segunda-feira, 17 de setembro de 2018

SÉRIE OLHARES SOBRE OS MITOS: DIONISO E O CORPO



Laila Alves de Souza - Curitiba/Rio de Janeiro

Robert Bly coloca a imagem de que arrastamos uma sacola psíquica atrás de nós. Dentro dela há tudo aquilo que não corresponde com as demandas e exigências do mundo exterior.
Para ele uma criança representa um globo de energia de 360º. É muita potência! Suficiente para gerar desconfortos em nosso mundo civilizado. Não corresponde, portanto, aos bons modos que uma comunidade deve ter.  Dessa maneira, o mundo (pais, professores) vão tolhendo tal potência. Porém há uma necessidade nisso, a criança realmente precisa se adaptar ao mundo circundante, até mesmo para se perceber como um indivíduo pertencente a um grupo, mas existe um custo para isso.
O custo é o peso da sacola. Toda a potência que antes naturalmente existia, agora não pode ser totalmente expressa. Ou seja, aquilo que desobedece às regras e a ordem do mundo é jogado nessa sacola. Podemos até especificar alguns conteúdos comuns da sacola de cada pessoa. Considerando que seguimos, mesmo que inconscientemente, um imaginário cristão e, na contemporaneidade, vivemos a força apolínea voltado ao sistema capitalista, já podemos imaginar o que existe dentro da sacola de cada indivíduo ocidental moderno.
Através da ótica da psicologia arquetípica, nossas forças arquetípicas são representadas como os deuses. Esse texto tentará tirar da sacola um dos deuses que há muito tempo habita no fundo da mesma, posto, incialmente, pela igreja. Dioniso é o deus que tem se acostumado a ficar na sombra, no escuro, e como toda força posta na sacola, ele escapa de maneiras distorcidas, afetando a vida do indivíduo ou até mesmo do coletivo.  
De todo modo, tentar tirar Dioniso da sacola já é uma tarefa difícil, escrever sobre ele é ainda mais, pois sua expressão atinge outros canais. Suas manifestações, descritas pelos rituais dionisíacos, eram perpassados pelo corpo. A comunhão com o deus, num sentido de experiência mística e espiritual, se fazia no terreno corporal.

Como essa força arquetípica foi banida há muito tempo ainda é possível que ocorram muitas interpretações errôneas ao falar de Dioniso. A força dionisíaca não representa o deus beberrão e potencialmente sexualizado como comumente vemos. O corpo com Dionísio tem uma profundidade que abrange algo vivo e de organização própria. Inclusive ao colocar em palavras corremos sérios riscos de reduzi-lo daquilo que ele realmente é.

Lopéz-Pedraza em seu livro ‘Dioniso no Exílio’ retrata: “Dioniso sempre é o corpo. Isto significa abandonar o intelecto e estar no corpo, sentir o corpo”. (p. 41) Diante dessa afirmação podemos considerar o quanto ter Dioniso dentro da sacola é extremamente desvantajoso para o processo de individuação de cada pessoa. O intelecto consegue explicar a psique, como um objeto, mas o corpo é a própria psique, como sujeito, que se experimenta; experiência esta que encontramos no setting terapêutico.

Dessa forma, toda vez que contatamos a realidade corpórea estamos contatando a realidade dionisíaca e, por sua vez, entrando no terreno fértil da psique. Mas por que esse terreno se apresenta tão assustador para a maioria dos casos?

A força de Dioniso já é irracional por natureza. Ela já nos vem distorcida por suas características de ambivalência e de ser fora do controle na perspectiva consciente. Porém, cabe a nós apenas sentir essa força. No entanto, por causa de nossa tendência em empurrá-la sacola adentro, não nos permitimos nem sentir, o que faz com que a distorção se amplie em proporções perturbadoras. Aí irrompe Dioniso em sua forma patológica e devastadora, e essa patologia se instala justamente em seu próprio terreno. O corpo e a psique fértil se transformam, agora, em um terreno estéril ou, como diz Stanley Keleman, na terra devastada. Há um desconhecimento absoluto do que se passa internamente e as emoções, antes não reconhecidas, são ainda mais atacadas. Dionísio e o corpo são combatidos por medicamentos e mais controle, ou seja, uma tentativa de empurrá-lo novamente para a sacola.

Manter-se nessa oscilação acaba exigindo mais da nossa saúde psíquica do que a sensação de “conforto” quando recolocamos Dioniso na sacola. Assim vão, também, as emoções, a intuição e os impulsos. A nossa autenticidade, portanto, fica “ensacolada”. Dessa forma, podemos afirmar que a nossa autenticidade está intimamente ligada a Dionísio. Tão intimamente ligada, que a distorção dessa caraterística é interpretada como loucura. Tudo aquilo que extravasa, que toma diferentes caminhos do habitual, assim como, a intensidade e o profundo têm relação com o que é de mais autêntico em nós mesmos.


A loucura, de certa forma, faz parte dos rituais dionisíacos, mas, sendo o corpo o representante máximo da comunhão com o deus, toda a emersão dessa força é contida no mesmo. López-Pedraza esclarece a diferença entre uma possessão dionisíaca e a histeria. A possessão, que se revelava na dança, era uma maneira de entrar em contato com o deus, naquele exato momento do ritual; a histeria, por outro lado, “(...)supõe uma ausência de corpo psíquico(...)” (p. 55), fazendo com que exista um transbordamento desorientado de aspectos inconscientes, ocorrendo em momentos considerados inoportunos para o consciente. Em outras palavras, não há corpo consciente para segurar na histeria, uma que vez a realidade corpórea se encontra na sacola que carregamos.

Friso a realidade corpórea, pois esta difere de corpo. Dioniso preenche a realidade, onde permite deixar o corpo no seu estado natural. Este estado representa a vitalidade, ação e a comunicação do mesmo, onde a psique pulsa através de emoções e ideias. Conforme Estés:“Na psique instintiva, o corpo é considerado um sensor, uma rede de informações, um mensageiro com uma infinidade de sistemas de comunicação - cardiovascular, respiratório, ósseo, nervoso, vegetativo, bem como emocional e o intuitivo.” (p. 251)

Atualmente o corpo não condiz com seu estado natural, ele se encontra mortificado pelas intenções da mente. Por exemplo, o emudecemos com remédios que nos impede de sentir dor (a dor é um tipo de fala corporal) e o escravizamos, o forçando a entrar em forma, com dietas rígidas e exercícios excessivos, para moldá-lo à uma estrutura diferente da original. Entrar em contato com o corpo vai por outro viés, o viés do sentir.

O contato com Dioniso, portanto, constela esse estado natural, como diz López-Pedraza:“(...)significa sentir-se em seu próprio corpo, na emoção particular do momento em que se está vivendo.”(p. 54). Dessa forma, tem-se uma consciência da emoção e de como e onde ela se instala na realidade corpórea. 

No contexto clínico: corpo e arte


No setting terapêutico o corpo se presentifica mais que a palavra. Esta pode ser manipulada, o corpo não. Este escancara a psique com seus complexos e sintomas. Assim, trazer a potência dele pode trazer benefícios para o processo terapêutico. O corpo identifica, contém e, paradoxalmente, dissolve a emoção que ainda não foi elaborada, essa é a psicologia dionisíaca. Diz López-Pedraza: “(...) Dioniso permite uma perspectiva arquetípica para relacionar-se e para diferenciar nossas emoções, como uma via de acesso ao mundo interior.” (p.45). Sabendo que esse acesso ao mundo interior se encontra, em muitos casos, embotado ou até mesmo impossibilitado, o corpo oferece o vaso para que a emoção possa ser experenciada, ou pode até ser visto como um fazer criativo dentro da experiência terapêutica. Cláudia Brasil coloca a importância do corpo na análise como o nascimento de uma nova consciência. Dar forma através do ato criativo significa dar corpo. E para autora: “(...) corporificar é tornar real, é dar um nome, um lugar para ideia ou fantasia.” (p. 62)

A utilização da arte na clínica possibilita que os complexos saiam do campo do abstrato e tomem forma, se corporifiquem. Este processo está sob desígnio de Dioniso, pois este é o deus que não reside no Olimpo e sim na terra junto com os mortais. Ou seja, através dos rituais/processos criativos, ele consegue trazer para a vivência no aqui e agora. Os verbos “corporificar” e “encarnar” representam movimentos de aterrar (voltar para a terra).

Robert Bly diz que quanto maior a sacola, menor a energia que a pessoa tem no seu consciente. Assim, o processo de individuação passa pelo desconforto ou até mesmo pelo pânico de abrir a sacola. Mas durante o processo, há a possibilidade de se surpreender e até mesmo de se encantar com as descobertas que possam surgir. Como um quarto que se manteve há muito tempo trancado, podemos encontrar nele coisas que nos remetam até uma certa alegria, mas que por conta das circunstâncias externas foram obrigadas a serem confinadas. A partir desse trabalho energias podem ser liberadas.  

Dioniso é uma dessas energias e a comunhão com esse deus nos desperta a autenticidade, emoções, impulsos, sensações e até mesmo a poesia (Dioniso desceu ao Hades em busca da poesia para salvar a cidade de Atenas (Aristófanes apud Hillman)). Tais elementos se apropriam no corpo, trazendo a sua potência e fazendo com que a realidade corpórea retorne ao seu estado natural. Este é um dos caminhos para a conquista da saúde psíquica.

Precisamos do corpo, e dessa forma, precisamos de Dioniso.

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

BLY, Robert, In ZWEIG, Connie. ABRAMS, Jeremiah (Org.). Ao encontro da sombra. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BRASIL, Claudia. Cores, formas e expressão: Emoção de Lidar e Arteterapia na Clínica Junguiana
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
HILLMAN, J. O sonho e o mundo das trevas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013
LOPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2002. 
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Sobre a Autora: Laila Alves de Souza


Psicóloga
Pós- graduada em psicologia clínica na abordagem da Psicologia Analítica.
Atendimentos clínicos pela abordagem da Psicologia Analítica no Rio de Janeiro.
Atualmente compõe a Equipe Não Palavra na gestão dos projetos. 

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