Por Tania Salete – RJ/CE
@caminhartes.arteterapia
“A gente bota
essas experiências fortes
de lado, mas
elas ficam acontecidas
dentro da
gente; e os fragmentos
delas formam
um novo desenho lá no
fundo do
nosso caleidoscópio.
Só que no
nosso caleidoscópio as
imagens
viradas – mesmo parecendo
que nunca
mais vão voltar, acabam
aparecendo de
novo – porque a gente
não deixa de
ser cada desenho que
criou”. (Lygia Bojunga).
INTRODUÇÃO
Em texto anterior, publicado recentemente aqui
no Blog, abordamos a atuação da Arteterapia no contexto de crianças no
Transtorno do Espectro Autista (CLIQUE AQUI).
Neste texto, faremos um recorte sobre materiais, aplicabilidades e adaptações para este contexto tão singular e ainda em expansão no trabalho do arteterapeuta, tendo em vista que a Arteterapia com crianças privilegia as experiências sensoriais e, a partir destas promove inúmeros benefícios, como: expressão simbólica, estímulo à imaginação, criatividade, potencialização dos processos de aprendizagens, relaxamento, sentimento de pertencimento, estímulo ao desenvolvimento das habilidades motoras, cognitivas, sociais, autorregulação emocional, dentre outros.
Entretanto, para além da pesquisa
continuada sobre materialidades e suas aplicações na Arteterapia, outros
conhecimentos prévios são indispensáveis no processo terapêutico com crianças
de um modo geral, dentre eles, investir no estudo sobre o desenvolvimento
infantil, ou seja, os marcos do desenvolvimento, que podem ser entendidos como um
conjunto de habilidades que a maioria das crianças consegue fazer em uma
determinada idade. Este conhecimento prévio certamente fará toda diferença na
escolha do tipo de material expressivo mais apropriado para cada criança. Além disso, segundo Coutinho, “o terapeuta
precisa apurar sua capacidade de compreender mensagens que lhe cheguem por meio
das modalidades não verbais de comunicação. As posturas, gestos, forma de
caminhar, de olhar, o tom de voz, ritmo
do movimento. Tudo isso pode revelar um código bem mais rico do que palavras.”
(p.18)
Ao
iniciar nesta nova seara de atendimentos às crianças no Transtorno do Espectro
Autista, fui me conscientizando de que a bagagem trazida da formação precisaria
passar por um ajuste mais fino, devido as peculiaridades deste público, pois um
número expressivo de crianças autistas apresenta sensibilidade
sensorial (também conhecido por distúrbio na integração sensorial), que
pode ser tátil, visual, olfativa e outras causando incômodos e até resistência
às sessões. Sendo esta uma
característica bastante comum, é necessário mais conhecimento sobre este tema específico
e importante na prática do arteterapeuta para que sejam promovidas as devidas
adaptações para cada criança, respeitando sempre seus limites e tempo de
ajustamento ao processo.
Algumas estratégias para
engajamento de pacientes com mais sensibilidade sensorial podem ser adotadas,
como por exemplo: rotina
(previsibilidade) nas sessões, limitar o acesso de materiais de artes e/ou
excesso de estímulos no ambiente (iluminação excessiva, tipos de músicas ou
sons); para aqueles com comportamentos mais rígidos ou com dificuldades de transacionar
entre atividades e ambientes, é
interessante incluir na rotina alguns minutos antes do término da sessão, por
exemplo, para que se reorganize e guarde os materiais, principalmente com a
cooperação deles. Desta forma, a criança vai compreender que estamos
finalizando aquele momento. Isso pode ser feito com alarme suave do celular, um
sino delicado, com música ou som de um instrumento musical. Assim,
proporcionamos um ambiente mais seguro, confiável e minimizamos a ansiedade e possível
desregulação. Pode parecer uma rotina um tanto óbvia no contexto terapêutico de
maneira geral, entretanto, no caso de crianças com esta singularidade, isso é bastante importante e até
imprescindível.
Patrícia
Winck, em palestra sobre o Autismo, ressalta: “Conheça mais sobre o autismo,
mas não esqueça que ao atender uma pessoa autista você está conhecendo e
aprendendo sobre o seu autismo, suas peculiaridades e potencialidades.
Tudo que é e o que traz para sua rotina, seus aprendizados e necessidades.”
Orrú destaca que “O TEA (Transtorno do Espectro Autista) pode se manifestar de maneira semelhante e, ao mesmo tempo, distinta em cada indivíduo. E que cada pessoa é única, sendo que o TEA é uma das singularidades que compõe a subjetividade de cada pessoa. Portanto, o TEA em seu quadro sintomático pode se repetir em sua manifestação por todo planeta, no entanto, as pessoas não se repetem, elas são únicas, são singulares e, antes de qualquer categoria de diagnóstico, são seres humanos que devem ser respeitados em todas as suas demandas e direitos sociais.” (p.22-23)
OS
CONTOS, CANTOS E ENCANTOS – PRÁTICAS NA SINGULARIDADE
O brincar é, sem dúvida, a melhor maneira de
se conectar com a criança, pois dentre tantos benefícios, viabiliza sua livre
expressão. A arte é uma outra fonte de conexão e interesse dos pequenos. Afirma
Coutinho que, “ao pintar, desenhar, modelar, a criança se encontra diante de
múltiplas possibilidades criativas, explorando os materiais, o que se constitui
uma atividade enriquecedora, que combina e aguça todos os sentidos, sem nenhuma
necessidade de ensinar, quando pode tentar, ousar, vivenciar.” (p.64). Assegura ainda que “criar é uma das formas
mais eficientes no cuidado com a saúde emocional das crianças, por resgatar ou
alimentar o seu potencial criativo”. (p.40)
Ferreira
destaca que:
“a
criança produz arte quando atribui significados às suas experiências. Ela
transforma o vivido, o ouvido, o visto, o sentido, de maneira singular e
autoral através de desenhos, gestos, cantos, escritas, com uma infinidade de
possibilidades de representações. A arte está por todos os lados, desde a
cantiga na voz materna para o recém-nascido, que tem o potencial de acalmar e
serenar, até à linguagem simbólica na criança mais velha, que já consegue
explorar o imaginário e os contos de fada.” (p.23)
E
Pilloto ressalta que:
“para
a criança, importam o processo e a experiência no ato do fazer (garatujar,
balbuciar, movimentar, sonorizar...). É o adulto que muitas vezes lhe impõe
significado, determinando o produto como até mais importante que o ato criativo
da criança. Uma pista é aproveitar ao máximo o tempo de convívio com as
crianças, deixando-as livres para explorar suas várias formas de expressão”.(p.22)
RELATOS
DE CASO
-
Contação de história com teatro de sombra e uma degustação possível.
Às
sextas-feiras desenvolvemos um projeto mais interativo e interdisciplinar com
as crianças, formado por alguns
profissionais da equipe (pedagoga, musicoterapeuta, nutricionista e
arteterapeuta). Juntos, selecionamos uma história e de acordo com o grupo
daquele dia, organizando a melhor forma de apresentar, de maneira que as
crianças pudessem tirar o máximo proveito daquele tempo. Escolhemos a história
do Macaco Caco e das frutas (muitas crianças autistas apresentam seletividade
alimentar e com isso, transtornos alimentares importantes). A ideia era
apresentar a história com teatro de sombras (com palitoches), depois cada um
escolheria qual animal gostaria de levar para casa.
Como
nosso grupo era de crianças acima de 7 anos, nível 1 de suporte, com boa
interação social entre elas, a proposta de artes seria origami (técnica
japonesa de dobrar papel) de alguns animais da história.
Depois
deste momento, semelhante a história contada, faríamos uma “festa das frutas”
(salada de frutas) e cada participante poderia experimentar um pouquinho. Conquanto
fosse a mesma proposta, cada terapeuta tinha em mente seus objetivos
específicos, porém o objetivo geral consistia em proporcionar inúmeras experiências
às crianças, principalmente a degustação das frutas, que consiste num desafio
importante. Alguns por conta da textura, sabor, odor ou consistência dos
alimentos, não conseguem ingeri-los com facilidade. E, neste grupo específico,
ficou muito clara esta dificuldade. Foi um momento de alegria ver que alguns conseguiram
superar-se, principalmente pelo apoio e incentivo dos participantes. Foi um dia
de conto e encanto para todos nós. É sempre um dia de cada vez.
Nachmanovitch cita a importância
dos processos compartilhados para vencer os desafios: “Uma vantagem da
colaboração é que é mais fácil aprender com alguém do que sozinho. (...) os amigos têm um poder incalculável
(...) pela conversa, apoio, conforto, humor, (...) eles são o mais perfeito eliminador
de bloqueios.” (NACHMANOVITCH, 1993, p.92)
Figura 1 – Teatro de sombras com palitoches
Figura 2 – Crianças experimentando a
técnica do teatro de sombras.
Figura 3 – Hora da degustação como na história do macaco.
- Salão
de cabelereiros
Nesta proposta simulamos um salão de cabelereiros onde cada criança deveria atender um cliente. Ofereceremos tiras coloridas de diversos papéis (reciclados), cola de isopor, uma bola de látex. A atividade consistia em colar as tiras de papel na bola (que estava presa na mesa), simulando os cabelos e depois deveriam colar as partes do rosto, representando uma expressão facial do cliente, após o serviço feito. O objetivo principal consistia em estimular as habilidades socioemocionais, compartilhamento e interação do grupo.
Durante a atividade, perguntamos aos “profissionais do salão” como os clientes estavam se sentindo. A., 9 anos disse que seu cliente estava feliz! Já J.M. 8 anos, declarou convicto de que seu cliente estava confiante, porém a expressão facial demonstrava puro desespero! Foi muito engraçado, pois ele repetia durante toda a sessão a confiança do cliente no seu trabalho. Ao final, cada um poderia levar seu cliente de cabelos cortados e bem penteado para casa.
Vale ressaltar que crianças autistas
podem ter mais dificuldades para reconhecer e utilizar de expressões faciais e
outras expressões não verbais para interagir com outros, por isso, aspectos
ligados à comunicação como imitações, gestos, contato visual, tom de voz,
metáforas, ironia são bastante desafiadores para eles.
Figura 4: A, cortando cabelo da sua cliente.
Figura 5- .JM. colando as tiras, representando os cabelos do cliente que estava
confiante.
O papel do arteterapeuta primordialmente
é de oferecer arte e disponibilizar os
meios possíveis para que qualquer indivíduo que deseje se expressar possa
fazê-lo sem temor de ser julgado, rejeitado, desprestigiado ou se achar “desimportante”,
no vocabulário do Manoel de Barros.
Concordo com esta definição tão poética
de Doederlein: “arte é fuga, é lar, é para onde correm as pessoas que procuram
se encontrar. É filha primogênita de quem tenta se expressar, nem sempre é o
nosso melhor lado, mas é sempre o mais sincero. É o rosto do Criador por
debaixo de qualquer máscara. É um incômodo na existência. É uma boa razão para
se estar vivo. É o ofício dos corações inquietos.” (p.28).
Arte é para todos. Arteterapia é para
quem quiser, mesmo que nem sempre possa expressar-se com as palavras, mas pode
fazê-lo ao seu modo.
BIBLIOGRAFIA:
- COUTINHO, Vanessa – Arteterapia com crianças, 4ª
edição, Rio de Janeiro, Wak Editora, 2013
- DOEDERLEIN, João – O livro dos ressignificados,
1ª edição – São Paulo: Paralela, 2017
- FERREIRA, Suzana J (org) – Infância
com artes – Implicações das artes no processo de crescimento e desenvolvimento
da criança, Guarujá/SP, 2020
-
PILLOTTO, Silva S D - Linguagens da arte na infância 2ª. Edição.
Univille, 2020, Joinville/SC
- NACHMANOVITCH,
Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus
Editorial, SP. 1993.
- ORRÚ, Silva. Autismo,
Linguagem e Educação – Interação Social no Cotidiano Escolar. WAK
Editora, 3ª edição, Rio de Janeiro, 2012
- WEISS, Mery – O Macaco Caco –
Editora Betânia, Venda Nova/MG, 1995
- WINCK, Patrícia – Palestra realizada no
dia 18 de abril de 2023, com tema: A Arteterapia como linguagem da escuta
sensível no Autismo, promovida pela AATERGS -Associação de Arteterapia do
Rio Grande do Sul em parceria com ACAT a Associação Catarinense de Arteterapia.
- Alphafono: Transtorno do
Processamento Sensorial. Sinais de Alerta. Disponível em: <https://www.alphafono.com.br/transtorno-do-processamento-sensorial-sinais-de-alerta/>.
Acesso em 29 de abril de 2023.
Sobre
a Autora:
Graduação em Fonoaudiologia, pós-graduação em
psicopedagogia/UERJ. Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ.
Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e
masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede). Residindo em
Fortaleza/CE há 6 anos, atua como Arteterapeuta no IPREDE/Clínica Conecta,
compondo equipe multidisciplinar no crianças no Transtorno do Espectro Autista.
Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia
Textos publicados no Blog:
ARTETERAPIA – DANDO
VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016
PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS
EM RECUPERAÇÃO - 2017
FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE
TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017
DESENHANDO E PINTANDO
COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018
O BORDADO COMO
INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018
LEONILSON – BORDANDO A
VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018
DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS
BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO -
2019
ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS
BRAÇOS PARA O NOVO -
2020
ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE
CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA - 2021
EXPERIENCIAR É BEBER
DA PRÓPRIA FONTE – 2022
COMO UM RIO QUE FLUI: A ARTETERAPIA
NO CONTEXTO DO AUTISMO - 2023
Que delícia de texto! Quanto aprendizado! E que trabalho bonito, Tânia! Parabéns! Tenho certeza de que suas crianças se beneficiam demais com a Arteterapia. Obrigada por compartilhar. Beijos
ResponderExcluirTânia , mais um texto elucidativo compartilhando sua vivência no contexto do TEA . Realço aqui o papel fundamental da Arteterapia ao trabalhar a singularidade do indivíduo que protagoniza essa realidade .
ResponderExcluirQue texto lindo, sensível e direcionado a uma experiência real. É sempre tão bom aprender com você 🥰
ResponderExcluirEnquanto eu lia o texto sobre os pedacinhos de memórias espalhadas num caleidoscópio, fui bebendo cada palavra e visualizando a cena! Que incrível experiência!!! Gostei muito muito !
ResponderExcluirObrigada
ExcluirQue texto maravilhoso e que belíssimo trabalho!
ResponderExcluirParabéns, Tânia! A Arte surge no meio do caminho... ampliando e transformando a construção interior e a poética nos possibilitando depararmos com pedras preciosas, que nos fazem entender a riqueza da VIDA, como as crianças com TEA.
ResponderExcluirObrigada Luigina pelo incentivo.
ExcluirA Tânia é a personificação da arte terapia, pelo amor, sensibilidade e profissionalismo. Além de domínio técnico-científico sobre o tema e aplicação prática de modo relevante em crianças com TEA
ResponderExcluirTânia, querida! Parabéns pelo seu trabalho e pela forma de compartilhar o seu fazer com Arte nos atendimentos de crianças com TEA. Realmente é uma prática muito significativa para com esse público, que exige do profissional arteterapeuta uma atenção plena, uma escuta atenta e uma entrega ímpar ao buscar adentrar no universo interno de cada criança. Prática rica e primorosa. Grata por compartilhar seu conhecimento de maneira tão sensível e profunda. Que venham outras reflexões. Avanteeee beijos
ResponderExcluirProfa Lidia, obrigada por suas palavras de incentivo.
ExcluirParabéns Tânia! Seu fazer alcançando o que mais tem de primoroso em atender crianças com TEA: as suas emoções de corpo e alma, suas sensações ultrapassando seus próprios limites e mostrando que é possível ser visto e acolhido, validado e compreendido. A essência de cada um em suas expressões livres, autenticas e genuínas. Um super abraço pra ti e continue com sua confiança e presença, elas te levam a esse lugar que só quem está junto de uma pessoa autista sabe qual é!!! Patrícia Winck
ResponderExcluirPatrícia, gratidão por suas palavras tão incentivadoras! Agradeço sobretudo as trocas e o caminho de parceria que vem sendo construído até aqui! Abraço !
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