segunda-feira, 30 de outubro de 2017

KANDINSKY, A AQUARELA E O SENTIMENTO: O RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA


Por Suzane Guedes - RJ
suguedes@yahoo.com.br


No início de 2015 fui ao CCBB (Centro Cultural do Banco do Brasil) no Rio de Janeiro, (um lugar que me remete ao Sagrado) ver uma exposição de Wassily Kandinsky. Eu estava prestes a começar minha formação clínica em Arteterapia, mas era crua em teoria da arte, minha visão era pelo sentimento e sensação que as obras me provocavam. E com Kandisky esse sentimento foi intenso, forte e visceral. Posso dizer que nesta exposição me senti inebriada com suas obras. Suas imagens me absorviam e me emocionavam, foi uma experiência única e de alma.

A trajetória no curso de formação ampliou meu olhar para a arte, um olhar antes leigo, mas apaixonado, sentiu a necessidade de conhecer mais, de aprender mais. Fui desafiada pela Arteterapia, mas fui também enriquecida por ela. Abriram-se outros mundos dentro de mim, outras possibilidades de crescimento e ampliação do meu desenvolvimento pessoal e social.
Eis que chega um ponto do curso que precisávamos escolher a linguagem na qual iríamos trabalhar nosso projeto pessoal, tinha que ser um desafio, e intuitivamente não tive dúvidas, seria a Aquarela.
Mergulhei neste processo de corpo e alma, fiz aulas, li sobre o tema, produzi bastante. E dentro dos meus estudos, quem estava lá sempre presente? Kandinsky. Este que se tornou meu muso em 2015. Descobri que ele foi o primeiro pintor a fazer uma arte abstrata em aquarela, descobri que ele ligou a arte ao espiritual, como uma experiência de transcendência, descobri que a data de seu nascimento é a mesma data do nascimento do meu marido. Muita sincronicidade, diria Jung, não?
No livro “Do espiritual na arte”, Kandinsky nos brinda com sua fala sobre a ressonância espiritual da arte na alma. Ele fala que essa é uma necessidade interior e constitui o princípio básico de todo trabalho artístico. O autor acredita também que a abstração pura e realismo puro entram na dialética da necessidade interior, a arte em desordem atingirá, então, um estado absoluto de pureza. Não seria então, a abstração, este estado de pureza? Esta arte que atinge a alma?
Acredito que a aquarela cumpre bem este papel, pois permite fluidez, leveza e um estado de abstração e condução a sentimentos profundos. Esta linguagem possibilita acessos ao inconsciente, não sente necessidade de se articular com a função pensamento (mesmo que havendo possibilidades de acessá-lo de acordo com a técnica utilizada). E se faz necessária em um espaço de nossa cultura ocidental tão voltada para o racional, a produção de vieses que estimulem a função sensação e sentimento. Kandinsky aponta que “toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe dos nossos sentimentos”, a aquarela seria então um artifício mais que contemporâneo para as necessidades de nossos tempos atuais, que cada vez mais necessita de leveza e fluidez.
Kandinsky aponta também no livro citado acima, que após um período de produção materialista, onde os sentimentos elementares como medo, tristeza e alegria que serviram para inspiração do artista, já não são tão relevantes, o artista busca agora sentimentos, segundo ele “matizados, ainda sem nome”, seriam, segundo ele “emoções mais delicadas que nossa linguagem é incapaz de exprimir”.
Acredito que a Aquarela possibilita esses encontros mais profundos, de alma, o meu encontro com a aquarela posso dizer que foi para além de um encontro com cores, tons e luzes. Foi um encontro intuitivo e espiritual. Estar entre pincéis e tintas aquareláveis e com um papel diante de mim, ao contrário de algumas outras técnicas, me traz alegria e muitas vezes fui tocada por uma profunda emoção.
E então, qual seria a função da arte? Qual a nossa função enquanto arteterapeutas ao utilizar a arte como ofício e instrumento de trabalho? De acordo com Schumann citado por KandinskyProjetar a luz nas profundezas do coração humano, eis a vocação do artista”, citando ainda TolstóiUm pintor é um homem que pode desenhar e pintar tudo”.
E nesta última linha de raciocínio, acredito que seja a função do arteterapeuta dar espaço ao outro para ele ser, pintar, criar o que quiser e puder no espaço de tempo presente. Acolhendo seu mundo e sua psique, sua história, ancestralidade, funções tipológicas, dando espaço ao desenvolvimento do outro, sua expressão mais genuína e essencial, seu Si mesmo.
Referências Bibliográficas:
CIVITA, Victor. Gênios da pintura: Wassily Kandinsky. São Paulo: Abril Cultural, 1968.
GUEDES, Suzane. Aquarela: na fluidez dos sentimentos. Projeto pessoal para conclusão de curso na formação clínica em Artetarapia do POMAR. Rio de Janeiro, 2017.
NEVES, José. P. Aquarela: Uma contribuição à prática terapêutica num ateliê. In: Arteterapia – Coleção Imagens da Transformação. Número 11 – Volume 11, 2004. POMAR.
PHILIPPINI, Angela. Linguagens e materiais expressivos em arteterapia: uso, indicação e propriedades. Rio de Janeiro: Editora Wak, 2009.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte e na pintura em particular. Tradução Álvaro Cabral, Antônio de Pádua Danesi. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
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Sobre a autora: Suzane Guedes




Suzane Guedes é Psicóloga (CES-JF), Especialista em Psicologia e Desenvolvimento Humano (UFJF) e Arteterapeuta (POMAR).
Colunista no blog O psicólogo Online, no qual escreve sobre Autoestima.
Atua nas cidades do Rio de Janeiro e Três Rios-RJ com atendimento clínico presencial a crianças, jovens, adultos e idosos; ministra grupos e oficinas terapêuticas. Também trabalha como orientação psicológica online.
Suzane acredita na psicoterapia e arteterapia como grande ferramenta de auxílio à transformação e desenvolvimento pessoal e social.
Facebook: https://www.facebook.com/olharparasi/
Atendimento online: http://www.atendimento.opsicologoonline.com.br/suzane-guedes
Instagram: @olharparasi

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A MÚSICA (RE)CONSTRUINDO SENTIDO: A EXPERIÊNCIA MUSICAL NA SAÚDE MENTAL

Por Rosangela Nery - RJ
rosanery1975@hotmail.com

A MÚSICA

Pensar em música é tocar minha alma. Nos momentos mais difíceis em que as palavras não conseguem dar conta dos sentimentos e emoções, quando esbarra nos diagnósticos diversos dos pacientes que entro em contato no meu trabalho nas enfermarias do Instituto Phillipe Phinel, é ela que chega e abre esse caminho, é ela que traduz as palavras, é ela que transborda a alma... A MÚSICA!!!

Hoje o convite é pensar a experiência musical a partir da experiência estética como forma de pensar e estar no mundo. A música como sendo funcional, simbólica, expressiva. Música como POTÊNCIA transformadora.

A NARRATIVA PRODUZINDO SENTIDO NO TRABALHO EM SAÚDE

Ao longo da minha vida como profissional de saúde, sou atravessada por muitas histórias que me mobilizam enquanto pessoa e forma de estar no mundo, e há pouco mais de 1 ano, descobri nas “narrativas” uma forma de ressignificar e reconstruir o sentido do meu trabalho. Me inserir dentro dos textos, narrando as sensações e sentimentos que emergem da relação com os clientes, tem feito toda diferença na condução do tratamento dos mesmos. No texto  de Patrícia Tempski e Fernanda Mayer “Narrando a vida, nossas memórias e aprendizado”, encontro algo libertador e confortante sobre o que vinha fazendo como pesquisadora de forma tímida e que hoje tem a chancela da academia: o “eu” pode aparecer nos textos e trabalhos acadêmicos sem que os mesmos percam seu rigor científico. E em tempos de tantas lutas pela saúde e educação, uso a Narrativa como resistência, assim já dizia o poeta Guimarães Rosa, “NARRAR É (RE)SISTIR” em uma de suas obras onde pensa sobre os impasses de um momento de escrita.

“O que somos é fruto do significado que atribuímos às nossas vidas, as quais compõem nossas histórias de vida. Histórias que tecemos e contamos a nós mesmos, histórias vividas e vivas, nas quais ocupamos o papel de protagonista, autor, narrador ou personagens coadjuvantes. A narração de histórias existe desde antes da linguagem escrita, e por meio da oralidade e gestualidade se deu a transmissão dos conhecimentos através do relato de experiências armazenadas na memória humana  às gerações seguintes.  A tradição de narrar histórias sempre esteve presente no nosso cotidiano e marca nossa cultura e identidade, forjando nossa memória social. (..) A linguagem escrita como forma de narrativas tem sido utilizada como estratégia de reflexão sobre a prática de ensino e cuidado na área de saúde e pode ser descritiva, reflexiva ou dialógica.” 

A NARRATIVA


Plantão de uma quinta feira, minha esperança era chegar e não encontrá-la mais. Em vão! Lá estava ela, com olhar triste e pesado como de costume. Aquilo já estava demais pra mim. Fui ao banheiro e pedi a Deus que me iluminasse para fazer algo. Ouvi: “A música, é pela música...” Então , lá fui eu. 

– T., você pode me ensinar a ler partituras? 

Ela responde como quem não acredita na pergunta:

– Você quer mesmo aprender isso?

– Quero, você pode me ensinar?

– Ai ai, então  tá, presta atenção.

E lá fomos nós, numa viagem a clave de sol, agora já sei onde fica o dó, ré, mi, fá, o sol e o lá, só não sei direito o que fazer com isso, pois tudo que sei de música é de ouvido. Naquele momento a única coisa que me importava era a relação que consegui estabelecer com T., alguém que no auge dos seus 16 anos lutava contra alucinações visuais e auditivas para continuar sua vida. T. tocava Violino, e era monitora num desses projetos sociais perto de sua casa, porém desde das internações não conseguira mais tocar, pois as “vozes” não a deixavam em paz.  Nesse mesmo dia acontecia um projeto lindo chamado Paratodos², oficina de consciência corporal e música no campinho da UFRJ, e era o dia da festa da primavera. Chamei T. para ir comigo e junto levar seu Violino. Ela relutou, me chamou de chata, mas mesmo assim colocou-onas costa e lá fomos nós. Participamos da aula, movimentamos o corpo, T. dirigiu alguns movimentos e então chegou a hora do relaxamento, momento que sempre tem um fundo musical de um aluno da escola de música. Porém naquele dia por coincidência, não havia nenhum, e então pensei: é a hora de T. Fui ao seu ouvido baixinho e falei:

- Você acha possível tocar alguma coisa agora?

E mais uma vez ela me chamou de chata, (risos). Mais eu insisti.

– Eu vou com você, estamos juntas! E assim ela levantou, abriu sua maleta, me pediu pra segurar o arco e pôs-se a tocar. Dó, ré, ré, mi, mi, ela pediu pra eu não esquecer, era a 9° sinfonia de Beethoven, foram 35 segundos que tocaram a alma de quem ali estava. Ufaaa! deu certo. E o melhor de tudo foi ouvir: 

- Enquanto eu toco as vozes não me atormentam, obrigada por me trazer aqui.

Mais um espaço de saúde e relação que eu acredito.

*² Paratodos é um projeto que tem como missão expandir a dança para diversos públicos de maneira a não ficar restrita a bailarinos e atores profissionais, além de oferecer aos graduandos em dança a oportunidade de ampliar suas experiências e favorecer a aplicação de seus conhecimentos também no campo da saúde. Estrategicamente localizado no Campus da Praia Vermelha da UFRJ (perto de centros de saúde e reabilitacão), a professora de dança Marta Peres realiza o projeto há 6 anos, incentivando a dança para todas as pessoas através dessa Oficina de Dança e Consciência Corporal do seu Projeto de pesquisa – extensão.

Referências bibliográficas:

TEMPSKI,P; BRENNEISEN MAYER,F (orgs.) – Narrando a vida, nossas memórias e aprendizados – Humanização das práticas educativas e de cuidado na saúde. Editora Atheneu – São Paulo- 2015.

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

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Sobre a autora: Rosangela Nery


Servidora pública municipal na função de técnica de enfermagem do IMPP, lotada atualmente no setor infanto juvenil.

Psicóloga, pós graduanda em Ciência, Arte e Cultura pelo IOC - Instituto Oswaldo Cruz - FIOCRUZ e pós graduanda em Saúde Mental e atenção Psicossocial pela ENSP - Escola Nacional de saúde pública - FIOCRUZ.

Atendimento individual à adolescentes e adultos no Espaço SER- Sentir, Experimentar e Recriar em Copacabana.

Este é o segundo texto escrito por Rosangela. Para ler o primeiro CLIQUE AQUI


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

"QUEM CANTA SEUS MALES ESPANTA" - MÚSICA E LONGEVIDADE


Por Cristiane de Oliveira - RJ 
crisarteterapia@hotmail.com


"Ah! Se o mundo inteiro me pudesse  ouvir
Tenho muito pra contar
Dizer que aprendi
E na vida a gente tem que entender
Que um nasce pra sofrer
Enquanto o outro ri
Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir achar
Razão para viver
Ver na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar”
Tim Maia

Quem canta seus males espanta”, diz o ditado. O que esse ditado representa tem fundamento, a música tem grande poder nos aspectos sociais, biológicos e emocionais do indivíduo. A música permeia a vida dos seres humanos desde sempre. Já no ventre da mãe, o bebê é capaz de ouvir e sentir a música, por isso é indicado que a mãe ouça canções e cante para seu bebê, gerando neles vários estímulos. Esses estímulos musicais vão se agregando ao longo da vida. A neurociência afirma que a parte do cérebro que não é afetada pelas demências como Alzheimer é a que armazena música. Por incrível que pareça, a memória musical não é afetada e, quando acessada, é possível “trazer a tona” sensações, sentimentos, lembranças que refletem no corpo. Assistindo ao documentário “Alive Inside”, foi possível ver as reações diversas de idosos em vários estágios do Alzheimer.  Até o mais afetado reage com espasmos musculares em resposta à música ouvida.

Eu já era sabedora do poder da música, dos ótimos efeitos no cérebro, no físico e na alma, entendia que quem aprende um instrumento tem o desenvolvimento do cérebro diferente. Sabia que ouvir música faz o cérebro “acender várias luzes” (podendo ser observado em ressonância magnética) e, dessa maneira, tocar um instrumento faz o cérebro parecer uma noite de fim de ano, com fogos de artifício estourando por toda parte.  Ver então essa reação nos idosos do documentário só fomentou ainda mais o desejo de trabalhar com música na minha prática em Arteterapia.


Além disso tudo,  a música tem caráter lúdico,  permitindo a interação com o outro, promovendo descontração e auto-expressão. Sendo também uma ótima ferramenta para retomar movimentos corporais e, ao mesmo tempo, fazer um resgate da sua memória. O melhor, então, foi experimentar tudo isso na prática.  Dessa forma, escutar músicas, cantar, criar instrumentos de sucata e tocá-los, jogos musicais e criar produções plásticas baseadas em música são algumas das atividades nas sessões arteterapêuticas. Nessas sessões, então, pude vivenciar a ação da música sobre os longevos. Primeiro é o canto, ao ouvirem as músicas de sua época,  todos, inclusive os mais desconectados, recordam a melodia e cantam. Observa-se nesses integrantes um certo despertar e maior  interação com o grupo.  Cantam no seu ritmo,  no seu tempo, mas cantam. Os demais vão relembrando e solicitando outras canções, querem dançar, relembram histórias. Percebe-se também a formação de vínculo entre os integrantes e a arteterapeuta; a disponibilidade para ouvir o outro; uma boa integração do grupo; o resgate de lembranças, trazendo uma auto-valorização, interesse e prazer em participar das atividades propostas.  


Desse modo, a música permite ao longevo reordenar-se no tempo, não só recordando o passado, mas percebendo-se no presente sendo possível reafirmar o valor de suas próprias vivências. A música na Arteterapia propicia a expressão de emoções, o desenvolvimento  da  criatividade, ajudando a ampliar  as  perspectivas  de vida e o bem estar através do fortalecimento das  interconexões cerebrais. Portanto, vamos abrir espaço e permitir que os longevos soltem a voz e a alma.


“Quando eu soltar a minha voz
Por favor, entenda
Que palavra por palavra
Eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca
Peito aberto
Vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida
Que eu estou cantando
Quando eu abrir minha garganta
Essa força tanta
Tudo aquilo que você ouvir
Esteja certa
Que estarei vivendo
Veja o brilho dos meus olhos
E o tremor nas minhas mãos
E o meu corpo tão suado
Transbordando toda a raça e emoção
E se eu chorar
E o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante
Que o teu canto é a minha força
Pra cantar
Quando eu soltar a minha voz
Por favor, entenda
É apenas o meu jeito de viver
O que é amar”
Gonzaguinha


Referências: 



DOCUMENTÁRIO "ALIVE INSIDE"
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Sobre a autora: Cristiane de Oliveira


Formada em Pedagogia(UFF), Psicopedagogia (UNESA), Arteterapia (POMAR), cursando Pós Graduação em Arteterapia (POMAR)

Atuação em Arteterapia com adultos e idosos (individual e grupo), atendimento  em domicílio e instituições.

Este é o segundo texto escrito por Cristiane para o blog Não Palavra. Veja o primeiro AQUI

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A MÚSICA NA CLÍNICA DA ARTETERAPIA



Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com


“As aproximações com a música são... as mais ricas de ensinamentos. A música é, há muitos séculos, a arte por excelência para exprimir a vida espiritual do artista... Para o artista criador que quer e que deve exprimir seu universo interior... 

O som musical tem acesso direto à alma. E aí encontra, porque o homem tem ‘a música em si mesmo’, um eco imediato. ” Kandinsky

Tenho pensado sobre a utilização de expressões artísticas como estímulos projetivos para a clínica da Arteterapia. Já escrevi sobre alguns pintores que me atravessaram como René Magritte, Piet Mondrian, Abraham Palatnik e Edward Hopper. Embora as artes visuais tenham me instigado de forma singular nos últimos tempos, estas não são as únicas expressões artísticas aos quais o arteterapeuta tem como instrumento clínico. Afinal, as técnicas projetivas são aquelas às quais o cliente/paciente recebe um estímulo direcionado à algum dos cinco sentidos, e a partir dele fala o que percebe, pensa, sente. Naturalmente ali projetará conteúdos próprios e na sensação de falar de um terceiro, falará de si. 

Quando abordamos estímulos projetivos auditivos, automaticamente podemos pensar em música. Existem inúmeros estudos que apontam uma profunda ligação entre a música e emoção (deixo a sugestão para que os arteterapeutas pesquisem sobre este tema para se apropriarem destes embasamentos). Na prática da Arteterapia, a música se mostra bastante mobilizadora de afetos e memórias e nos últimos tempos, a propósito da minha clínica, tenho parado para refletir de forma especial sobre ela. 

O texto de hoje se dá como articulações iniciais deste tema tão abrangente e potente em sua variedade de possibilidades como material para arteterapeutas. 

Música: uma arte da cultura brasileira 

Tenho pensado que talvez a música seja a expressão artística mais cotidiana e democrática de nossa cultura. Ela está presente nos mais variados ambientes frequentados em nosso dia a dia. É muito difícil encontrarmos alguém que não tenha qualquer relação com a música. Sendo assim acredito que esta seja uma linguagem da arte bastante acessível àqueles que chegam para a clínica da Arteterapia, sobretudo aqueles que chamo de “pacientes leigos”, que não têm qualquer histórico com as artes. 


Dentre os artistas, talvez o músico seja o mais próximo, que mais alcança o público na cultura brasileira. Estas reflexões foram aquecidas quando me lembrei de uma exposição que visitei em 2015, chamada “Música canta a República”, no Centro Cultural dos Correios, RJ. A mostra continha fotografias, painéis, cartazes, áudios, vídeos e textos relacionados a 110 canções brasileiras de 1902 a 2002. Com diferentes gêneros musicais - maxixe, marchinhas, caipira, samba, MPB, rock, rap – que faziam referência a 80 temas políticos, como “Vargas no Poder”, “Democracia de Massas”, “Anos Dourados?”, “Ditadura e Resistência”, “Que país é esse” e “Eu só quero ser feliz”.

Porém, ao longo da exposição ficou claro que os temas não se resumiam à política, mas revelavam nossa história e a maneira como os artistas de nossa cultura, a partir de suas sensibilidades, a registravam. Nas palavras do curador da exposição:

"Não é só nos períodos de ditadura que teve música de protesto. Existe uma tradição de crônica musical, não apenas sobre política, mas sobre comportamento, economia, cultura. Desde a época do império e principalmente com o Carnaval, criou-se esse hábito de fazer música sobre os acontecimentos do ano anterior. Então isso nos deu esta permanência e é o que nos distingue do resto do mundo... Não há um fato, evento ou personagem que não esteja registrado na música. Isso é uma coisa muito brasileira que não fica só na trilha do humor, é também sátira, reclamação, protesto."  Vladimir Sachetta *



Meus estudos sobre a arte moderna, artistas e pintores europeus do século XX ganharam outro olhar quando compreendi que invariavelmente os movimentos artísticos e suas obras se tratavam de expressões e busca de caminhos possíveis para fatos marcantes daquele recorte histórico, como as duas grandes guerras. Assim, da mesma forma, podemos compreender a música como uma tradicional linguagem da arte que nos é própria como cultura, para expressão e busca de caminhos possíveis diante de nossa história e contexto sóciocultural. Se fizermos um exercício de memória poderemos citar um grande número de músicas que podemos considerar como registros de nossa história como brasileiros. Deixo aqui o convite para que o leitor deixe nos comentários a(s) música(s) que ache válido ser(em) lembrada(s).  

Cabe aqui também o convite aos amigos do Não Palavra para aguçarem a escuta sobre a música brasileira produzida na atualidade – aqui não importando se artistas consagrados ou artistas de rua. O que a música brasileira de nossos tempos tem nos dito?

A música na clínica da Arteterapia: algumas propriedades

“ - Você conserta meu coração?
- Concerto.
(desde então tudo foi música)”
Zack Magiezi

A música é utilizada para fins terapêuticos desde os tempos ancestrais. Mas penso que se a compreendermos como expressão tradicional de nossa cultura, nós arteterapeutas brasileiros devemos nos aprofundar neste estudo e nos instrumentalizar para oferece-la aos nossos clientes/pacientes e ao social de forma consistente em sua infinidade de possibilidades e diversidade. Esta é uma expressão artística que dificilmente provocará resistência para aos que chegam para clínica da Arteterapia, apresentando-se como uma oportuna porta de entrada para a sensibilização do paciente para o contato com a arte.

As músicas instrumentais são muito estimulantes em várias dimensões. A partir de suas intensidades, potências, acordes maiores ou menores, servem de estímulos psicológicos e sensoriais que provocarão o ouvinte. Podem ser acionadas em casos de esvaziamento ou empobrecimento emocional para o acesso a memórias afetivas, sensações e sentimentos que aquecerão as reflexões terapêuticas. Bastante estimuladora também de variadas funções cognitivas, estimulação interessante não apenas para crianças em desenvolvimento ou idosos para a prevenção/tratamento de declínios cognitivos, mas para seres humanos de forma geral:

“O processamento musical envolve uma ampla gama de áreas cerebrais relacionadas à percepção de alturas, timbres, ritmos, à decodificação métrica, melódico-harmônica, à gestualidade implícita e modulação do sistema de prazer...” MUSZAT

Já as músicas que possuem letra, podem ser exploradas em sua poesia, como recursos para um diálogo consigo mesmo, através de um “interlocutor”: o artista, que também será objeto de projeção do ouvinte. Como arteterapeuta invisto em minha própria discografia, coletando em um pen drive ou no aplicativo spotfy músicas que me atravessam em minha experiência de vida que entendo que em algum momento poderão emergir como temáticas clínicas. Em algum momento posso estimular que o paciente traga uma música que lhe toque, que lhe diga algo, ou que faça parte da trilha sonora de sua vida. Se quisermos acessar uma música de forma espontânea, podemos utilizar o recurso da fantasia dirigida ao qual o paciente irá buscar por si próprio, como mensagem de seu inconsciente, a música a ser investida. 


A experiência de (re)ouvir aquela música dentro do setting arteterapêutico, em um ambiente suportado pela transferência, na companhia do terapeuta, certamente atualizará a relação do sujeito com aquela música e o provocará no caminho de elaboração de seus conteúdos.  

Estas são algumas reflexões iniciais sobre o uso de músicas na prática da Arteterapia. Mas este tema ainda está aquecido nos diálogos com interlocutoras da minha rede, pessoas que me instigam à pensar a Arteterapia. Nos próximos dois textos deste blog, estas parceiras trarão suas percepções e novas contribuições sobre esta linguagem da arte tão nossa. 


Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.


A Equipe Não Palavra te aguarda! 



* Fonte:

http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2015/08/12/exposicao-a-musica-canta-a-republica-de-franklin-martins-e-inaugurada-no-rio/



Referência Bibliográfica:

KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. 

MUSZKAT, Mauro. Música, neurociência e desenvolvimento humano.

Disponível em: http://www.amusicanaescola.com.br/pdf/Mauro_Muszkat.pdf

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

A ENERGIA DO ENCONTRO: UM RELATO SOBRE A INTERGERACIONALIDADE


Glória Maria dos Santos - RJ
gloriamasantos@gmail.com

“Há muros que só a paciência derruba.
Há pontes que só o carinho constrói.”

Cora Coralina

A oportunidade de trabalhar em uma instituição que abriga um retiro de idosos facilitou uma aproximação entre gerações.
Das visitas sem hora marcada e idas para explorar o espaço, foi surgindo um desejo de estar junto com mais frequência e porque não fazermos atividades que nos aproximassem e gerassem prazer e alegria em estarmos juntos. Até então a participação dos idosos era mais passiva. Íamos cantar, dançar, recitar poesias e após as apresentações brincar e observar os peixes no lago, sob o olhar encantado dos moradores. 
Observamos a alegria e o prazer que eram gerados a partir desses encontros e paralelamente o trabalho com jovens da Ação Social. 
Atividades cognitivas, plásticas, jogos, concertos e palestras foram enriquecendo e promovendo um ambiente de troca, integração e respeito. A disposição com que os idosos passaram a sair dos quartos, arrumando-se para os nossos encontros nos obrigou a qualificar as nossas propostas. Muitas vezes ao sairmos já sabíamos o que fazer /propor na semana seguinte. 



Hoje com os alunos da Pré Escola II (5/6 anos) estamos realizando uma vez por semana, uma manhã ou tarde, num período de 3 horas, encontros que envolvem propostas cognitivas e lúdicas com um grupo de 25 alunos com mais ou menos 12 idosos. Com os adolescentes, os encontros são semanais com 1 hora de duração. Iniciamos o projeto em 2010, com 2 ou 3 alunos. Hoje somos 12 alunos frequentes, trocando ideias, experiências e vivências com um grupo quase fixo de 10 idosos. 
Aprendemos a lidar com o ritmo de cada um, ouvimos canções, falamos de filmes e assuntos da atualidade, dançamos e exploramos através de diferentes linguagens, propostas de ativam a memória, trazem sentimentos, geram saúde e melhor qualidade de vida. 
A mudança no olhar em relação ao idoso, entendendo que o passar do tempo (envelhecimento), não traz somente limitações, mas uma bagagem de experiências que pode ser compartilhada com os mais jovens.

Para saber mais sobre o tema INTERGERACIONALIDADE leia também:

Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

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A Equipe Não Palavra te aguarda!

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Sobre a autora: Glória Maria dos Santos

Professora, psicopedagoga, terapeuta holística, estudante de Arteterapia e voluntária.