segunda-feira, 9 de outubro de 2017

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A MÚSICA NA CLÍNICA DA ARTETERAPIA



Eliana Moraes (MG) RJ
naopalavra@gmail.com


“As aproximações com a música são... as mais ricas de ensinamentos. A música é, há muitos séculos, a arte por excelência para exprimir a vida espiritual do artista... Para o artista criador que quer e que deve exprimir seu universo interior... 

O som musical tem acesso direto à alma. E aí encontra, porque o homem tem ‘a música em si mesmo’, um eco imediato. ” Kandinsky

Tenho pensado sobre a utilização de expressões artísticas como estímulos projetivos para a clínica da Arteterapia. Já escrevi sobre alguns pintores que me atravessaram como René Magritte, Piet Mondrian, Abraham Palatnik e Edward Hopper. Embora as artes visuais tenham me instigado de forma singular nos últimos tempos, estas não são as únicas expressões artísticas aos quais o arteterapeuta tem como instrumento clínico. Afinal, as técnicas projetivas são aquelas às quais o cliente/paciente recebe um estímulo direcionado à algum dos cinco sentidos, e a partir dele fala o que percebe, pensa, sente. Naturalmente ali projetará conteúdos próprios e na sensação de falar de um terceiro, falará de si. 

Quando abordamos estímulos projetivos auditivos, automaticamente podemos pensar em música. Existem inúmeros estudos que apontam uma profunda ligação entre a música e emoção (deixo a sugestão para que os arteterapeutas pesquisem sobre este tema para se apropriarem destes embasamentos). Na prática da Arteterapia, a música se mostra bastante mobilizadora de afetos e memórias e nos últimos tempos, a propósito da minha clínica, tenho parado para refletir de forma especial sobre ela. 

O texto de hoje se dá como articulações iniciais deste tema tão abrangente e potente em sua variedade de possibilidades como material para arteterapeutas. 

Música: uma arte da cultura brasileira 

Tenho pensado que talvez a música seja a expressão artística mais cotidiana e democrática de nossa cultura. Ela está presente nos mais variados ambientes frequentados em nosso dia a dia. É muito difícil encontrarmos alguém que não tenha qualquer relação com a música. Sendo assim acredito que esta seja uma linguagem da arte bastante acessível àqueles que chegam para a clínica da Arteterapia, sobretudo aqueles que chamo de “pacientes leigos”, que não têm qualquer histórico com as artes. 


Dentre os artistas, talvez o músico seja o mais próximo, que mais alcança o público na cultura brasileira. Estas reflexões foram aquecidas quando me lembrei de uma exposição que visitei em 2015, chamada “Música canta a República”, no Centro Cultural dos Correios, RJ. A mostra continha fotografias, painéis, cartazes, áudios, vídeos e textos relacionados a 110 canções brasileiras de 1902 a 2002. Com diferentes gêneros musicais - maxixe, marchinhas, caipira, samba, MPB, rock, rap – que faziam referência a 80 temas políticos, como “Vargas no Poder”, “Democracia de Massas”, “Anos Dourados?”, “Ditadura e Resistência”, “Que país é esse” e “Eu só quero ser feliz”.

Porém, ao longo da exposição ficou claro que os temas não se resumiam à política, mas revelavam nossa história e a maneira como os artistas de nossa cultura, a partir de suas sensibilidades, a registravam. Nas palavras do curador da exposição:

"Não é só nos períodos de ditadura que teve música de protesto. Existe uma tradição de crônica musical, não apenas sobre política, mas sobre comportamento, economia, cultura. Desde a época do império e principalmente com o Carnaval, criou-se esse hábito de fazer música sobre os acontecimentos do ano anterior. Então isso nos deu esta permanência e é o que nos distingue do resto do mundo... Não há um fato, evento ou personagem que não esteja registrado na música. Isso é uma coisa muito brasileira que não fica só na trilha do humor, é também sátira, reclamação, protesto."  Vladimir Sachetta *



Meus estudos sobre a arte moderna, artistas e pintores europeus do século XX ganharam outro olhar quando compreendi que invariavelmente os movimentos artísticos e suas obras se tratavam de expressões e busca de caminhos possíveis para fatos marcantes daquele recorte histórico, como as duas grandes guerras. Assim, da mesma forma, podemos compreender a música como uma tradicional linguagem da arte que nos é própria como cultura, para expressão e busca de caminhos possíveis diante de nossa história e contexto sóciocultural. Se fizermos um exercício de memória poderemos citar um grande número de músicas que podemos considerar como registros de nossa história como brasileiros. Deixo aqui o convite para que o leitor deixe nos comentários a(s) música(s) que ache válido ser(em) lembrada(s).  

Cabe aqui também o convite aos amigos do Não Palavra para aguçarem a escuta sobre a música brasileira produzida na atualidade – aqui não importando se artistas consagrados ou artistas de rua. O que a música brasileira de nossos tempos tem nos dito?

A música na clínica da Arteterapia: algumas propriedades

“ - Você conserta meu coração?
- Concerto.
(desde então tudo foi música)”
Zack Magiezi

A música é utilizada para fins terapêuticos desde os tempos ancestrais. Mas penso que se a compreendermos como expressão tradicional de nossa cultura, nós arteterapeutas brasileiros devemos nos aprofundar neste estudo e nos instrumentalizar para oferece-la aos nossos clientes/pacientes e ao social de forma consistente em sua infinidade de possibilidades e diversidade. Esta é uma expressão artística que dificilmente provocará resistência para aos que chegam para clínica da Arteterapia, apresentando-se como uma oportuna porta de entrada para a sensibilização do paciente para o contato com a arte.

As músicas instrumentais são muito estimulantes em várias dimensões. A partir de suas intensidades, potências, acordes maiores ou menores, servem de estímulos psicológicos e sensoriais que provocarão o ouvinte. Podem ser acionadas em casos de esvaziamento ou empobrecimento emocional para o acesso a memórias afetivas, sensações e sentimentos que aquecerão as reflexões terapêuticas. Bastante estimuladora também de variadas funções cognitivas, estimulação interessante não apenas para crianças em desenvolvimento ou idosos para a prevenção/tratamento de declínios cognitivos, mas para seres humanos de forma geral:

“O processamento musical envolve uma ampla gama de áreas cerebrais relacionadas à percepção de alturas, timbres, ritmos, à decodificação métrica, melódico-harmônica, à gestualidade implícita e modulação do sistema de prazer...” MUSZAT

Já as músicas que possuem letra, podem ser exploradas em sua poesia, como recursos para um diálogo consigo mesmo, através de um “interlocutor”: o artista, que também será objeto de projeção do ouvinte. Como arteterapeuta invisto em minha própria discografia, coletando em um pen drive ou no aplicativo spotfy músicas que me atravessam em minha experiência de vida que entendo que em algum momento poderão emergir como temáticas clínicas. Em algum momento posso estimular que o paciente traga uma música que lhe toque, que lhe diga algo, ou que faça parte da trilha sonora de sua vida. Se quisermos acessar uma música de forma espontânea, podemos utilizar o recurso da fantasia dirigida ao qual o paciente irá buscar por si próprio, como mensagem de seu inconsciente, a música a ser investida. 


A experiência de (re)ouvir aquela música dentro do setting arteterapêutico, em um ambiente suportado pela transferência, na companhia do terapeuta, certamente atualizará a relação do sujeito com aquela música e o provocará no caminho de elaboração de seus conteúdos.  

Estas são algumas reflexões iniciais sobre o uso de músicas na prática da Arteterapia. Mas este tema ainda está aquecido nos diálogos com interlocutoras da minha rede, pessoas que me instigam à pensar a Arteterapia. Nos próximos dois textos deste blog, estas parceiras trarão suas percepções e novas contribuições sobre esta linguagem da arte tão nossa. 


Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com

Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.


A Equipe Não Palavra te aguarda! 



* Fonte:

http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2015/08/12/exposicao-a-musica-canta-a-republica-de-franklin-martins-e-inaugurada-no-rio/



Referência Bibliográfica:

KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. 

MUSZKAT, Mauro. Música, neurociência e desenvolvimento humano.

Disponível em: http://www.amusicanaescola.com.br/pdf/Mauro_Muszkat.pdf

3 comentários:

  1. Que artigo maravilhoso! Gratidão por compartilhar suas reflexões sobre o tema.

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  2. Estou começando estudar um pouco sobre envelhecimento e vejo como a Arte, a Mulher,o movimento auxiliam o declínio cognitivo dos idosos.
    Viver experiências passadas e presentes ativam o cérebro e proporcionam uma qualidade de vida infinita para o idoso abandonado muitas vezes pela nossa sociedade.

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