segunda-feira, 17 de outubro de 2022

EXPERIENCIAR É BEBER DA PRÓPRIA FONTE

 


Mosaico igualdade e respeito 

Por Tania Salete (RJ) CE

@caminhartes.arteterapia

O homem cria, não apenas porque quer, ou  porque gosta, e sim porque precisa: ele só pode crescer,

                     enquanto ser humano, coerentemente,

 ordenando, dando forma, criando.” (Ostrower, Fayga)

 

Ao relembrar momentos de minha formação inicial em Arteterapia, recordo o quão empolgante e desafiador era cada vivência. Explorar, sentir, descobrir, ser confrontada com diversos materiais e técnicas faziam parte, semanalmente, do processo formativo.  A experimentação de novos materiais através de diferentes técnicas era fundamental tanto individualmente quanto no coletivo para que houvesse maior consistência na nossa futura prática arteterapêutica.

Segundo Alessandrini, “… a experiência vivida pode, então, ser apreendida com nível de consciência tal que permite uma aprendizagem significativa.”(CIORNAI,  2004, p.118)

Entretanto, após a formação, a assiduidade e disciplina de pesquisar novos materiais, tende a diminuir consideravelmente. A agitação e os ruídos da vida cotidiana podem nos afastar das nossas produções e, principalmente, das experimentações e descobertas.

Porém, a arte é como uma isca e basta entrar numa papelaria que automaticamente somos atraídas pelos papéis, gramaturas, tintas, pincéis, lápis e novamente o desejo de experimentar algo novo reacende. E foi o que aconteceu durante o período da pandemia, pois a oferta de tempo era maior, assim a oportunidade de investir de maneira consciente neste processo de manter contato próximo com as experimentações e prática de técnicas expressivas e artísticas foi algo natural, principalmente estimulada por palestras vivenciais, lives, mas sobretudo, pelos   encontros do Grupo Quíron: encontros com o curador ferido. São encontros em grupo e online oferecidos pelo Não Palavra, que nasceu na pandemia, com objetivo de ser um espaço onde os arteterapeutas pudessem se reenergizar e manter contato próximo com suas produções.

Em cada encontro, minha experiência era de acessar um portal de nutrição, suporte e compartilhamento tão necessário naquele momento de isolamento “duplo” para mim (além da pandemia, moro na região Nordeste e longe do meu epicentro familiar e arteterapêutico).

A título de testemunho deste suporte nos encontros do Grupo Quiron, recordo-me de que em agosto de 2020, estava com Covid e meu esposo hospitalizado também pela Covid,  mas resolvi participar assim mesmo do encontro e foi fortalecedor receber palavras de ânimo e motivação do grupo naquele momento de tantas incertezas e apreensão para minha família. Mas, vencemos!

Superado este tempo, consegui manter com maior frequência, as experimentações e reencontro com as minhas produções imagéticas, além de conhecer inúmeros colegas arteterapeutas de vários estados do Brasil. Como diz o povo nordestino: pense como foram ricos estes encontros num momento de lockdown!

“As linguagens expressivas guardam em si um potencial curativo e transformador (…) e as experiências criativas nos ‘transpassam’ e permitem que ‘trans-bordemos’ e atravessamos limites e interdições, resgatando notícias de nós mesmos.” (PHILIPPINI,  2009, p. 137)

  

Abrindo o baú de tesouros


Florescer - Tema trabalhado: Limites -Material: Giz de cera em bandeja de isopor  e em papel

Quando nos permitimos acessar este lugar de criação livre para explorar, experimentar, avançar, retroceder, de brincar, imaginar no que vai dar aquele experimento, algumas coisas interessantes surgem: flexibilidade em nossas ações, leveza, mais disposição, alegria, prazer e capacidade de deslumbramento diante das surpresas inusitadas que podem aparecer no processo, tal qual a criança diante de um brinquedo novo, de uma caixa de papelão ou algo que possibilite inventar e criar. 

Para Ostrower, 

nas crianças, a criatividade se manifesta em todo o seu fazer solto, difuso, espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar, no fingir da realidade e que no fundo não é senão o real. Criar é viver, para a criança.” (OSTROWER, 2016, p.127)


                      “ O ato criativo é uma necessidade tão básica quanto respirar (…)  

Somos impelidos a criar.”(ZINKER, 2007,  p 21)

 

Fazendo referência à formação do Arteterapeuta, somos incentivados a buscar nossa “técnica de base”, aquela com a qual mais nos aproximamos ou descobrimos ter mais domínio ou destreza. Isso nem sempre é simples, principalmente para quem não veio do campo das artes plásticas ou que tenha habilidades manuais, logo tornar-se um “terapeuta criativo”, como diz Zinker é um desafio constante.  Entretanto é fato que só se aprende fazendo, correndo riscos, submetendo-se ao fracasso, frustração, deixando o medo de errar de lado e exercitar a persistência. 

         “Invente um canal por onde a criatividade possa fluir do coração para realidade, e uma maneira de registrar o trabalho para que mais tarde, num outro estado de espírito, você possa avaliá-lo e corrigi-lo. O exercício, a experimentação, deve estar totalmente livre de julgamento, brotar diretamente do coração.” (NACHMANOVITCH,1993,  p. 72)

 

Limites e improvisação


Desenho livre em tampinha de Nescau

Dentre os muitos aprendizados que a pandemia de COVID nos trouxe em termos de atendimentos arteterapêuticos, exercitamos a capacidade de lidar com os limites que esta realidade nos impôs. Passados os primeiros meses de susto e apreensão, muitos recalcularam suas rotas e retomaram as atividades da maneira que foi possível - no caso, na modalidade online. Certamente, o manejo com a materialidade foi uma grande questão que exigiu muita criatividade e originalidade dos terapeutas e também de nossos clientes, pois diante das limitadas ofertas de materiais, precisávamos trabalhar com o que se tinha em casa: sucata, bandejas de isopor, alimentos, grãos, temperos, corantes comestíveis, sabonetes, plantas, folhas, sementes.

“...a necessidade nos obriga a improvisar com o material que temos à mão, a recorrer a uma engenhosidade e a uma inventividade que talvez não emergisse se pudéssemos adquirir soluções prontas. Os limites estimulam a intensidade…. descobrimos que a contenção amplifica a força. Trabalhar dentro dos limites impostos pelo meio nos obriga a mudar nossos próprios limites.” (NACHMANOVITCH,1993, p 81,83)

 

Conclusão:


Pandemia é o meu casulo - Vou sair e voar

            Concluo com a recomendação do sábio Rei Salomão (970-931 a.C):

          Portanto, bebe a água da tua própria fonte, sacia tua sede com as águas que brotam do teu próprio poço”. ( Biblia Sagrada, Provérbios 5:15).

          O arteterapeuta é um arauto da criatividade, como tal, precisa se nutrir do seu ofício permanentemente, para que, só então, realize seu papel como companheiro de jornada de outros.  Portanto, avante nas experimentações! Caminhemos porque as possibilidades são infinitas.

 

BIBLIOGRAFIA:

BÍBLIA, A.T. Provérbios, Bíblia de Estudos Facilitado, São Paulo/SP, Editora Mundo Cristão, 2013

CIORNAI, Selma - Percursos em Arteterapia: ateliê terapêutico, arteterapia no trabalho comunitário, trabalho plástico e linguagem expressiva, arteterapia e história da arte, coleção novas buscas em psicoterapia, volume 63 - São Paulo, Summus editorial, 2004 

NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: O poder da improvisação na vida e na arte, 5a. edição - São Paulo,  Summus editorial, 1993 

OSTROWER, Fayga - Criatividade e processos de criação - 30a ed - Petrópolis, Vozes, 2014 - 2ª Reimpressão , maio 2016 

PHILIPPINI, Angela -  Linguagens e Materiais expressivos em Arteterapia:uso, indicações e propriedades, Rio de Janeiro, Wak Editora, 2009 

ZINKER, Joseph - Processos criativo em gestalt-terapia,  Summus editorial, São Paulo, 2007

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Sobre a autora: Tania  Moreira  



Graduação em Fonoaudiologia, pós graduação em psicopedagogia/UERJ.  Especialização em Arteterapia pela POMAR/RJ. Atuou com grupos terapêuticos e de apoio em casa de recuperação feminina e masculina. Grupos de Mulheres online (Grupo Rede).  Atualmente residindo em Fortaleza/CE, atua no Instituto da Primeira Infância (IPREDE) - Clínica Conecta em atendimentos a crianças no Transtorno do Espectro Autista, em Fortaleza/CE

Contatos: Instagram/Facebook:@caminhartes.arteterapia

Textos publicados no Blog:

ARTETERAPIA – DANDO VIDA E COR - RESSIGNIFICANDO HISTÓRIAS - 2016

PRÁTICAS EM ARTETERAPIA COM INDIVIDUOS EGRESSOS DE RUA E ADICTOS EM RECUPERAÇÃO - 2017

FENIX: PARA ALÉM DO CRACK – RESGATE DO FEMININO EM COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA MULHERES - 2017

DESENHANDO E PINTANDO COM A TESOURA COMO O VOVÔ MATISSE - 2018

O BORDADO COMO INSTRUMENTO DE ARRAIGAMENTO E CONDUTOR DE VIDA - 2018

LEONILSON – BORDANDO A VIDA, AS DORES E OS AMORES - 2018

 “DOIS METROS ACIMA DO CHÃO” – AS BOAS NOVAS DE BISPO DO ROSÁRIO - 2019

ESTENDENDO A REDE – ABRINDO OS BRAÇOS PARA O NOVO - 2020

ENTRE OS MÓBILES E STÁBILES DE CALDER – LIDANDO COM A DOR NA ARTETERAPIA - 2021

 

6 comentários:

  1. Michele Alencar da Cruz Alcântara18 de outubro de 2022 às 08:54

    Arteterapia liberta as emoções mais acorrentadas da alma, de maneira linda e leve. Excelente trabalho 👏👏👏

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  2. Adorei o texto! Muito bem escrito e bem pertinente. As fotos estão geniais, me inspiraram demais. Obrigada, Tânia, por nos premiar com mais uma reflexão enriquecedora sobre o trabalho arteterapêutico! Bjs

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  3. Tania,
    ao bater o olho na primeira foto lá no início do texto, já me chamou a atenção ! Então fiquei muito curiosa para ler o seu texto.
    Incrível como desta vez, seu texto ficou de uma forma mais leve, uma delícia de leitura ! Além de todo conteúdo.
    Essa tampa de Nescau eu achei o máximo !!
    Você está de Parabéns !!!!
    Um grande abraço, Claudia Abe.

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  4. Eu começo a ler seu texto e viajo no tempo. Do início dos seus estudos na arteterapia. Parabéns amiga! Cada dia sinto mais orgulho de vc, do seu crescimento e do seu dom de doar-se em tudo e por todos. Amo vc ❤️

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