço:

A sociedade de desempenho é uma sociedade de     auto-exploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo uma autoagressividade. A coação por desempenho impede que eles venham à fala. É mais simples lançar mão de antidepressivos que voltam a restabelecer o sujeito funcional e capaz de desempenho [manter-se funcionando, da mesma maneira].  (p.99,101)

Com um alerta mais poético, Cardella (2023), chama atenção para importância do autocuidado que todo terapeuta precisa dispensar a si mesmo:

[...] Acostumado a cuidar e a concentrar-se nas feridas e sofrimentos do outro, na solidão de sua consciência tende a experimentar certo desamparo ao defrontar-se com suas próprias necessidades de cuidado, desenvolvendo, muitas vezes, sofisticadas formas defensivas para proteger-se do próprio sofrimento.  O terapeuta precisa caminhar do cuidado que oferece, ao cuidado que ele é, ou seja, apropriar-se do cuidado, torná-lo próprio.  [...] Um terapeuta necessita ao longo da sua vida, como qualquer pessoa, encontrar em suas relações, o cuidado ansiado, para de fato, ser capaz de auto cuidar-se; O cuidado de si é a memória presentificada do cuidado de um outro.  O paradoxo é que, uma pessoa é capaz de cuidar do outro sem cuidar de si. (p.18,19)

            Cardella (2023), acrescenta um elemento ainda mais relevante, “a capacidade de desenvolver e experimentar a alternância de cuidados, como qualquer ser humano”, sendo tal habilidade um dos “aspectos fundamentais do processo de crescimento do terapeuta, qual seja, o reconhecimento e a aceitação de seus limites e necessidades, transcendendo, por vezes, vergonhas, culpas, constrangimentos, desamparos, medos experimentados em sua biografia e relações significativas [...]” (p.20)

 

ATINGINDOS POR UMA CERTA ONDA: RELATO DE EXPERIÊNCIA

  


        
Fui presenteada com uma vivência online pelas arteterapeutas Cláudia Abe e Rita Maria (Kairós Ateliê Terapêutico) sobre a “A Grande Onda de Kanagawa”, do artista japonês Katsushika Hokusai e nasceu o desejo de ofertar a mesma vivência, à equipe de terapeutas da instituição onde atuava. Meu objetivo era oferecer-lhes um espaço, um tempo de descompressão, de autocuidado, de reflexão e, sobretudo, a oportunidade de serem expostos à Arteterapia, mas como simples participantes. A única exigência era que eles deveriam renunciar o uniforme de terapeutas e se permitirem vivenciar aquele momento. Para maioria, este convite foi como chegar a um oásis, pois especialmente naquele momento, os tempos estavam áridos e desafiadores. A maioria da equipe estava exaurida física e emocionalmente por conta de demandas extenuantes, prolongadas e repetitivas: muitos atendimentos, redução do quadro de profissionais, muitas pessoas de licença médica, enfim, era “dor e a delícia de ser um vocacionado para cuidar” (Cardella, 2023, p.33) que estava pesando sobre os ombros de cada um. Era necessário um tempo para nutrir-se, recompor-se, restaurar-se, renovar-se, reunir as forças para continuar inteiro.  

            Foi disponibilizado um dia e um local apropriado para a vivência com a equipe. Após a apresentação, observação da obra impressa e relato da biografia de Hokusai, o grupo recebeu material necessário para sua produção: folhas sulfite, riscadores diversos, lápis de cor variados, cola, tesoura e outros materiais foram expostos para gerar um clima de encontro e encantamento. O grupo foi convidado a se acomodar da melhor maneira possível para um momento de relaxamento e respiração, um contato mais próximo de seus movimentos internos. Optamos por músicas orientais como fundo, no intuito de favorecer este contato consigo mesmo.

            A consigna dada naquele momento foi que o grupo poderia construir suas ondas de maneira intencional, respondendo a seguinte pergunta: Que tipo de onda você está precisando em sua vida hoje? Diante deles, foram dispostos diversos materiais, com a sugestão que cada um poderia escolher livremente o que desejasse usar. Assim, as ondas poderiam ser desenhadas ou já cortadas e no verso de cada uma, deveria ser colocado a palavra ou sentimento em resposta à pergunta feita. A primeira palavra que viesse à mente. 

Um outro convite foi feito para que o grupo, após este primeiro momento, contemplasse as suas ondas e sentisse qual a cor que cada onda estava pedindo (ou não) e quem desejasse, poderia colorir suas ondas. Sugerimos a confecção de apenas três ondas para que houvesse mais tempo de compartilhamento. Após, cada um poderia prender com clips, fita durex ou simplesmente colar suas ondas no papel A3, dobrado, de forma que um fundo, um horizonte pudesse ser visto. Ali também os participantes poderiam fazer o acabamento de seu trabalho, como um quadro, usando o material que desejassem.  Foi sugerido que assinassem o trabalho, datasse e depois, em outra folha, um realizassem um breve registro por escrito do processo de construir estas ondas.  

Foi mencionada a importância do registro por escrito daquele momento, as emoções identificadas, os pensamentos que  os atravessaram,  a escolha de cada material para enfeitar suas ondas, enfim, tudo era importante ser anotado e cada um também foi incentivado a deixar sua produção (as suas ondas) em um lugar visível, para que pudesse ser contemplada e a energia investida naquele momento da criação, os desejos e intenções com que cada onda foi criada pudesse assumir o seu lugar no coração de cada um. 

            Para o fechamento da vivência, foi feito convite ao compartilhamento, porém apenas aos que desejassem fazê-lo, respeitando o desejo e espaço de cada um.  Nem todos quiseram falar com palavras sobre sua produção. Alguns, apenas apresentaram sua obra. Outros, tomados pela emoção, conseguiram agradecer por aquele tempo de investimento e cuidado que a Arteterapia estava proporcionando ao grupo.


                
       

Alguns depoimentos:

- AG  - “A experiência de libertar a criatividade na construção da onda, articular isso com a minha vida foi um processo de autorreflexão. Ao recortar o papel e reaproveitar os pedaços, me fez pensar em quantas vezes faço o movimento de reaproveitar/ ressignificar inclusive os momentos da minha vida que são difíceis. As ondas me perpassaram e me fizeram sorrir ao ver o resultado final e reconhecer as cores do pôr do sol que utilizei inconscientemente e me trazem tanta paz. O pôr do sol que vejo no caminho de volta pra casa, após um dia de trabalho muitas vezes exaustivo.”

- BB – “Muito obrigada pela vivência. Foi maravilhosa! Creio que não foi só eu, mas todos que participaram sairam revigorados, rejuvenecidos. Estou aqui olhando minhas ondas e pensando como foi incrível.”

CONCLUSÃO

  A arte em si é terapêutica e mobilizadora sob inúmeros aspectos, entretanto quando o indivíduo se encontra em um estágio de esvaziamento e exaustão, a arte pode funcionar como uma boia, uma prancha para o resgate. 

Segundo Moraes (2019), “o convite para criar apresenta-se como um vetor de saúde para aqueles embotados, empobrecidos em seus investimentos e desejos…. amplia o olhar viciado e reduzido, desperta curiosidade, estimula a mente e amplia o repertório.” (p.102)

Nas palavras do poeta Rilke, “A Arte é… o amor mais amplo, mais desmedido. É o amor de Deus.” (p.144) 

A Arteterapia é semelhante a um portal e tem se apresentado como uma estratégia bastante interessante e potente para o autocuidado e prevenção de transtornos mentais tão presentes em nossos dias. E o arteterapeuta, como “portador da sensibilidade tão singular do artista, é como aquele que exerce a função de oferecer a arte e sustentar um território ‘sagrado’ para que ela aconteça” (Moraes, 2009), mantendo-se como um promotor de encontros verdadeiros e resgatadores para si mesmo e para todos os demais terapeutas que desejarem se beneficiar e se abrigar no espaço acolhedor e plural que se constitui a Arteterapia. 

Referências Bibliográficas:

- ARAÚJO, Carolina Guimarães – A Saúde Mental está doente! A Síndrome de Burnout em psicólogos que trabalham em Unidades Básicas de Saúde – Dissertação de Mestrado em Psicologia – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – São Paulo, 2008

-CARDELLA, Beatriz H P, O curador ferido e a clínica contemporânea – Ensaios de Gestalt-terapia, Amparo Gráfica Foca, 1ª. Edição, 2023

- CORDEIRO, RAZZOUK, LIMA, org. - Trabalho e saúde mental dos profissionais da saúde / Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2015.Petrópolis/RJ, 2017

- HAN, Byung-Chul, Sociedade do Cansaço, 2a edição ampliada, Editora Vozes, Petrópolis/RJ, 2017

- MORAES, Eliana - Pensando a Arteterapia, volume 2-1. edição - Semente Editorial, Divino de São Lourenço/ES, 2019

- THIBAUDIER, Viviane, Jung, médico da alma, Editora Paulus, São Paulo/SP, 2014

Sites acessados:

- Organização Pan Americana de Saúde https://www.paho.org/pt/topicos/depressao#:~:text=Em%20todo%20o%20mundo%2C%20estima,a%20carga%20global%20de%20doen%C3%A7as. (acessado em 22/01/2024)

- Ministério da Saúde https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental (acessado em 22.01.2024)

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Sobre a Autora: Tania Moreira

 


Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede). Atuou de 2021 a 2023 como Arteterapeuta na Clínica Conecta/IPREDE, compondo equipe multidisciplinar no atendimento de crianças no Transtorno do Espectro Autista.

Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia

Textos publicados no Blog:

ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017

DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018

O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018

LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018

 DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019

ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA – 2021

 

EXPERIENCIAR É BEBER DA PRÓPRIA FONTE – 2022

COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023

PRÁTICAS ARTETERAPÊUTICAS COM CRIANÇAS NO TRANSTORNOS DO ESPECTRO AUTISTA - 2023

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

PARA 2024, O DESENVOLVIMENTO DO ESTILO DO ARTETERAPEUTA

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Bem-vindo 2024! Abre-se as portas de um novo ciclo em nossa caminhada assim como da jornada do Não Palavra Arteterapia. Iniciamos o décimo primeiro ano do Não Palavra, apropriados do lugar que organicamente fomos desenhando: um espaço de formação continuada ao arteterapeuta, a formação livre que se inicia na conclusão do curso de formação e se segue enquanto esse profissional se mantiver em atuação.

 

Particularmente, sou muito motivada em colaborar para o desenvolvimento de arteterapeutas com tanta vocação guardada no peito, mas que necessitam de uma boa orientação para o firmar de seus passos.  

 

Minha atuação como supervisora tem se ampliado cada vez mais, no acompanhamento de arteterapeutas formados e também na disciplina de Supervisão de Estágio na pós graduação do Instituto Faces- SP. Compreendo ser necessário me aprofundar em estudos que possam colaborar para meu desenvolvimento nessa função. Movida por esse propósito, no período do recesso me debrucei na leitura de um livro que me foi sugerido por uma das grandes parceiras da rede Não Palavra: “Perspectivas junguianas sobre supervisão clínica” organizado por Paul Kugler. Compreendendo que esta é uma literatura que discorre sobre aspectos da supervisão no campo da formação em Psicologia Analítica, fica claro que a partir dela podemos encontrar espelhamentos para a formação em Arteterapia.

 

De saída, o livro me capturou ao defender que o supervisionando (portanto, um terapeuta) deve ser tratado como um “colega mais novo” por seu supervisor. Que o supervisionando, naturalmente, pode aprender e internalizar o conhecimento e manejo do supervisor, porém, este é um espaço de debate e reflexão com o intuito de “consolidar as aptidões profissionais do candidato à sua própria maneira única, de modo que ele se torne seu próprio tipo de terapeuta, sem identificação grosseira com o supervisor.” (COUBETT in KUGLER,2023, 83)

 

De fato, esse é um convite que com frequência faço aos arteterapeutas recém formados, que buscam iniciar sua atuação profissional. É necessária uma mudança de lugar e de postura: agora o arteterapeuta deve abrir mão de uma mentalidade de aluno e migrar para um lugar de profissional-eterno aprendiz, autorizando-se à uma postura adulta e protagonista no exercício de seu ofício. Somente assim, o profissional arteterapeuta poderá reconhecer sua singularidade, sua maneira única de ser arteterapeuta, na construção de sua identidade terapêutica e por fim, conhecer e se apropriar de seu estilo arteterapêutico.   

No capítulo “Observações históricas”,  de Mary Ann Matton, a autora revela que:

 

A diretriz mais útil a que fui exposta no tocante ao trabalho de controle foi a declaração de meu analista em Zurique: “o que conta não é o que você faz; é o que você é”. Foi assustador considerar isso, mas essa declaração manteve o foco em meu próprio trabalho psicológico - uma condição sine qua non para um analista - e abriu caminho para eu desenvolver meu próprio estilo. (MATTON in KUGLER, 2023, 41)

 

Importante ressaltar que no referido livro, as expressões “trabalho de controle” ou “sessões de controle” se referem às sessões de supervisão. Assim, nesse trecho, a autora revela que a orientação mais marcante de sua supervisão foi a consciência da importância de quem o terapeuta é, o que inclui seu processo terapêutico pessoal e o desenvolvimento de seu estilo próprio como terapeuta.

 

Além disso, a autora cita Hilman, que defende que o mais importante para um terapeuta desenvolver seu estilo está em sua natureza e sua experiência (MATTON in KUGLER, 2023, 43). Ou seja: quem o terapeuta é em sua essência e qual é a sua bagagem, sua história e seu repertório.

 

Já Lionel Corbett me oferece orientações de qual é em realidade, meu papel como supervisora, mas também orienta os terapeutas-supervisionandos sobre o que devem buscar na figura de um supervisor: um mentor sensível ao seu mentorando, que encarna o arquétipo do iniciador e não aquele que detém o poder e a verdade:

 

O mentor-supervisor se lembrará que seu estilo pessoal na supervisão e o que ele julga importante não são aplicáveis universalmente [...] A fim de ser útil ou importante para o candidato, o supervisor distinguirá suas próprias necessidades nessas áreas das necessidades do candidato e procurará discernir quem o candidato é ou está tentando tornar-se [...] O que quero salientar aqui é que o mentor procura discernir como esse determinado candidato trabalha melhor e não o encaixar a força num sistema de pensamento. Para isso, o supervisor precisa ser sensível aos efeitos de seu viés teórico e também pessoal. (CORBETT in KUGLER, 2023, 91-92) 

O autor sinaliza que algo singular na perspectiva junguiana do trabalho de supervisão é considerar que ser terapeuta é algo inserido na jornada de individuação daquele sujeito. Consequentemente, o papel do supervisor não é conduzir o supervisionando na direção de seu próprio caminho, mas sim, colaborar para que terapeuta encontre quem ele foi destinado a ser:

 

O traço eminente do modelo de mentor que causa dificuldade é que ele estimula o candidato a desenvolver seu próprio estilo e prática e tornar-se o terapeuta que ele foi destinado à tornar-se, baseando-se na teoria da terapia que for mais adequada ao indivíduo do ponto de vista temperamental e espiritual. (CORBETT in KUGLER, 2023, 85) 

 

Contudo o autor também ressalta que faz parte da função do supervisor oferecer os devidos contornos teóricos ao terapeuta-supervisionado, e assim:

 

Teoricamente, o mentor apoiará essa escolha se for razoável, sem insistir que o candidato adote o modelo de tratamento do próprio supervisor. (CORBETT in KUGLER, 2023, 85) 

Por fim, Corbett nos sinaliza que “Algumas habilidades são importantes para todos os terapeutas, enquanto outras são uma questão de estilo pessoal [...] (CORBETT in KUGLER, 2023, 91-92). Uma citação tão simples, mas tão profunda, que me fez pensar: quais são as habilidades importantes para todos os arteterapeutas e quais são uma questão de estilo pessoal? 

Essa é uma das questões que orientará minha produção de conteúdos pelo Não Palavra, em textos, aulas, palestras, grupos de estudos e supervisão nesse novo ciclo. Que o leitor se sinta convidado a caminhar com a rede Não Palavra, no desenvolvimento de cada estilo pessoal, em 2024 e sempre.

Referência Bibliográfica:

KUGLER, Paul. (Org) Perspectivas junguianas sobre supervisão clínica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023. 

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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Faz parte do corpo docente de pós-graduações em Arteterapia: Instituto FACES - SP, CEFAS - Campinas, INSTED - Mato Grosso do Sul. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"