segunda-feira, 24 de setembro de 2018

GESTALT E ARTE: O CONTATO


Por Valéria Diniz – RJ
valdiniz.td@gmail.com
Instagram @valeriadiniz50
“...a Gestalt não reivindica o estatuto de ciência, mas tem a honra de permanecer uma arte.” Ginger                                                                                                                                                                                                            
Era uma das primeiras sessões com Jhony. Tinha 34 anos, profissional da área de finanças. Veio encaminhado por seu psiquiatra com diagnóstico de “Transtorno de ansiedade”.

Levantava  da poltrona umas 5 vezes para beber água e consequentemente ir ao banheiro.

Cruzava e descruzava as pernas na tentativa de disfarçar sua dificuldade em ficar parado.
Em Gestalt, a proposta de estar em contato ou entrar em contato com o que sente, o que diz, o que percebe é sempre um convite desconhecido. Pode ser assustador, menosprezado, incompreensível, dentre tantas outras estranhezas, mas, sei que, no primeiro momento não é nada fácil.
Fazer contato é uma forma de trazer à consciência os conteúdos desconhecidos, sentimentos, sensações, partes importantes da psique que  ajudam na compreensão do modo de funcionar, de se relacionar consigo e com o meio.
Gosto de explicar aos clientes a proposta do contato, qual o objetivo e importância desse aprendizado, não só no espaço terapêutico, mas para a vida de modo geral.
Então o convite: 
- Jhony , quero te propor que faça contato com o que você está sentindo agora.
- Eu to muito ansioso!
- Estou vendo, mas quero te convidar a fazer contato com o que você chama de ansiedade.
- Como assim??”

A resposta inicial do convite costuma vir em forma de explicação ou repetição de uma palavra ou um conceito já predeterminado.
Fazer contato com a ansiedade, aqui no caso de Jhony, é uma possibilidade de ampliar a consciência e entender o que a palavra “ansiedade” significa para ele. O que ela traz de percepção e consciência. É aprofundar-se para além do conceito. É tornar consciente e conhecida suas emoções, compreender, aprender de si e do seu modo de relacionar-se com o meio.
Não temos o hábito em nossa cultura ocidental de conhecer sobre nossa subjetividade e, não fomos ensinados, ou melhor, não somos alfabetizados na linguagem das emoções.
A proposta de “fazer contato com o que sente” é um novo aprendizado e, como tal, cada pessoa aprende a seu modo e a seu tempo.
Em minha prática clínica tenho percebido que as Técnicas Expressivas facilitam e suavizam esse aprendizado de estar em contato. O que soa estranho e abstrato nas palavras fica mais concreto e visível através da arte.
O que me leva a mudar o convite:
- Jhony , “sinta “ as imagens e separe aquelas que sobressaem para você.  
Essa forma de convidar ao “sentir” através de variadas figuras é como “uma alfabetização”. Primeiro, sentir através das imagens diminui a ansiedade do desconhecido, do novo aprendizado. As figuras são nossas conhecidas e quando voltamos a atenção para a escolha temos a “ilusão” de estar fazendo algo fora de nós mesmos, o que diminui consideravelmente a angústia (natural) de começar uma viagem para dentro de nós.
Com Jhony escolhi trabalhar inicialmente com as figuras que posteriormente foram coladas em um fundo.
A colagem é uma técnica simples usando apenas imagens diversas, cola e cartolina. Separo apenas três cores de papel cartão (branco, preto e o lado avesso que oferece uma textura rústica.
Na própria escolha do fundo já estamos trabalhando o contato com suas emoções, de um modo mais sutil.
- Escolhi o fundo rústico porque parece a terra.
É o máximo que ele consegue dizer, no primeiro momento. Durante a escolha das imagens sua inquietação foi diminuindo, conseguiu sentar no chão e passear pelas figuras, soltava suspiros e sua respiração foi desacelerando. Escolheu e colou rapidamente, sem domínio da quantidade de cola que acabava “borrando” sua criação.
E trabalhamos colagens por algum tempo. Colagem de figuras, de papéis, de sobreposições variadas. Como foi ganhando controle na quantidade de cola  assim como ganhava controle sobre sua vida.
E, no caminho do aprendizado fomos (eu e ele) conhecendo um pouco mais de seu movimento. Percebemos que conseguiu ficar mais focado quando escolhia porque entrou em contato com seus conteúdos internos. Que a respiração tranquilizou porque, finalmente, não estava com a cabeça a “’mil por hora’, perdido em tantas preocupações”. 
Posteriormente, ele mesmo escolhia o material que desejava trabalhar. Com as cores aprendeu a fazer contato com suas emoções. Com as colagens aprendeu a fazer contato com seu movimento de priorizar, organizar. Com a cola aprendeu a fazer contato com sua impotência em fazer tudo certinho, que é possível errar e tudo bem.
E através da arte foi aprendendo a fazer contato consigo. A estar em contato no aqui e agora com consciência do que sente e do que faz. Já alfabetizado na linguagem das emoções percebeu que sua ansiedade tem muito a ensinar e agora, podemos dar mergulhos mais profundos.
Em um dos nossos últimos encontros antes de escrever esse texto, fizemos um desenho cego. Onde o contato externo é quase nenhum, apenas os lápis em suas mãos encontram o papel. De olhos fechados aos estímulos externos o referencial é seu próprio interior. O contato é ampliado com a riqueza de sua subjetividade e meu objetivo é despertar seu potencial criativo. Em Gestalt Terapia, para além do sintoma ou da doença, valorizamos a potência criativa, o ajustamento criativo e saudável do ser humano.
Mas, sobre ajustamento criativo vou falar em outro texto.
Para finalizar quero usar duas frases:
“..que a Arte nos aponte um caminho....” de Oswaldo Montenegro, que nos indica uma possibilidade. A possibilidade de oferecer uma clínica mais suave utilizando a riqueza das técnicas expressivas para facilitar o caminhar, nosso e de nossos clientes.
 “Se a gente cresce com os golpes duros da vida, também podemos crescer com os toques suaves na alma” de Cora Coralina, que nos mostra uma forma de tocar com delicadeza, respeito e suavidade. Tocar a nós mesmos e aqueles que confiam em nosso trabalho.
Que através da arte a minha forma de fazer contato seja tocar com suavidade a alma daqueles que me colocam em suas histórias.
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!
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Sobre a autora: Valéria Diniz


Psicóloga 

Gestalt terapeuta

Mestra em Saúde Mental

Atendimento individual e casal .
Oficinas de Técnicas Expressivas em Gestalt 


segunda-feira, 17 de setembro de 2018

SÉRIE OLHARES SOBRE OS MITOS: DIONISO E O CORPO



Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro

Robert Bly coloca a imagem de que arrastamos uma sacola psíquica atrás de nós. Dentro dela há tudo aquilo que não corresponde com as demandas e exigências do mundo exterior.
Para ele uma criança representa um globo de energia de 360º. É muita potência! Suficiente para gerar desconfortos em nosso mundo civilizado. Não corresponde, portanto, aos bons modos que uma comunidade deve ter.  Dessa maneira, o mundo (pais, professores) vão tolhendo tal potência. Porém há uma necessidade nisso, a criança realmente precisa se adaptar ao mundo circundante, até mesmo para se perceber como um indivíduo pertencente a um grupo, mas existe um custo para isso.
O custo é o peso da sacola. Toda a potência que antes naturalmente existia, agora não pode ser totalmente expressa. Ou seja, aquilo que desobedece às regras e a ordem do mundo é jogado nessa sacola. Podemos até especificar alguns conteúdos comuns da sacola de cada pessoa. Considerando que seguimos, mesmo que inconscientemente, um imaginário cristão e, na contemporaneidade, vivemos a força apolínea voltado ao sistema capitalista, já podemos imaginar o que existe dentro da sacola de cada indivíduo ocidental moderno.
Através da ótica da psicologia arquetípica, nossas forças arquetípicas são representadas como os deuses. Esse texto tentará tirar da sacola um dos deuses que há muito tempo habita no fundo da mesma, posto, incialmente, pela igreja. Dioniso é o deus que tem se acostumado a ficar na sombra, no escuro, e como toda força posta na sacola, ele escapa de maneiras distorcidas, afetando a vida do indivíduo ou até mesmo do coletivo.  
De todo modo, tentar tirar Dioniso da sacola já é uma tarefa difícil, escrever sobre ele é ainda mais, pois sua expressão atinge outros canais. Suas manifestações, descritas pelos rituais dionisíacos, eram perpassados pelo corpo. A comunhão com o deus, num sentido de experiência mística e espiritual, se fazia no terreno corporal.

Como essa força arquetípica foi banida há muito tempo ainda é possível que ocorram muitas interpretações errôneas ao falar de Dioniso. A força dionisíaca não representa o deus beberrão e potencialmente sexualizado como comumente vemos. O corpo com Dionísio tem uma profundidade que abrange algo vivo e de organização própria. Inclusive ao colocar em palavras corremos sérios riscos de reduzi-lo daquilo que ele realmente é.

Lopéz-Pedraza em seu livro ‘Dioniso no Exílio’ retrata: “Dioniso sempre é o corpo. Isto significa abandonar o intelecto e estar no corpo, sentir o corpo”. (p. 41) Diante dessa afirmação podemos considerar o quanto ter Dioniso dentro da sacola é extremamente desvantajoso para o processo de individuação de cada pessoa. O intelecto consegue explicar a psique, como um objeto, mas o corpo é a própria psique, como sujeito, que se experimenta; experiência esta que encontramos no setting terapêutico.

Dessa forma, toda vez que contatamos a realidade corpórea estamos contatando a realidade dionisíaca e, por sua vez, entrando no terreno fértil da psique. Mas por que esse terreno se apresenta tão assustador para a maioria dos casos?

A força de Dioniso já é irracional por natureza. Ela já nos vem distorcida por suas características de ambivalência e de ser fora do controle na perspectiva consciente. Porém, cabe a nós apenas sentir essa força. No entanto, por causa de nossa tendência em empurrá-la sacola adentro, não nos permitimos nem sentir, o que faz com que a distorção se amplie em proporções perturbadoras. Aí irrompe Dioniso em sua forma patológica e devastadora, e essa patologia se instala justamente em seu próprio terreno. O corpo e a psique fértil se transformam, agora, em um terreno estéril ou, como diz Stanley Keleman, na terra devastada. Há um desconhecimento absoluto do que se passa internamente e as emoções, antes não reconhecidas, são ainda mais atacadas. Dionísio e o corpo são combatidos por medicamentos e mais controle, ou seja, uma tentativa de empurrá-lo novamente para a sacola.

Manter-se nessa oscilação acaba exigindo mais da nossa saúde psíquica do que a sensação de “conforto” quando recolocamos Dioniso na sacola. Assim vão, também, as emoções, a intuição e os impulsos. A nossa autenticidade, portanto, fica “ensacolada”. Dessa forma, podemos afirmar que a nossa autenticidade está intimamente ligada a Dionísio. Tão intimamente ligada, que a distorção dessa caraterística é interpretada como loucura. Tudo aquilo que extravasa, que toma diferentes caminhos do habitual, assim como, a intensidade e o profundo têm relação com o que é de mais autêntico em nós mesmos.


A loucura, de certa forma, faz parte dos rituais dionisíacos, mas, sendo o corpo o representante máximo da comunhão com o deus, toda a emersão dessa força é contida no mesmo. López-Pedraza esclarece a diferença entre uma possessão dionisíaca e a histeria. A possessão, que se revelava na dança, era uma maneira de entrar em contato com o deus, naquele exato momento do ritual; a histeria, por outro lado, “(...)supõe uma ausência de corpo psíquico(...)” (p. 55), fazendo com que exista um transbordamento desorientado de aspectos inconscientes, ocorrendo em momentos considerados inoportunos para o consciente. Em outras palavras, não há corpo consciente para segurar na histeria, uma que vez a realidade corpórea se encontra na sacola que carregamos.

Friso a realidade corpórea, pois esta difere de corpo. Dioniso preenche a realidade, onde permite deixar o corpo no seu estado natural. Este estado representa a vitalidade, ação e a comunicação do mesmo, onde a psique pulsa através de emoções e ideias. Conforme Estés:“Na psique instintiva, o corpo é considerado um sensor, uma rede de informações, um mensageiro com uma infinidade de sistemas de comunicação - cardiovascular, respiratório, ósseo, nervoso, vegetativo, bem como emocional e o intuitivo.” (p. 251)

Atualmente o corpo não condiz com seu estado natural, ele se encontra mortificado pelas intenções da mente. Por exemplo, o emudecemos com remédios que nos impede de sentir dor (a dor é um tipo de fala corporal) e o escravizamos, o forçando a entrar em forma, com dietas rígidas e exercícios excessivos, para moldá-lo à uma estrutura diferente da original. Entrar em contato com o corpo vai por outro viés, o viés do sentir.

O contato com Dioniso, portanto, constela esse estado natural, como diz López-Pedraza:“(...)significa sentir-se em seu próprio corpo, na emoção particular do momento em que se está vivendo.”(p. 54). Dessa forma, tem-se uma consciência da emoção e de como e onde ela se instala na realidade corpórea. 

No contexto clínico: corpo e arte


No setting terapêutico o corpo se presentifica mais que a palavra. Esta pode ser manipulada, o corpo não. Este escancara a psique com seus complexos e sintomas. Assim, trazer a potência dele pode trazer benefícios para o processo terapêutico. O corpo identifica, contém e, paradoxalmente, dissolve a emoção que ainda não foi elaborada, essa é a psicologia dionisíaca. Diz López-Pedraza: “(...) Dioniso permite uma perspectiva arquetípica para relacionar-se e para diferenciar nossas emoções, como uma via de acesso ao mundo interior.” (p.45). Sabendo que esse acesso ao mundo interior se encontra, em muitos casos, embotado ou até mesmo impossibilitado, o corpo oferece o vaso para que a emoção possa ser experenciada, ou pode até ser visto como um fazer criativo dentro da experiência terapêutica. Cláudia Brasil coloca a importância do corpo na análise como o nascimento de uma nova consciência. Dar forma através do ato criativo significa dar corpo. E para autora: “(...) corporificar é tornar real, é dar um nome, um lugar para ideia ou fantasia.” (p. 62)

A utilização da arte na clínica possibilita que os complexos saiam do campo do abstrato e tomem forma, se corporifiquem. Este processo está sob desígnio de Dioniso, pois este é o deus que não reside no Olimpo e sim na terra junto com os mortais. Ou seja, através dos rituais/processos criativos, ele consegue trazer para a vivência no aqui e agora. Os verbos “corporificar” e “encarnar” representam movimentos de aterrar (voltar para a terra).

Robert Bly diz que quanto maior a sacola, menor a energia que a pessoa tem no seu consciente. Assim, o processo de individuação passa pelo desconforto ou até mesmo pelo pânico de abrir a sacola. Mas durante o processo, há a possibilidade de se surpreender e até mesmo de se encantar com as descobertas que possam surgir. Como um quarto que se manteve há muito tempo trancado, podemos encontrar nele coisas que nos remetam até uma certa alegria, mas que por conta das circunstâncias externas foram obrigadas a serem confinadas. A partir desse trabalho energias podem ser liberadas.  

Dioniso é uma dessas energias e a comunhão com esse deus nos desperta a autenticidade, emoções, impulsos, sensações e até mesmo a poesia (Dioniso desceu ao Hades em busca da poesia para salvar a cidade de Atenas (Aristófanes apud Hillman)). Tais elementos se apropriam no corpo, trazendo a sua potência e fazendo com que a realidade corpórea retorne ao seu estado natural. Este é um dos caminhos para a conquista da saúde psíquica.

Precisamos do corpo, e dessa forma, precisamos de Dioniso.

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
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A Equipe Não Palavra te aguarda!
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BLY, Robert, In ZWEIG, Connie. ABRAMS, Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BRASIL, Claudia. Cores, formas e expressão: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
HILLMAN, J. O sonho e o mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013
LOPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002. 
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Sobre a Autora: Laila Alves de Souza


Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O IDOSO E A CRIATIVIDADE


Por Daniele Pereira Schnorrenberger - SP
dani_psc@hotmail.com
Percebe-se que desde a infância aspectos criativos são aflorados nos seres humanos. É da natureza da criança descobrir fórmulas e valores originais para possibilidades já pré-formatadas. O ato de criar possibilita ver o mundo por meio de lentes novas, quebrando paradigmas e olhares cristalizados. Desse modo, segundo Rocha “Todos nós possuímos um potencial criativo nato, basta desenvolvê-lo. O meio tem um papel importantíssimo, quando nos estimula ao desenvolvimento”. (2009, p.35). 
A criatividade é algo presente em todos os seres humanos, todavia, em algumas pessoas ela encontra-se mais latente, em outros, em contrapartida, encontra-se podada devido aos percalços da vida. Sendo assim, não se pode perder de vista que “Todos os seres humanos são criativos, uns mais outros menos. A criatividade, enquanto habilidade, pode ser desenvolvida, estimulada e trabalhada”. (ROCHA, 2009, p.60). Entretanto, indiferentemente da maneira que a criatividade está alojada, ela é natural e quanto mais uso se faz dela, mais ela se apresenta.
Quando a criatividade é aguçada na primeira infância é mais perceptível as respostas positivas perante as situações adversas. Contudo, mesmo nas pessoas com mais idade, que deixam de utilizá-la por um período da vida, ao acessá-la é possível o seu despertar. Em se tratando de indivíduos idosos, Souza e Witter (2011) corroboram neste sentido. 
Vale ressaltar que a velhice permite a quebra de barreiras sociais que impedem o desenvolvimento da criatividade, tais como críticas negativas de familiares e amigos. Nessa fase da vida, alcança-se maior autonomia e liberdade de expressão, o que é favorável à manifestação da criatividade. (p.22). 
Um grande facilitador do despertar da criatividade é a arte, porque ela entra como um instrumento para acessar a liberdade expressiva de uma maneira mais leve. Quiçá, as pessoas indiferentemente da idade, pudessem se relacionar com a criatividade de maneira tão espontânea e libertadora. A arte pode funcionar como um catalizador da energia criativa e direcioná-la a dar resultados concretos, podendo ser uma expressão artística visual, por meio da dança, teatro, escultura, pintura e ou auditiva, através da música.
Diante das características da criatividade expressiva das artes, surge um novo campo do conhecimento que é a arteterapia, que de acordo com Coutinho (2008) “Arteterapia, em uma definição bem simples, seria a terapia por meio da arte. Da produção de imagens que, alheias a julgamentos estéticos, funcionarão como mapas simbólicos rumo aos conteúdos inconscientes”. Portanto, é um modo de expressão que se dá pela realização criativa, sendo de maior valia o momento de produção, até mais do que a criação em si, ou seja, a estética não é necessariamente o produto final.
Dessa maneira, a arteterapia pode servir de veículo de desenvolvimento da criatividade para todos os indivíduos, independentemente da idade, porque permite ao participante da oficina criativa, um crescimento pessoal através de suas criações. Em se tratando de pessoas da terceira idade, o despertar criativo pode permitir uma grande valorização pessoal e inúmeros benefícios, desde reforçar a autonomia, aumentar a autoestima e mesmo levar ao bem-estar.

A arteterapia pode auxiliar a diminuir alguns preconceitos, como o de que pessoas idosas são pouco criativas. Na realidade, quando são proporcionadas as oportunidades, os idosos são tão capazes de se expressar criativamente quanto qualquer um. E isso é fundamental na recuperação e manutenção da saúde emocional do sujeito. (COUTINHO, 2008, p.75). 
A realização artístico-criativa, referindo-se aos idosos, pode proporcionar uma sensação de inventor de sua própria história e sua trajetória de vida pode ganhar um novo olhar partindo do ato criativo. Para Souza (2005) “Quanto mais carregada a memória, maiores as oportunidades criativas”. (p.46). Em síntese, a criatividade traz benefícios significativos interiormente, porque permite, por meio das artes, despertar o ser criativo, o qual se torna capaz de concretizar suas ideias e pensamentos no fazer artístico. 
Em suma, quanto mais se cria, mais possibilidades criativas são liberadas e aguçadas, podendo ser úteis em todos os campos do desempenho diário. Assim também, Chiesa reforça que “Desenvolver a criatividade é poder compreender a dinâmica da vida e a pessoa criativa percebe essa dinâmica contínua, ficando mais fácil para ela viver o fluxo natural dos acontecimentos no dia a dia”. (2004, p.50). Certamente, um indivíduo criativo, idoso ou não, poderá trazer melhores respostas e saídas para as mais diversas situações em sua vida cotidiana. 
Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
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A Equipe Não Palavra te aguarda!

REFERÊNCIAS:
CHIESA, Regina Fiorezzi. O diálogo com o barro: o encontro criativo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
COUTINHO, Vanessa. Arteterapia com idosos: ensaios e relatos. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2008.
ROCHA, Dina Lúcia Chaves. Brincando com a criatividade: Contribuições teóricas e práticas na Arteterapia e na Educação. Rio de Janeiro: Wak Ed.,2009.
SOUZA, Adriana Aparecida Ferreira de; WITTER, Geraldina Porto. Criatividade na Velhice. In: BURITI, Marcelo de Almeida; WITTER, Carla. (orgs.). Envelhecimento e contingências da vida. Campinas: Editora Alínea, 2011. p.15-39.
SOUZA, Otília Rosangela. Longevidade com Criatividade: Arteterapia com Idosos. Belo Horizonte: Armazém das Ideias, 2005.
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Sobre a autora: Daniele Pereira Schnorrenberger 


Formação: Profissional Graduada em Artes Cênicas. Formação Pedagógica em Artes (Licenciatura em Artes Plásticas – Habilitação em Teatro). Pós-graduada em Arteterapia. Mestranda em Psicogerontologia.
Área de atuação/projetos/trabalhos: Arteterapeuta. Arte educadora. Docente em curso de extensão para terceira idade.
O artigo “O Idoso e a Criatividade” foi escrito como trabalho de avaliação de uma das disciplinas do curso de Mestrado em Psicogerontologia do Instituto Educatie de Ensino e Pesquisa, localizado na cidade de Mogi das Cruzes - SP. Acompanhado pela Prof.ª M.ª. Andrieli Camilo e Prof.ª Dr.ª. Vera Socci.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

“EU SEI APROVEITAR OS RETALHOS QUE A VIDA ME DÁ”



Por Eliana Moraes
naopalavra@gmail.com


Sigo pensando sobre os materiais “desinteressantes”. Em um texto anterior compartilhei algumas reflexões sobre o trabalho com sucata nas práticas da Arteterapia. CLIQUE AQUI Neste contexto, outro material que me atravessa profundamente são os retalhos. 
Meu diálogo com os retalhos se iniciou há alguns anos, quando na clínica arteterapêutica me deparei com uma senhora polonesa, que trazia em sua biografia a Segunda Guerra Mundial. Em um primeiro atendimento dispus sobre a mesa uma série de materiais, dos mais variados estilos, tamanhos, formas, cores, texturas... E seus olhos pararam no “saco de retalhos de papel”. Iniciou-se seu processo arteterapêutico quando ela disse algo que nunca mais esqueci: “Eu sou uma criança da guerra. Eu sei aproveitar os retalhos que a vida me dá.” 
Sobre a história desta grande mulher, publiquei neste blog uma “Exposição Virtual” de uma das fases de seus trabalhos: uma série de colagens com retalhos de seus sucessivos exames oftalmológicos. Para conhecer mais desta história CLIQUE AQUI
Com ela aprendi a valorizar ainda mais os retalhos, “restos” de trabalhos dos pacientes que passam pela minha clínica. E assim vou alimentando a “caixa de retalhos” que compõe meu repertório de materiais. Desta caixa (re)nasceram muitos trabalhos, histórias, (re)construções, na arte e na vida. 
Hoje compartilho algumas aplicações que a “caixa de retalhos” podem despertar em um setting arteterapêutico. Em sua essência, ela trará o convite ao integrar, recompor, recriar, reconstruir, reinventar, ressignificar; Desta forma, algumas demandas terapêuticas se mostram como um pedido intuitivo para que o arteterapeuta promova o encontro deste material com o sujeito que fala. 

Desconstruções  


“Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá


Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”


Chico Buarque em Roda Viva


Uma das demandas que aparecem na clínica de forma recorrente são aqueles momentos em que o sujeito percebe que velhos modelos não se aplicam mais. O que parecia estabelecido como construções, relações, status quo, não estão funcionando como antes. O tempo rodou, a roda viva passou, o mundo cresceu e a única possibilidade se dá em ser empurrado para fora da zona de conforto. 


Uma vez constatado que aquelas expectativas não existem mais, restam-se seus fragmentos. É tempo de redescobrir e reconstruir novas possibilidades, novas composições, novos cenários. 


É simbólico visualizar que aqueles fragmentos não foram produzidos pelo próprio sujeito, pois análogo à vida, aquela desconstrução não era seu desejo. Nas palavras de Chico “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda viva e carrega o destino pra lá”. 


Apropriar-se dos fragmentos de um desejo desconstruído e responsabilizar-se pela recomposição de um destino, este é o processo. 


Em meio ao caos


“Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”


Chico Buarque em Roda Viva


Em muitos momentos esta desconstrução não é feita de forma paulatina. Pelo contrário. A roda viva passa com toda sua fúria causando o verdadeiro caos. A morte de um ente querido, uma demissão inesperada, ou mesmo a instalação de uma guerra.


São momentos em que aquelas “lindas roseiras” que cultivamos com todo afeto e investimos de nós mesmos, são carregadas abruptamente pela roda viva e instala-se o caos. Espanto, dor, raiva, “não palavra”. 


Aqui uma referência histórica me ampara. A colagem adentrou oficialmente para História da Arte no início do século XX, um período marcado pela emergência da Primeira Guerra Mundial. Em meio ao advento da Arte Moderna, o Cubismo e o Dadaísmo foram movimentos artísticos que investiram de forma estrutural em seus processos com a colagem como expressão artística. Creio eu que assim:


“... os artistas intuitivamente começavam através da arte, gerar movimentos  que reverberariam no coletivo. Buscando algum possível, através da colagem os artistas fracionavam, selecionavam elementos fragmentados, rejuntavam, recompunham, reinventavam, ressignificavam. Processo que instiga a resiliência, individual e coletiva, movimentos que seres humanos atravessados pelas destruições das guerras, mais do que nunca necessitariam acessar.” (MORAES, 2017) 


Nós no Brasil não temos a experiência cotidiana de uma guerra declarada, mas de forma não nomeada ela sim, nos assombra em forma de violências. Para além disto, nós somos sujeitos da guerra da vida. Uma vez que ela se apresenta e se instala o caos, como aproveitar os retalhos que a vida nos dá?


Memórias e heranças simbólicas 


Mas nem só de assombros vivem os retalhos. Eles também carregam memórias. Cada retalho que compõe a caixa tem os dedos, as histórias, a energia daqueles que os produziram. Cada forma foi desenhada por alguém e pode servir de subsídio para a (re)construção de um outro. 
Em alguns momentos, pessoas ensimesmadas pela dor, adquirem uma visão egocentrada (com seu ego no centro). Para seu cenário, apenas um olhar, uma perspectiva, uma possibilidade (em geral pessimista). 
Ampliar o olhar para a caixa de retalhos também significa buscar recursos em um espaço onde outras pessoas caminharam e contribuíram para sua construção. Ali existem heranças simbólicas que podem ser acolhidas como verdadeiros ouros e integradas em um espaço encaminhado para o novo. 


Seguindo meu diálogo com os (aparentemente) “desinteressantes”, quantas riquezas uma caixa de retalhos pode guardar...


 Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
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Referência Bibliográfica:

MORAES, Eliana. Uma arte que nos salve da loucura destes tempos: Dadaísmo e Arteterapia. Blog Não Palavra, 2017.
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Sobre a autora: Eliana Moraes


Arteterapeuta e Psicóloga. 
Especialista em Gerontologia e saúde do idoso e cursando MBA em História da Arte. 


Fundadora e coordenadora do "Não Palavra Arteterapia".
Escreve e ministra cursos, palestras e supervisões sobre as teorias e práticas da Arteterapia. 
Atendimentos clínicos individuais e grupais em Arteterapia.Nascida em Minas Gerais, coordena o Espaço Não Palavra no Rio de Janeiro.