segunda-feira, 31 de outubro de 2022

A IMPORTÂNCIA DO ATELIÊ NA FORMAÇÃO CONTINUADA DO ARTETERAPEUTA

 


Por Eliana Moraes – MG

naopalavra@gmail.com

 

Cada vez mais o Não Palavra vem se estabelecendo como um espaço de colaboração à formação continunada do arteterapeuta. Tomamos como inspiração para a produção de conteúdos o tripé que sustenta um bom terapeuta – terapia pessoal, supervisão e  grupo de estudos -, mas acrescentamos para a Arteterapia uma quarta perna: a prática criativa continuada.

O exercício contínuo de uma experiência pessoal com os materiais artísticos, com o  processo criativo e a própria produção de imagens sustenta um arteterapeuta em sua atuação de forma consistente. O caminho de contato pessoal com a prática criativa se inicia no curso de formação, mas na realidade se estende a todo o tempo da formação continuada do arteterapeuta, ou seja, enquanto o este se mantiver ativo em seu estudo e práticas. É essencial que ele conheça e experimente por si mesmo os potenciais e as propriedades da grande variedade de materiais possíveis a serem usados em um setting arteterapêutico, em cada uma de suas singularidades. É importante que vivencie os processos de estímulos, resistências, enfrentamentos, desbloqueios, busca e encontro de soluções, encantamentos, mas sobretudo, a criação de intimidade com as materialidades para que possa dar a sustentação necessária para os futuros experienciadores da Arteterapia, que a seu tempo viverão estes enfrentamentos na condição de pacientes/clientes.

Eleger um espaço de experimentação e criação de intimidade com os materiais arteterapêuticos compõe a quarta perna que sustenta o arteterapeuta, alcançando aqueles que não possuem experiência anterior com as materialidades e práticas artísticas, mas também aqueles que possuem essa experiência, porém necessitam vivenciar uma experimentação mais intuitiva, sensível e emocional para o criar.

Estas reflexões foram geradas e aquecidas a partir de minha experiência pessoal (uma arteterapeuta advinda da psicologia), das minhas observações como supervisora de arteterapeutas em atuação, mas também pela oportunidade de lecionar em cursos de pós graduação em Arteterapia e observar, de forma geral, alguma carência de intimidade com os materiais e processo criativo dos estudantes e profissionais. Tenho me motivado a gerar espaços de ateliês arteterapêuticos destinados à arteterapeutas por acreditar que desta forma os alunos e profissionais estarão mais sustentados e instrumentalizados para uma prática arteterapêutica rica, consistente e potente.

 

Um embasamento teórico



Para o segundo semestre de 2022, adotei como leitura base o livro “Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte” de Stephen Nachmanovitch. Tenho o estudado em conjunto com minha grande parceira, Vera de Freitas, e a partir dele tenho produzido diversos conteúdos para o Não Palavra e para os cursos de formação que leciono.

No texto presente, trago fragmentos do precioso capítulo “Prática”, através do qual o autor discorre sobre a importância de uma prática criativa continuada:

Qualquer pessoa que pratique um esporte, um instrumento ou qualquer forma de arte tem que se exercitar, experimentar, treinar. Só se aprende fazendo. Existe uma enorme diferença entre os projetos que imaginamos e os que realmente colocamos em prática. É como a diferença entre um romance de ficção e um encontro real de dois seres humanos, com todas as suas complexidades. Todos sabemos disso, embora inevitavelmente nos deixemos abater diante do esforço e da paciência necessários à realização de um projeto. Uma pessoa pode ter fortes tendências criativas, gloriosas inspirações e elevados sentimentos, mas sem criações concretas não há criatividade...

A fórmula estereotipada que diz que “a prática leva à perfeição” traz consigo alguns sérios e sutis problemas. Imaginamos que a prática seja uma atividade executada em preparação para uma performance “de verdade”...

A prática não é só necessária à arte, ela é arte. (NACHMANOVITCH, 1993, 69-70)

Nachmanovitch descreve com destreza sobre um ponto de equilíbrio que um artista precisa encontrar, em relação à sua técnica. Penso que este ponto de equilíbrio deve servir em muito de inspiração para o arteterapeuta em sua formação. Por um lado, temos o arteterapeuta que não possui profundo conhecimento prévio sobre a utilização dos materiais:

O aspecto mais frustrante e aflitivo do trabalho criativo, um aspecto que enfrentamos na prática diária, é a descoberta de um abismo entre o que sentimos e o que somos capazes de expressar. “Falta alguma coisa”...

A técnica pode transpor esse abismo... Se improvisamos com um instrumento, uma ferramenta ou uma ideia que conhecemos bem, possuímos uma sólida técnica para nos expressarmos. (NACHMANOVITCH, 1990, 70)

Para criar, é preciso ter técnica e libertar-se da técnica. Para isso, precisamos praticar até que a técnica se torne inconsciente...

Quando a técnica se oculta no inconsciente, revela esse mesmo inconsciente. A técnica é o veículo capaz de trazer à tona o material inconsciente contido no mundo onírico e mítico para que ele possa ser visto, falado ou cantado. (NACHMANOVITCH, 1993, 75)

Neste trecho, o autor nos inspira sobre a importância do arteterapeuta, pouco a pouco, se dedicar a conhecer mais profundamente as técnicas e materiais que oferece em seu setting. Não para “dar aula de artes”, mas para instrumentalizar o seu paciente para começar a se expressar em outra linguagem e sustentar o campo de enfrentamento do “novo” ao experienciador da Arteterapia.

Aqui reside também um desafio específico para alunos que se formaram em tempo de cursos online, modalidade que muito nos surpreendeu positivamente, mas que como qualquer fenômeno humano, possui suas sombras e pontos cegos. O desafio desta geração de arteterapeutas se faz em buscar de forma mais assertiva espaços em que possam se dedicar à “mão na massa” em experimentação à riqueza e pluralidade de materiais possíveis a serem usados na Arteterapia.

Se por um lado temos arteterapeutas que não possuem tanta intimidade com os materiais, por outro, temos os que vêm da arte e trazem em sua bagagem uma sólida relação com a técnica. Entretanto, segundo o autor:

A técnica pode transpor esse abismo. Mas também pode alargá-lo... a técnica pode se tornar sólida demais – sabemos tão bem o que deve ser feito que nos distanciamos ao frescor da situação presente. Esse é o perigo inerente à competência que se adquire pela prática. A competência que perde suas raízes de diversão se transforma em rígido profissionalismo...

Por maior que seja a técnica adquirida, precisamos reaprender continuamente a tocar como um principiante, com o toque de um principiante, com o sopro de um principiante, com o corpo de um principiante. Só assim poderemos recuperar a inocência, a curiosidade, o desejo que nos impeliu a tocar. Só assim poderemos encontrar a necessária unidade entre prática e performance. (NACHMANOVITCH, 1993, 70)

Aqui está o desafio de arteterapeutas que já possuem uma relação com a arte e a técnica: vivenciar o processo criativo não por meio de um registro racional e extrovertido, mas um registro intuitivo, emocional e introvertido. Para se encontrar esse registro interno realmente propício para a criação é um processo de (re)construção.



Assim entendemos que o ponto de equilíbrio da técnica na arte e na Arteterapia, só é possível a partir de uma exposição ao exercício contínuo de experimentação:

O exercício, a experimentação, deve estar totalmente livre de julgamento, brotar diretamente do coração...

Quando nos exercitamos, trabalhamos num contexto seguro em que podemos experimentar não apenas o que sabemos fazer, mas também o que ainda não podemos fazer...

A prática dá ao processo criativo um momento de calma, de modo que, quando as surpresas ocorrem (quando elas chegam a nós por acaso ou trazidas do inconsciente), possam ser incorporadas ao organismo vivo da nossa imaginação. Aqui nós realizamos a síntese essencial – alongar os momentos de inspiração até transformá-los em fluxo contínuo...

A perícia nasce da prática; a prática nasce da experimentação compulsiva mas prazerosa... E de uma sensação de  deslumbramento... (NACHMANOVITCH, 1993, 73-74)

Torna-se responsabilidade do arteterapeuta eleger um tempo e um espaço propício para que possa manter a chama da sua criatividade sempre ativa. Esse “espaço sagrado” é chamado de “temenos”:

... aprendi que grande parte da eficácia da prática reside na preparação...

Minha preparação específica começa quando entro no temenos.  Na Grécia antiga, o temenos era um círculo mágico, um espaço sagrado dentro do qual a atividade estava sujeita a regras especiais e acontecimentos podiam ocorrer livremente. Meu estúdio, ou seja, qual for o lugar onde eu trabalho, é um laboratório onde realizo experimentos com minha própria consciência...

Prepare suas ferramentas de trabalho. Crie e desenvolva um relacionamento íntimo, vivo e duradouro com suas ferramentas: desde sua escolha até a limpeza, a manutenção e o reparo...

Quando faço uma apresentação ao vivo, o palco e todo o teatro se tornam o temenos...

Com o tempo aprendi a tratar cada sessão solitária em casa da mesma maneira como trato uma apresentação pública. Em outras palavras, aprendi a dedicar a mim mesmo o cuidado e respeito que dedico ao público. E não foi uma lição sem importância. (NACHMANOVITCH, 1993, 75-77)

Considero este um belo e precioso conselho do autor ao arteterapeuta: viva sua experimentação pessoal com a arte e a Arteterapia com o mesmo cuidado e respeito que você as oferece em seu setting. Experiencie um têmenos da mesma forma que você o sustenta. Beba da fonte que você distribui. Alimente-se da nutrição que você disponibiliza.


Referência Bibliográfica:

NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. Summus Editorial, SP. 1993.

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Sobre a autora: Eliana Moraes



Arteterapeuta e Psicóloga
Pós graduada em História da Arte
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso.
Cursando MBA em Logoterapia e Desenvolvimento Humano
Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Dá aula em cursos de formação em Arteterapia em SP e MS. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia online, sediada em Belo Horizonte, MG. 

Autora dos livros "Pensando a Arteterapia" Vol 1 e 2

Organizadora do livro "Escritos em Arteterapia - Coletivo Não Palavra"

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