segunda-feira, 28 de outubro de 2019

UNIVERSO ARTETERAPÊUTICO EM RODA DE CONVERSA I: IMAGINAÇÃO ATIVA

Por Andréa Goulart de Carvalho – BH/MG
goulart17@hotmail.com
Instagram @agc017
Facebook ARTES & Arteterapia




Ascenção Florescente – Cartão de SoulCollage®
Andréa Goulart de Carvalho


Falar em Universo Arteterapêutico não é nenhum exagero. A Arteterapia é multidisciplinar. Conjuga saberes da arte, da psicologia, filosofia, mitologia, das ciências em geral. Tece sua história e seu trajeto através da experiência e vivências embasadas em literatura de qualidade e vem atuando, de maneira eficaz, em áreas da saúde, da educação, na empresarial, entre outras.


Com uma visão aberta e inovadora a AMART, Associação Mineira de Arteterapia, me convidou para mediar a 1a Roda de Conversa, realizada no dia 5 de setembro último, com o objetivo promover debates para troca de saberes e fazeres referentes ao imenso universo Arteterapêutico.

A perspectiva é promover a nossa profissão/atividade, embasar profissionais arteterapeutas, estudantes e interessados na gama da Arte/Saúde, com conteúdos pertinentes, em seus muitos aspectos.

As Rodas de Conversa são ferramentas didáticas, utilizadas principalmente na educação e também em grupos diversos, para diferentes fins como aprendizagem, busca de soluções econômicas, politicas, etc. Para esta 1a Roda de Conversa da AMART foram escolhidos a Imaginação Ativa e a Visualização Criativa como temas.

Me atenho aqui ao tema da Imaginação Ativa e tentarei relatar um pouco do que foi apresentado para o grupo. Tarefa desafiadora com um assunto tão vasto e de difícil compreensão, abordado apenas teoricamente, sem uma prática vivencial, a qual deve ser conduzida por um profissional psicólogo/analista, habilitado para tal.

Nos posicionamos em círculo, respiramos profundamente e iniciamos o nosso encontro com uma a Visualização Criativa – tema da atividade e uma das formas de acesso ao inconsciente, que difere da Imaginação Ativa e poderá ser abordada, com mais detalhes, numa próxima oportunidade.

Como mediadora pedi que cada um buscasse uma imagem com a qual gostaria de ser apresentado naquele momento. No centro da roda, sobre uma toalha estendida no chão, há uma vela, alguns papeis de desenho e giz de cera.

Terminado o breve momento de introspecção os participantes representaram plasticamente a imagem vinda da imaginação. Flor, sol, animal, objetos, formas e cores diversas. Cada desenho é observado e apresentado pelo seu criador, dizendo: Eu sou um sol brilhante; Eu sou uma bonita flor; Eu sou um elefante colorido e engraçado, e assim por diante.

Pedi que reservassem os desenhos e que “ficassem com as imagens”.
O que é ficar com a imagem? Isto é a Imaginação Ativa? Respirar e deixar vir uma imagem? E o que fazer com ela? Em que isto me auxilia? Como atua em minha vida, em minhas questões?

Com estes pertinentes questionamentos a Roda de Conversa efetivamente foi iniciada com a apresentação, em Power Point, de alguns dados sobre Jung e o surgimento da Imaginação Ativa. Enquanto mostro as lâminas seguimos conversando sobre a coragem do médico psiquiatra e cientista que, corajosamente, se submeteu ao próprio experimento e, através da vivência, estruturou a teoria da Psicologia Analítica e a própria IA. Outro aspecto importante  é o fato de Jung ter sidr filho de pastor protestante e que sua mãe sofreu a perda de três filhos antes do seu nascimento, dados interessantes e muito relevantes em sua formação. Sabemos que desde muito criança era criativo, curioso, introspectivo, solitário e, com sua enorme capacidade imaginativa, se envolvia em pensamentos e brincadeiras fantásticas e surpreendentes. Por vezes sentia possuir duas personalidades, uma de criança e outra de um velho sábio. Esculpiu um pequeno boneco de madeira e fez um pergaminho com um alfabeto criado por ele mesmo. Tinha visões e experiências diversas, incomuns para sua idade. Era culto, desde cedo teve acesso à vasta biblioteca de seu pai. Tais visões e brincadeiras foram, mais tarde, constatadas como experiências de conteúdo arquetípico.

Ainda jovem, ao se especializar em psiquiatria, elaborou os estudos com as Associações Livres de Palavras originando a teoria dos Complexos o que favoreceu, em 1906, o contato com Freud.

O contato foi intenso e perdurou até que, em 1913, quando divergiram a respeito do conceito de libido, acarretando uma ruptura do contato, uma forte crise existencial e muitos questionamentos internos, inspirando-o na busca de seu mito pessoal.

A crise gerada pela ruptura com Freud nos presenteou com o que conhecemos como O Livro Vermelho – Liber Novus, com as experiências das Imaginações Ativas, as ilustrações maravilhosas e enigmáticas.

Alguns dos participantes da Roda de Conversa conheciam, outros não, a publicação do Livro Vermelho que esteve guardada por mais de 40 anos.

Os comentários sobre o conteúdo das experiências de Jung, o formato exótico do livro, sobre Jung ser ou não ser um artista, qual o significado das pinturas e da escrita gótica, foram sendo colocados gerando interesse ainda maior sobre o tema da Imaginação Ativa e as suas singularidades.

Em resposta aos comentários e questionamentos conversamos sobre vários aspectos da vida e obra de Jung que mostram um homem habilidoso e criativo que teve aulas de arte em Paris, apesar do foco não ser a arte. Vimos que anotava suas experiências e estudos em cadernos de capa preta, relatos de suas visões e fantasias e que o Liber Novus é o registro da profunda experiência psíquica na qual Jung mergulhou, durante meses, e elaborou nos 16 anos seguintes, originando a Psicologia Analítica.

Indagamos sobre os motivos de o livro ter ficado guardado, a pedido do próprio Jung, por mais de 40 anos, para ser liberado quando sua obra já tivesse sido mais difundida, finalizando esta parte da conversa indagamos sobre a interrupção da elaboração do Livro Vermelho quando Jung teve contato com a Alquimia, constatando a semelhança da sua experiência com o processo de transformação alquímico denominado o Processo da Individuação.

A  realização de uma IA possibilita, sem garantia, entrarmos em acordo com o inconsciente. Não é uma tarefa fácil. Estamos diante do desconhecido e devemos tomar os devidos cuidados.

Coube a Robert Johnson, na década de 80, a sistematização e publicação do livro: Inner Work: A Chave do Reino Interior (1989), no qual descreve uma forma mais facilitada de como experimentar uma IA.

Uma Imaginação Ativa, para ser verdadeira, requer a participação efetiva do consciente na experiência imaginativa e deve acontecer um diálogo real, livre, espontâneo com as imagens trazidas do inconsciente, que representam as diferentes partes de nós mesmos.


Tempo para conexão – Cartão de SoulCollage®
Andréa Goulart de Carvalho

As imagens podem ser acessadas através e além dos sonhos, por visualização e imaginação criativa, fantasias passivas, através da arte com suas inúmeras formas e técnicas de expressão como a dança,  a pintura, o desenho, o SoulCollage®, o cinema, teatro e a literatura em geral, nos contos de fadas e nos mitos.

A observação quanto aos valores humanos e a ética pessoal, com relação ao conteúdo do inconsciente foi bem frisada, pois as imagens internas são expressão de forças instintivas, como se fossem deuses internos, coletivos, uma vez que tais forças, os arquétipos, são amorais e atemporais.

O surgimento de imagens de pessoas conhecidas e ainda vivas em nossas imaginações deve também ser cuidado. A medida a tomar é modificar a aparência e/ou nome para que as energias e vibrações  emanadas não se transformem em uma espécie de magia.

Após a apresentação do material sobre Jung e IA retomamos as imagens surgidas na Visualização Criativa, como dito anteriormente, uma das formas de acesso às imagens do inconsciente. Cada participante da Roda de Conversa se debruçou em sua representação plástica da imagem buscando reflexões sobre qual e quanta emoção surgiu naquele momento, dando sentido ao comando inicial de “ficar com a imagem”, de cuidar do que é parte de nós, uma faceta do que nos compõe e nos faz sermos quem somos, com nossos acertos e desacertos.


Bad Idea – Cartão de SoulCollage®
Andréa Goulart de Carvalho

As imagens e diálogos foram compartilhadas e as questões referentes a conceitos como a Sombra, a Persona, os Complexos, os Arquétipos e demais aspectos da Psicologia Analítica foram sendo comentados, proporcionando maior entendimento do que surge e é trabalhado quando acessamos nosso inconsciente, através das várias ferramentas de que dispomos.

Encerramos a 1a Roda de Conversa ávidos por mais encontros como este, para mais ricas trocas de conhecimento e saberes.

A Arteterapia é instigante, abrangente e a iniciativa da AMART tem grande potencial, prometendo ficar cada vez melhor!
Grata pela oportunidade!

Indicações de leituras
- Johnson, Robert A. , 1989, (Inner Work) A Chave do Reino Interior
- Boechat, Walter , 2014, O Livro.14 Vermelho de C.G,. Jung – Jornada para as profundezas desconhecidas.
- Cadernos Junguianos, v. 14, n. 14, setembro 2018. São Paulo: AJB,2018.
- Sanford, John A.,1987, Os Parceiros Invisiveis: o masculino e o feminino dentro de cada um de nós.
Jung, Carl G., O Homem e seus símbolos. Edição Especial brasileira- 3a Edição.
_____________ O Desenvolvimento da Personalidade, OC.
- Kast, Verena, 2019, Jung e a Psicologia Profunda, um guia de  orientação prática.
  ___________ 2016, O caminho para o si mesmo.
- Hillman, James, 2010, Ficções que Curam , Psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler.
- Barcellos, Gustavo,2012, Psique e imagem , estudos de psicologia arquetípica.
- Franz, Marie-Louise von, 1988, O caminho dos Sonhos.
- Shamdasani, Sonu, 2015, O livro Vermelho, Liber Novus.
- Lyra, Sonia (Org.)[et. al.], 2016, Imaginação Ativa e Criativa, Ichthys.
   ___________2017, Imaginação Ativa, matéria – prima da cura e quintessência da Arte, Ichthys.
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Sobre a autora: Andréa Goulart de Carvalho


Bacharel em Desenho e Gravura pela EBA/UFMG; 
Arteterapeuta - AMART 107/0112, afiliada a UBAAT. 
Facilitadora de SoulCollage®/2015; Artista Plástica; 
Atendimento arteterapêutico individual e em grupos no AME – Arteterapia
Ministrante de curso introdutório de SoulCollage® e aulas de desenho no Ateliê de Artes AGC Artes & Arteterapia. 
Pós graduanda em Psicologia Analítica na USCS.



segunda-feira, 21 de outubro de 2019

CONVERSANDO COM CORA CORALINA: UM RELATO



Por Eliana Moraes (MG) RJ

naopalavra@gmail.com
Instagram @naopalavra


No último mês de setembro, a Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro, promoveu o ciclo “Encontros de Arteterapia” ao qual tem como proposta que diversos espaços de Arteterapia abram suas portas oferecendo oficinas com temas variados e que recebam o grande público. O objetivo é promover a Arteterapia, seja para os próprios arteterapeutas e estudantes como também para os interessados em experienciá-la.

Neste contexto, o Não Palavra em parceria com o Centro Cultural Venha Conosco, promoveu o encontro “Conversando com Cora Coralina”. O texto de hoje se faz um relato sobre esta experiência tão marcante para cada um que participou, a começar pelas próprias facilitadoras: Vera de Freitas e eu.

A proposta inicial deu-se para duas turmas, no dia 13 de setembro, mas a procura foi tão grande que estendemos para um terceiro encontro no dia 11 de outubro. Ao todo foram 36 participantes que nos deram um feedback bastante positivo.

A ideia de convidar Cora Coralina para nosso diálogo, inicialmente se deu por dois motivos. Primeiramente porque Cora, por sua própria história de vida já nos ensina que nunca é tarde para realizarmos nossos sonhos, pois sabemos que embora ele escrevesse desde sua adolescência, publicou seu primeiro livro aos 75 anos de idade, deixando sua marca e fazendo história na literatura brasileira. Mas escolhemos Cora principalmente porque ela era uma doceira de profissão e vocação: era especialista em fazer doces em compotas, mas, mais profundo do que isto, em oferecer “doces” com seus versos.

Está claro que estamos vivendo uma contemporaneidade bastante pesada. Densos fenômenos coletivos que transbordam para as histórias dos indivíduos inseridos na cultura. Cedermos a pensamentos negativos, um olhar pessimista e uma desesperança é o caminho natural. Entretanto, resgatamos uma poesia de Cora Coralina que, embora antiga, parece ter sido escrita para nossos dias. Que o leitor a saboreie como um doce:

Ofertas de Aninha
(Aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

“Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”.
6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.145.

Proposta arteterapêutica



A poesia é lida pelo grupo e relida pela facilitadora, pois assim é a poesia: deve ser saboreada e degustada para que possamos entender cada vez mais em profundidade sua mensagem. O debate sobre os versos levanta palavras como otimismo, esperança, persistência, recomeços, resiliência, fé, amor, relações, sentido e outras.

Nesta poesia Cora aborda aspectos do passado, do seu presente e seu olhar para o futuro. Escrevendo em primeira pessoa, escreve versos autobiográficos sobre aquilo que viveu, que aprendeu e que acredita.

De posse desta inspiração, sugerimos que cada participante traduzisse o que esta poesia despertava em si para a imagem. Com um olhar autobriográfico, que fizesse uso da técnica da Assemblagem para deixar que diversos materiais disponíveis o  atravessasse e que assim formasse uma composição de tudo aquilo que viveu, aprendeu e acredita.



Vera e eu fomos testemunhas de processos tão bonitos de participantes que fizeram um contato profundo com sua história e um convite a se apropriarem dos seus presentes e futuros.

Encerramos o encontro oferecendo uma compota com doces versos de Cora e a sincronicidade se encarregou de entregar a cada um a mensagem que lhe era verdadeiramente encaminhada.



Ouvimos relatos de que aquele encontro foi um oásis em meio às demandas da vida. Que saíram daquele encontro muito diferentes de como entraram – afinal não seria este o sentido da Arteterapia? Um encontro com a experiência do Belo, eis uma das minhas grandes motivações como arteterapeuta na contemporaneidade.

Conversar com artistas é uma prática extremamente enriquecedora. É por isso que Vera e eu estamos motivadas a promover outros encontros como este. Em breve, notícias sobre os próximos!



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Sobre a autora: Eliana Moraes





Arteterapeuta e Psicóloga.
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte.

Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia. Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.
Autora do livro "Pensando a Arteterapia" CLIQUE AQUI

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

TRANSDISCIPLINARIDADE: A ARTETERAPIA ATRAVESSA OS 12 PASSOS


Por Paulo Antunes - RJ

contato@ateliedoself.com


O Processo Alquímico

A ARTETERAPIA ganha espaço no universo terapêutico. Porém a aplicação de métodos arteterapêuticos na abordagem, tratamento e manutenção da abstinência às drogas, DROGADICÇÃO (dependência química), ainda carece de reconhecimento e sistematização. Praticamente, não existem arteterapeutas especializados em reabilitação de ADICTOS (dependentes químicos). Até mesmo encontrar literatura específica como referência para trabalhos e pesquisas é navegar sem bússola. Mesmo as clínicas que anunciam “trabalhos de arteterapia”, na grande maioria, não sabem sequer o que é ARTETERAPIA. Não se trata aqui de premissa, mas de uma realidade. Então, vamos escrever...

Lendo artigos de arteterapia, me deparei com a seguinte ideia de Ângela Philippini sobre “Transdisciplinaridade e Arteterapia”: “Parece-me que, quanto maior o afastamento da práxis arteterapêutica, maior também será a ênfase na tentativa de vincular arteterapia a uma única área de conhecimento. Mas aqueles que estão realmente envolvidos com o dia-a-dia da prática arteterapêutica sabem, de forma visceral, que o campo é transdisciplinar.” ¹
Pensei imediatamente nas clínicas, centros de reabilitação, comunidades terapêuticas que cuidam de adictos e adictas, sejam de internação ou ambulatorial. E na “profecia” de que trabalhar com adicção é trabalhar a frustração. E na massificação de tarefas terapêuticas sem o aproveitamento da ludicidade que ocupa parte da psique do adicto. E no uso abusivo de medicamentos para tratar de pacientes que apresentam comprometimento em laços afetivos, hábitos e comportamentos, mais do que nas esferas cognitiva e psiquiátrica. E nos baixos índices de adictos que se mantêm em recuperação, ou seja, a enorme maioria que recai mesmo após meses internados.

E lembrei-me do “Método Minnesota e os 12 Passos”, que teve origem no Estado de Minnesota, capital Sant Paul, ao norte dos EUA, por isso recebeu este nome e é utilizado na grande maioria das instituições com este fim.

Ora, o “Programa dos 12 Passos” é baseado essencialmente em mudanças de paradigmas, em transformações comportamentais, respeitando a individualidade de cada paciente que aceita o tratamento. Começou em 1935, com o surgimento do AA (Alcóolicos Anônimos), pelos seus idealizadores Bill e Bob, e deu origem ao NA (Narcóticos Anônimos), AL-ANON e NAR-ANON (familiares e amigos de compulsivos), CCA (Comedores Compulsivos), DASA (Dependentes de Amor e Sexo) e várias outras organizações anônimas que ajudam efetiva os adictos de toda natureza e seus familiares.

Estas ideias reverberaram em minha cabeça por anos. Acompanhavam-me em clínicas por onde trabalhei, congressos, workshops, simpósios, curso de pós-graduação. Até que fui convidado pelos Narcóticos Anônimos para criar, produzir e montar peças de teatro juntamente com os membros de NA. A partir daí, o convívio com aqueles adictos, o empirismo na aplicabilidade do programa foram transformando a minha percepção dos 12 Passos e a necessidade de uma abordagem mais dinâmica veio com folheto “Uma Outra Perspectiva” - de Narcóticos Anônimos:  Se pudermos chegar a um acordo do que não é adicção, então o que ela é talvez nos surja com maior clareza.”, mais adiante fala que “Ação Criativanão é adicção, “embora seja um esforço interno de reconstrução ou de reintegração das nossas personalidades fragmentadas ou em desordem.” Pronto. Eureca! Ou melhor, Alquimia: os 12 Passos com Arteterapia!

Arte, Terapia e Ação



Minha teoria é: se descobrir o que bloqueia uma pessoa, poderá também achar a contraparte mitológica para essa dificuldade de passagem de uma etapa para a outra.” Joseph Campbell. ³  Adictos são bloqueados. “Parece que nós, adictos, tropeçamos em algum ponto desse percurso. Parece que nunca alcançamos a auto-suficiência que os outros encontram.” 4 , Narcóticos Anônimos. Essa ideia vai de encontro aos conceitos da Psicologia Analítica de Carl Jung e, à luz destes, pode ser analisada. Em 1934, Carl Jung escreveu para Bill Wilson, criador dos 12 Passos, e prognosticou: “... você (Bill) já adquiriu uma visão superior do problema do alcoolismo, bem acima dos lugares comuns que via de regra, ouve-se sobre ele (alcoolismo).” 5.

Diante desse aval do mestre e inspirado pelas palavras de Nise da Silveira “A palavra fracassa. Mas a necessidade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva o indivíduo a configurar suas visões, o drama de que se tornou personagem, seja em formas toscas ou belas, não importa.” 6 , me lancei na transcodificação da literatura dos 12 Passos para a produção artístico-terapêutica, a ARTETERAPIA. O entendimento e a internalização do programa universal de Bill Wilson toma as formas das imagens e símbolos do inconsciente, através de técnicas e materiais artísticos diversos.

Os 12 Passos foram adaptados a mais de 30 irmandades anônimas para os mais variados tipos compulsivos. Primeiramente, possibilitam o indivíduo reconhecer a sua impotência diante do objeto da compulsão e da perda de controle da sua vida; em seguida, a admissão de um poder superior, individual ou coletivo, que acolha as suas vontades e a aceitação a novos princípios de vida. Daí, por diante, os Passos avançam na busca do autoconhecimento e finalmente levam o adicto à jornada da individuação, que perpassa por um processo de rendição, reconhecimento do eu individual, do outro e da sociedade; personas (máscaras), sombras, arquétipos e mitos. É imprescindível ao arteterapeuta o conhecimento profundo da matéria dos 12 Passos e dos processos psicocomportamentais dos adictos.

O fazer arteterapêutico na cena dos 12 Passos é a utilização de materiais e técnicas artísticas diversas, cada qual adaptada ao devido passo, respeitando o propósito e a proposta do passo, de acordo com a linguagem e natureza dos materiais e efeitos das devidas técnicas artísticas. Surgem com o fazer artístico imagens do consciente e do inconsciente de locais de difícil acesso da psique, com significados arquetípicos e mitológicos, como também aparecem figuras e formas da imaginação ativa. A percepção do terapeuta tem que estar focada no que se apresenta plasmado nas imagens produzidas pelo paciente, em consonância com as suas palavras, colocando também foco nas expressões do corpo, gestual e postura, que o acompanham. A manifestação do espírito artístico, em toda sua extensão – colagem, argila, pintura, mosaico, poesia, expressão corporal, fotos, recicláveis – é o grande protagonista desta obra juntamente com os 12 Passos de AA. O arteterapeuta estará lá para anuir, orientar e devolver para o paciente aquilo que é próprio da sua demanda psíquica.

Minha proposta é oferecer uma nova abordagem, outra perspectiva, que acate a demanda do adicto no mesmo nível de ludicidade e transcendência que os usuários, equivocadamente, buscam nos efeitos das drogas. E com arte e terapia revelar o verdadeiro potencial dessas pessoas, que sofrem com as drogas o que poderia ser transmutado em criatividade.

“Uma flor nasceu na rua!...
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não esta nos livros.
                                                                                 É feia. Mas é realmente uma flor...
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
(Carlos Drummond de Andrade – A FLOR e a NÁUSEA)



BIBLIOGRAFIA
¹ Philippini, Ângela, Revista Imagens da Transformação, nº 2, 1995 - Artigo publicado originalmente no Livro Questões de Arteterapia. Universidade de Passo Fundo, RS
² Uma Outra Perspectiva. COPYRIGHT-1993 by NARCOTICS ANONYMUS World Service, Inc.
³ CAMPBELL, J. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athenas, 1990.
4 O triângulo da auto-obsessão. COPYRIGHT-1991 by NARCOTICS ANONYMUS World Service, Inc.
5 https://passeamensagem.wordpress.com/2013/03/29/carta-de-bill-w-a-carl-jung/
6 SILVEIRA, N. O Mundo das Imagens. São Paulo: Ed. Ática, 2001.

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Sobre o autor: Paulo Antunes

Formação: Arteterapeuta com especialização em Dependência Química e outras compulsões. Autor, ator e diretor de teatro.
Área de atuação/projetos/trabalhos: Paulo Antunes realiza atendimentos individuais e em grupo há 25 anos, tendo atuado durante este período também na Clínica Ana Café Núcleo Integrado de Psicologia e Psiquiatria (Barra da Tijuca/Recreio-RJ). Idealizador e sócio-fundador do Ateliê do Self (Niterói-RJ), onde realiza atendimentos individuais, cursos e oficinas e dirige o grupo "Teatro para Si". Professor da Pós-graduação e da Formação em Arteterapia da Clínica Pomar (RJ). Professor da Pós-graduação "Arte e Cultura na Saúde" da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Contato: (21) 996390881

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

SONHOS E A "ASSOCIAÇÃO LIVRE DE IMAGENS": UM RECURSO NO PROCESSO ARTETERAPÊUTICO

"The Reckless Sleeper" René Magritte

Por Sueli Antonusso - SP 
antonusso@gmail.com


DAS PEDRAS
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada, um leito,
uma casa, um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
(...)
Cora Coralina

A ideia de escrever este segundo texto para o blog surgiu da minha experiencia com imagens oníricas, imagens que sempre me instigaram a buscar significados. Tenho imagens de alguns sonhos guardadas na memória, de outros, tenho registradas no meu caderno de sonhos. Lembro de um sonho que tive numa fase de transição, por volta da meia idade. Um momento de crise no qual buscava por outro caminho a seguir. Nessa época estava insatisfeita com a profissão de Designer de Interiores que exercia há 20 anos. Fazia terapia com uma psicóloga que trabalhava na abordagem transpessoal e usava a técnica da imaginação ativa nos atendimentos. No sonho, eu

estava levando minha filha para fazer a matrícula, dela, no colégio. Atravessamos um viaduto a pé para evitar um cruzamento. Ao chegar na secretaria da escola a matrícula não era para minha filha, mas para mim. A secretária falou que eu não poderia fazer matrícula pois faltava cursar uma disciplina. Fiquei indignada e aleguei ter diploma e colado grau. Perguntei qual era a disciplina. Aí aparece alguém dizendo que era a psicologia.

Esse sonho foi impactante e, com a ajuda da psicoterapia constatei, entre outros conteúdos, que uma das questões indicava que havia algo a ser “revolvido” em minha profissão. Entendi que era uma fase de transição, incertezas e mudanças e, assim iniciei uma especialização em psicanálise.

Logo que terminei a formação em psicanálise surgiu um sonho recorrente:

eu procurava, dentro de um condomínio, por uma casa em construção que meu pai havia comprado para nossa família. O condomínio era um lugar distante do bairro onde morávamos, as casas eram bonitas, havia várias casas prontas e pessoas morando, mas a nossa nunca ficava pronta. Em minhas visitas, ao local, eu subia ao sótão onde seria o meu quarto, mas o local sempre estava escuro e fechado e eu me sentia frustrada por não conseguia entrar.

Do ponto de vista de Jung (2016) sonhos recorrentes podem constituir uma “tentativa de compensação para algum defeito particular que existe na atitude do sonhador em relação à vida; (...) Pode também, ser a antecipação de algum acontecimento importante que está para acontecer.” (p. 62).

Durante esse tempo, criei o Workshop de Decoração “A casa dos meus sonhos” - uma vivência na qual mesclava decoração com psicanálise. Depois disso, tive o mesmo sonho só mais uma vez, mas o sótão estava iluminado e eu pude entrar e me apropriar do espaço.

Considero importante ressaltar aqui que a intenção deste texto não é fazer análise nem interpretação de sonhos, pois demandaria um estudo aprofundado que está muito além do âmbito desta proposta.

Nessa fase iniciei meu percurso em direção à Arteterapia, participei de grupos de estudos e fiz uma pós-graduação em Arteterapia com embasamento na teoria junguiana.

Dessa forma, parte da teia tecida pelas imagens que apareciam em alguns dos meus sonhos, entrelaçadas com a psicanálise, com a filosofia, costuradas com fios e cores da vida e da arte foram formando minha teia de Ariadne. Além disso, compreendi que a vida nos coloca diante de situações inesperadas que nos sensibiliza e instiga a promover transformações surpreendentes.

Dando continuidade à formação como arteterapeuta venho participando do ciclo de palestras mensais sobre Arteterapia e História da Arte e grupo de estudos com Eliana Moraes em São Paulo. O estudo sobre o movimento surrealista despertou meu interesse e inspirou-me a usar as imagens criadas por Renê Magritte e Salvador Dalí associadas às imagens oníricas trazidas pelos pacientes nos atendimentos arteterapêuticos individuais. Utilizo os fundamentos da psicanálise e da teoria junguiana como aporte teórico, tendo em vista que a Arteterapia dialoga com diferentes abordagens em sua prática arteterapêutica.
Segundo Moraes (2018),

as imagens oníricas surrealistas apresentam-se como potente estímulo projetivo na prática da Arteterapia. Pois, assim como os sonhos, impactam o espectador com a sensação de que são ao mesmo tempo familiares e desconhecidas, causando estranhamento. (p. 152).

Os surrealistas buscaram inspiração na teoria psicanalítica enfatizando o papel do inconsciente na atividade criativa como meio de expressar o mundo inconsciente do sonho e assim desligar-se das exigências da consciência lógica e racional de vida cotidiana. A técnica de transposição de imagens entre os sonhos e a realidade, característica do movimento surrealista, “possibilita-nos a reprodução da técnica da associação livre da psicanálise, originalmente por palavras, na associação livre por imagens, sendo essa outra forma do sujeito se falar tão legítima quanto”, segundo Moraes (2018, p.148).

Caso clínico

Eunice (nome fictício), 44 anos, mulher aparentemente forte e inteligente, casada, mãe de dois filhos adolescentes, trabalha na área financeira de uma empresa de porte médio, trouxe o seguinte sonho:

Cheguei num lugar estranho onde havia uma escada de cimento que tinha sido pintada de preto. Aí alguém apareceu e perguntei quem tinha pintado e uma pessoa falou que foi um homem que tinha saído para fazer o que ele gostava, que era aprender a trabalhar com terra. Comecei a subir a escada e percebi que o homem não tinha terminado de pintar, então fui subindo e pintando cada degrau. Quando cheguei no topo vi que tinha acontecido uma demolição das paredes, tinha ficado só uma plataforma e restos do entulho das paredes derrubadas, no chão. De repente aparecem três homens tocando instrumentos vestidos com roupa colorida, como se fossem mexicanos, sentados em cima de um caixão de defunto todo preto. 

Após ouvir seu relato, como sensibilização, pedi para Eunice fechar os olhos e entrar em contato com as sensações do sonho. Após algumas tentativas ela disse não conseguir sentir nenhuma sensação, “apenas um estranhamento” (sic). Sugeri que Eunice desenhasse a imagem do sonho a qual também resistiu. Então, para auxiliar o contato com as sensações apresentei algumas imagens de René Magritte para facilitar a associação com as imagens do sonho, visto que a Arteterapia possibilita a utilização de diferentes recursos expressivos.

Eunice escolheu a imagem – “O domínio encantado IX (1953)”.



Imagem do sonho de Eunice

Depois de um tempo observando a imagem, do quadro de Magritte, Eunice comentou que se sentia como “a pessoa que está olhando de dentro da árvore” (sic)... “ela parece ter uma base firme, que é o tronco da árvore, mas seu olhar está voltado para fora...parece que fora, o ambiente é árido e rígido, dá um pouco de medo. Lá atrás tem uma montanha em forma de águia que assusta, mas também desperta o desejo de voar longe”. (sic).


A partir dessa observação parece que Eunice começou perceber algumas das questões que estavam “obscurecidas”. Então, sugeri a escrita criativa para expressar seus sentimentos.

 “Quero voar...
Quero voar, mas a terra me segura com seus apuros.
Quero voar, mas a vida me segura e sinto dor.
Quero voar longe, mas meu voo é rasante.
O que me impede de voar longe?
O medo da vida?
O medo da morte?
O medo da perda?
O medo do perdão?
O medo do medo?
O medo de ser?
O medo de vencer?
O medo de viver?
O medo de ser livre?”

Dessa forma, Eunice pode entrar em contato com o sentimento de solidão e o medo de uma provável separação devido ao divórcio iminente o qual queria evitar a todo custo. A partir da imagem de Magritte, ela foi associando às imagens que emergiram no sonho possibilitando o contato com as sensações imprecisas e incompreensíveis imersas em seu inconsciente conseguindo aproximá-las da consciência e só depois conseguiu desenhar uma imagem do sonho.

O contato com o conteúdo desse sonho teve vários desdobramentos, inclusive a elaboração de alguns lutos, um processo que já vinha delineando-se e que pode ser trabalhado nos encontros seguintes usando diferentes recursos da Arteterapia.

O emprego da Arteterapia como recurso surpreende por sua riqueza de possibilidades no setting arteterapeutico, favorece o acesso a camadas mais profundas do psiquismo promovendo insigths e favorecendo a elaboração de conteúdos inconscientes de forma mais amena e prazerosa.

Assim venho construindo a minha trajetória, sigo, como Ariadne, tecendo a minha teia, só que desta vez seguindo meus sonhos diurnos aceitando os desafios dos fios que se entrelaçam formando nós e criam imagens surpreendentes a cada teia tecida.

REFERENCIAS
JUNG, C.G et al. “O homem e seus símbolos”. trad. Maria Lúcia Pinho. 3. ed. especial. Ed. HaeperCollins. Rio de Janeiro, 2016.
Participação no Workshop “Sonhos – Discursos da Alma”. Ministrado por Marisa Catta Preta. Instituto Freedom. Carga horária – 8 horas. 

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Sobre a autora: Sueli Antonusso 



Arteterapeuta, com registro na AATESP – 453/0618. Especialista em Psicanálise e Orientação Profissional e Carreira pelo Instituto Sedes Sapientiae. Bacharel e Licenciada em Filosofia pela PUC-SP. Idealizadora do projeto “CICLOS – que idade a idade tem?”. Atua com atendimento clínico à jovens, adultos, idosos e grupos, com o foco voltado para a ressignificação da história de vida e o acolhimento de demandas em fase de finalização e/ou início de Ciclos, como: início da idade adulta, maturidade, transição de carreira e tantas outras que fazem parte dos Ciclos de Transição. Coordenação de oficinas de Formação e Capacitação para educadores da rede pública. Realiza palestras e cursos destinados ao desenvolvimento pessoal e realização do potencial criativo com o objetivo de incentivar a exploração do novo e encorajar a autonomia.